Jornal Estado de Minas

ELEIÇÕES

Bolsonaristas completam um mês na Raja Gabaglia com militarismo em destaque

Tão logo a apuração das urnas eletrônicas decretou, na noite de 30 de outubro, a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre Jair Bolsonaro (PL) na disputa presidencial, apoiadores do candidato à reeleição demonstraram seu inconformismo com o resultado fechando vias dentro e fora das cidades.



Instituição que passou a ser esperança dos bolsonaristas, o exército teve suas unidades transformadas, literalmente, em QG de manifestantes. Em Belo Horizonte, a Companhia de Comando da 4ª Região Militar, na Avenida Raja Gabaglia, Centro-Sul da capital, foi escolhida como ponto de encontro de centenas de pessoas (milhares em alguns dias) que manifestam em uníssono sua discordância em relação ao resultado eleitoral e elucubram sobre possibilidades de impedir que o petista tome posse em janeiro.

Há 30 dias acampados na porta do quartel, os manifestantes são animados por líderes que discursam em um trio elétrico, passam o tempo rezando e se reúnem em barracas com comida e bebidas. Após um mês em que Bolsonaro passou a maior parte do tempo em silêncio, seus eleitores seguem fiéis às bandeiras do bolsonarismo, mas o protagonismo nas palavras de ordem, faixas e cartazes foi deslocado para as forças armadas. 

Na Avenida Raja Gabaglia, no início da tarde de segunda-feira (28/11), enquanto a Seleção Brasileira entrava em campo no Catar, o movimento começava a crescer em frente ao quartel. Entre outras figuras que circulavam mostrando familiaridade com os frequentadores do acampamento, um homem distribuía folhetos enquanto explicava que a comunidade internacional seria leniente com um governo militar no Brasil por cerca de três anos até que fosse seguro Bolsonaro assumir novamente a presidência e alertava para o risco representado pela França de Emmanuel Macron, que poderia invadir o país via Guiana Francesa.





“O povo ordena e somos responsáveis pelos erros e vícios de nosso estado atual, do qual estamos lutando para sair e restaurar. Assim, precisamos ser incisivos, ainda que expressões genéricas ajudem em algum ponto ou momento. “SOS” e “Salve o Brasil” foram perfeitas no primeiro momento, mas agora são insuficientes, exatamente por serem genéricas. A ordem constitucional já não existe! O Povo sofreu e está sofrendo um GOLPE! O POVO não espera de outros, mas de suas FORÇAS ARMADAS! O POVO ORDENA a INTERVENÇÃO  MILITAR!”, diz um trecho do folheto.

A centralidade do militarismo no discurso se confunde com um forte componente religioso e até mesmo suplanta, em alguns momentos, a narrativa de que as urnas foram fraudadas. Na quinta-feira (24/11), após manifestantes repetirem várias vezes o canto “Forças Armadas, salvem o Brasil”, um homem que se apresentou como pastor fez um discurso em que admitia uma derrota ‘na política’, mas atribuiu o fato à um desígnio divino.

“Esse grito que nós demos anteriormente, Forças Armadas, agora é com vocês, presta bem atenção se nós tivéssemos resolvido essa situação na política, o sistema continuava corrompido. Os bandidos continuavam lá. Eu sou pastor e eu creio que Deus escolheu este caminho para nós limparmos o Brasil. É por isso que o povo está aqui. O primeiro caminho que Deus escolheu é o povo e o povo está fazendo a parte dele. O segundo caminho, as Forças Armadas. Agora, Forças Armadas, é com vocês, o último passo é das Forças Armadas e nós todos vamos nos sagrar vitoriosos pelos nossos filhos, pela nossa família. Deus está na direção de tudo, para limpar o nosso país. Deus está nos usando para limpar o nosso país”, bradou.




 
 

O trio elétrico fica exatamente em frente ao quartel e do mesmo lado da rua. Enquanto o pastor fala sobre os planos de Deus para a sucessão de poder no Brasil, alguns metros abaixo, ao redor de uma imagem de Maria, manifestantes rezavam o terço de forma emocionada e com os olhos fechados. Acima dos fiéis, uma faixa trazia a frase “Forças Armadas nos defendam contra a implantação do socialismo no Brasil”, com uma tradução para o inglês “Brazilian Armed Forces, we need your help against socialism in Brazil”. 

Além do resultado eleitoral, o apelo às Forças Armadas é feito sob a justificativa de que o país está sob um regime ditatorial comandado pelo judiciário. Tanto quanto Lula, o PT e os comunistas, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) são alvos dos manifestantes. Alexandre de Moraes, que também preside o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), é o mais visado, com cantos como “ei, Xandão, seu lugar é na prisão” ou “Supremo é o povo, não o cabeça de ovo”. Mas há também espaço para outros ministros. É possível, por exemplo, ver cartazes com o rosto da ministra Cármen Lúcia e a frase “cala a boca reviveu”, se referindo à fala da magistrada ao se referir a restrições a biografias não autorizadas.
 
