A equipe do petista não acionou o Itamaraty sobre a viagem, e Lula pode visitar a capital dos Estados Unidos sem uma recepção oficial organizada pela embaixada do Brasil em Washington, comandada por Nestor Forster, muito identificado com o atual presidente, Jair Bolsonaro (PL).
O presidente eleito já disse que a ideia é que a viagem, que serviria como mais uma prova de legitimidade internacional da vitória contestada por Bolsonaro e pelo PL, ocorra após a diplomação, no próximo dia 12.
Há dúvidas, no entanto, sobre a estrutura que receberá o petista fora do país, porque o Itamaraty não é obrigado a organizar a viagem do petista antes de ele assumir de fato o cargo, e o mais provável é que aconteça a mesma configuração da recente passagem de Lula por Portugal: ele não se hospedou na embaixada em Lisboa e não recebeu apoio diplomático. Chegou a se encontrar com o presidente, o premiê e o embaixador do país ibérico no Brasil, sem que o embaixador brasileiro estivesse presente.
A Folha procurou a embaixada do Brasil nos EUA, que orientou o envio das perguntas à assessoria do Ministério das Relações Exteriores, em Brasília. Por telefone, um assessor da pasta respondeu apenas que o órgão não foi acionado pela equipe de Lula em busca de apoio para uma viagem aos EUA --não houve resposta se o Itamaraty assistirá o petista antes da cerimônia de posse caso o auxílio seja solicitado.
Acontece que o grupo do futuro presidente tem resistência ao atual embaixador na capital americana, que deve deixar o cargo na primeira leva de nomeações quando o novo governo assumir.
Forster tem bom trânsito em Washington e experiência nessa representação diplomática brasileira desde os anos 1990, atuando inclusive sob governos petistas, mas sua defesa aberta de Bolsonaro durante todo o período no cargo, além da proximidade com figuras do bolsonarismo, incomoda o futuro governo.
Durante a campanha, ele escreveu duas cartas à imprensa americana, ao New York Times e à Bloomberg News, rebatendo artigos sobre a escalada autoritária no país e que faziam críticas à política ambiental. O mesmo expediente foi usado em respostas a congressistas democratas contrários ao atual presidente.
Além disso, o embaixador era amigo próximo de Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo. Homenageou-o em diferentes oportunidades e, após a morte do escritor, publicou em um perfil em rede social da embaixada que Olavo "deixa um legado duradouro por meio de seu vasto trabalho".
Com ou sem apoio da embaixada, a possibilidade de um encontro de Biden com Lula antes de o petista tomar posse chamou a atenção de quem trabalha com diplomacia em Washington. Uma das justificativas para a reunião, porém, é um ponto de consenso: Biden não tem aliados de peso na América Latina hoje.
Na Colômbia, principal parceiro estratégico na região, ainda há dúvidas sobre Gustavo Petro, que assumiu há pouco a Presidência. No México, Andrés Manuel López Obrador tinha mais afinidade com Donald Trump. E, na Argentina, também houve atritos com a gestão de Alberto Fernández, que já defendeu menor dependência dos americanos e fez acenos vistos como complicados em Washington a Rússia e China.
No Brasil, até agora um posto avançado do trumpismo na América do Sul, o presidente brasileiro duvidou da vitória de Biden e foi um dos últimos líderes globais a parabenizá-lo pelo triunfo sobre o republicano.
É por isso que um aceno a Lula é considerado importante no governo americano. A Casa Branca sabe que o petista não será um aliado automático e que haverá diferenças programáticas, mas o presidente eleito é considerado um político pragmático e experiente, com quem é possível sentar para negociar.
Além disso, pode ser um parceiro importante na pauta climática e em demandas específicas na região, como a Venezuela, onde a boa interlocução com Maduro pode fazer de Lula uma ponte entre Washington e Caracas. A crise energética gerada pela Guerra da Ucrânia tem provocado o que alguns descrevem como o início de um apaziguamento com os chavistas. Recentemente, Biden tirou sanções contra o regime venezuelano, descongelou ativos e autorizou que a americana Chevron volte a extrair petróleo no país.
Outra questão é um possível retorno dos militares brasileiros ao Haiti, que participaram da missão da ONU ali de 2004 a 2017. Quanto a esse ponto, porém, há, segundo um membro da equipe de transição à Folha, resistência na equipe do petista, sobretudo pelo pouco apoio recebido nas ações sociais e econômicas necessárias no país, sobretudo após o terremoto de 2010, que deixou mais de 100 mil mortos.
Lula poderia ainda ser útil em uma negociação multilateral na Guerra da Ucrânia, disse Ricardo Zúniga, secretário-adjunto de Hemisfério Ocidental no Departamento de Estado dos EUA e ex-cônsul em São Paulo. "O Brasil é um grande ator multilateral e tem longo legado de envolvimento em processos de paz, na busca de soluções multilaterais para alguns dos mais complexos problemas de segurança", afirmou nesta semana em evento na Universidade Harvard, organizado pelo Future of Diplomacy Project.
Todos esses temas podem ser levados a Brasília agora por Sullivan, mas há dúvidas se serão mesmo postos à mesa num primeiro encontro oficial entre as duas equipes. O mais provável é que pedidos concretos do governo americano sejam feitos em reuniões de alto nível na capital americana.
Segundo a programação oficial, Sullivan falará sobre crise climática, segurança alimentar, promoção da democracia e migração regional. Está previsto um encontro com o senador Jaques Wagner (PT), mas uma reunião com Lula não está descartada. O americano também se encontrará com autoridades do atual governo --será recebido pelo almirante Flávio Rocha, secretário de Assuntos Estratégicos.
Por fim, ainda que uma viagem antes da posse chame a atenção, ela não seria a primeira recepção em Washington nesse contexto. O próprio Lula foi à capital americana em 2002 logo após ser eleito para se reunir com o hoje ex-presidente George W. Bush --na ocasião, o então embaixador brasileiro promoveu um jantar para o petistas, que também se encontrou com parlamentares e investidores americanos.