Ministros do STF são alvos constantes das manifestações bolsonaristas (foto: Bernardo Estillac/EM/ D.A. Press)
 

Orientações e autocelebração


Em meio a ataques ao STF, a Lula e ao PT e pedidos de socorro às Forças Armadas, é comum encontrar avisos escritos e ouvir advertências nos alto-falantes orientando alguns comportamentos. Preocupados com o risco das indumentárias em verde e amarelo provocarem uma associação a torcedores que festejam a Copa do Mundo, líderes pedem nos microfones para que os manifestantes não consumam bebidas alcoólicas no movimento. “Não estamos em uma festa, e sim em uma guerra”, alerta um cartaz pregado no trio elétrico.





Placas com outras orientações também são comuns ao longo do quarteirão em que os manifestantes se concentram. Uma delas, por exemplo, pode que a data e o horário sejam anunciados em todos os vídeos gravados para as redes sociais. Há também números de PIX para financiar as manifestações.
 
 

A autoindulgência também faz parte dos discursos que inflamam os manifestantes. É comum que eles se refiram ao movimento como um sacrifício que fazem pela nação e futuras gerações. No trio elétrico, uma placa conta quantos dias eles já passaram em frente ao quartel. Esse teor também é explorado nos coros dos eleitores que não reconhecem o resultado das urnas. “Sinta, povo, a terra tremer/ só saio daqui, quando resolver/ ouça, mundo, preste atenção/ bandido inelegível vai para a prisão”, gritam em um momento. Em outro, cantam “se precisar, a gente acampa/ mas o ladrão não sobe a rampa”, sugerindo que a data da posse de Lula, em 1º de janeiro, é uma espécie de momento chave para o movimento.

Nos microfones, há também orientações para que os manifestantes respondam a críticas de quem questiona a legitimidade do movimento. “É como quando você compra algo e vem estragado, você reclama no Procon. Estamos reclamando porque as urnas estão fraudadas”, diz uma mulher em discurso inflamado em cima do trio elétrico. Em outro momento, a mesma mulher ensina “quando te disserem que vocês estão em um ato antidemocrático, pergunte à pessoa ‘o que é democracia para você então?’, e pronto, não tem mais o que falar”.




 
Avisos colados em trio elétrico, na Raja Gabaglia (foto: Bernardo Estillac/EM/ D.A. Press)
 

Não pode ser subestimado


Para o professor e pesquisador da UFMG e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), Camilo Aggio,os movimentos devem ser observados atentamente e sem desdém. Ele aponta que trata-se de um grupo engajado que não vai se dissipar facilmente.

“É um pouco de futurologia fazer previsões sobre esse movimento, mas eu começaria dizendo que não se deve subestimar Bolsonaro e os militares ao redor dele. É bom ser prudente diante de um grupo de pessoas lideradas por um presidente da República que, desde a posse, tem um discurso golpista. Sem dúvida nenhuma temos um movimento consistente. A gente pode até dizer que eles não são claramente unificados, mas eles são muito engajados e isso não é irrelevante”, avalia.

Segundo Aggio, a liderança de Bolsonaro não é imprescindível para a manutenção de grupos de extrema-direita que se consolidaram no país.

“Eles têm uma rejeição ao resultado das urnas, mas também têm ódio do TSE, do STF, dos poderes constituídos da República. Não é apenas uma inconformidade, acho que tem aí uma explicitude de um grupo que decidiu que pode se manifestar publicamente contra a democracia. Eu não acho que vai se dissipar tão cedo. As pessoas, com o tempo, vão sair da porta do quartel, mas elas vão continuar militando. Essas pessoas precisam encontrar algum tipo de lógica e uma justificativa legal. Se olham para Bolsonaro e ele se acovarda, deixa de fazer lives, de se manifestar, eles precisam encontrar algum atalho. É um movimento extremista que prescinde Bolsonaro como liderança. Podem aparecer outros líderes à frente. Jair Bolsonaro se mostrou um bom líder extremista, ele conduziu seu governo como quis, subjugando até mesmo  figuras como Sergio Moro e Paulo Guedes, mas, no momento final da conspiração, do golpe, ele não conseguiu cumprir com os anseios. Mas, novamente, não podemos subestimar”, explica. 





Além dos pontos políticos, o professor avalia que há um elemento psicológico na coesão dos manifestantes que contestam as urnas e pedem intervenção militar, que passa por um fetichismo com as Forças Armadas e um forte componente religioso. Aggio acredita que, apesar do silêncio de Bolsonaro após a eleição, o candidato derrotado tentará voltar ao cenário político a partir do próximo ano.

“Ele lançou esse balão de ensaio e usou mais uma vez a imprensa. Quando começaram a ler o silêncio como um receio de resposta do judiciário, é passada aos apoiadores a mensagem de que ele é vítima de perseguição, de que ele está do lado dos manifestantes, mas não pode falar. Eu acho que ele vai tentar se cacifar eleitoralmente para 2026 a partir do ano que vem e, se eu pudesse fazer uma aposta, acho que a operação central da máquina bolsonarista vai ser tentar atribuir responsabilidades a Lula de um governo que Bolsonaro e Paulo Guedes entregaram quebrado na tentativa de uma reeleição”, pontua.