Faltando poucas horas da posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e do fim oficial do mandato de Jair Bolsonaro (PL) no Palácio do Planalto, o cenário da política brasileira passa por um momento típico das transições de poder: a análise da gestão que sai de cena e o que o futuro prepara para quem assume a liderança. No caso do Brasil, o retorno de um governo petista chega depois de um mandato marcado, desde a eleição, por uma disrupção do contexto tradicional do jogo político do país, como explica o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches. Em entrevista ao Estado de Minas, Abranches avaliou o governo que se encerra e os percalços já encontrados por Lula durante a transição da gestão em Brasília. Autor, entre outras obras, do livro “O tempo dos governantes incidentais” (Companhia das Letras, 2020), ele avalia a ascensão, queda e chance de retorno de nomes como Bolsonaro e o ex- presidente norte-americano Donald Trump, e como o Brasil pode trilhar um caminho para uma democracia consolidada diante de um cenário de crise global.
Em "O tempo dos governantes incidentais" o senhor fala de Bolsonaro como um presidente que foge da lógica de coalizão e busca sempre o conflito. Em seus momentos finais na Presidência, ele se aproximou do Congresso e até destacou a eleição de grande bancada do PL como ponto positivo durante a campanha de 2º turno. Como avalia essa situação?
Ele mudou a relação dele com o Congresso, mas ele mudou a relação dele com o Congresso de uma forma completamente disfuncional, porque fez o seguinte: permitiu que o Arthur Lira criasse o orçamento secreto, que é um canal aberto para corrupção e para fraude, e que transfere todo o poder de alocação de recursos públicos nas mãos do relator do Orçamento e do presidente da Câmara, principalmente, porque o (Rodrigo, presidente do Senado) Pacheco tem uma bordinha desse poder. E aí o que o Bolsonaro fez? Ficou governando por decreto. O Bolsonaro é o cara que mais fez decretos do presidencialismo brasileiro desde o Fernando Henrique.
Ele fez decreto para desmontar a Funai, fez decreto para desmontar o ICMBio, o Ibama, para aumentar o acesso às armas. Então, ele abdicou do governo propriamente dito e passou a fazer uma coisa muito focada na sua pequena agenda, que é uma agenda totalmente negativa, antirrepublicana e antidemocrática. Ele sempre terá essa possibilidade de dizer que seria diferente depois com o PL. Ele nunca teve partido, esse é o problema. O PL não é o partido dele, é o partido do Valdemar Costa Neto que, ao fazer o jogo do Bolsonaro, sobretudo na questão do processo no TSE, pelo qual ele tá com uma multa pesada que não consegue pagar, ele está perdendo o controle. O partido dele na Câmara dos Deputados está negociando com o Lula, querendo aderir ao governo. Então, ele vai sair fraco e desacreditado do governo. Se ele for revigorado por alguém, por alguma coisa, vai ser por um eventual fracasso do governo Lula.
O caráter efêmero dos governantes incidentais também é tratado no livro. Como podemos entender a queda de Trump e Bolsonaro após um mandato?
O caráter efêmero, tanto do Trump quanto do Bolsonaro, tem a ver com o fato de que eles não conseguem cumprir as promessas que eles fazem, porque o que eles prometem é um passado inexistente, imaginário e idealizado. Essa é a primeira razão de não durarem. Eles se valem dos sentimentos que são criados pela decepção, pelo desgosto e pelo ressentimento com as mudanças sociais que estão rebaixando socialmente as pessoas. Gente de classe média que está sendo, como o (Theodor) Adorno chama, desclassificado, saindo da sua classe.
No Brasil e nos Estados Unidos, a classe média é muito movida pelo status: o carro que dirige, a vizinhança onde mora. É um conjunto de fatores que, com a crise, com a automação do trabalho, a mudança nos modelos de negócio por conta da mudança estrutural global que está acontecendo, essas pessoas ficam muito ressentidas. Por isso o declínio da social democracia em todo mundo. Porque as pessoas frustradas com as suas perdas olham e falam: "Vocês nos prometeram bem-estar, e a gente não está tendo mais".
Aí, cria-se um cenário para os demagogos da extrema-direita explorarem esses sentimentos e construírem uma narrativa que é completamente falsa a respeito de porque que essas coisas estão acontecendo. A segunda razão é porque eles não tiveram força suficiente para mudar as regras do jogo e virar uma autocracia. Não conseguiram a tempo destruir a democracia por dentro, porque as instituições resistiram. Nos Estados Unidos, elas resistiram. Aqui, elas quase todas foram dominadas, menos o Supremo Tribunal Federal (STF).
Por que a extrema-direita cresce nesse ambiente de crise?
Ela lida melhor porque ela explora esses sentimentos muito bem. Você tem uma população ressentida, enraivecida, decepcionada, desgostosa com o que está acontecendo e um discurso demagógico de culpabilizar, de construir uma vítima. Eles sabem fazer isso muito bem, inclusive sabem fazer isso melhor do que a esquerda, porque o discurso da esquerda envelheceu e ela ainda não atualizou o discurso. Uma segunda coisa é que a extrema-direita aprendeu a usar as redes digitais mais rápido.
Exatamente porque eles não tinham voz no sistema tradicional de debate político de representação e disputa, eles migraram para a internet rapidamente e nas redes digitais e construíram um império da mentira, da disputa de que eles chamam de 'narrativas', um termo que acabou sendo consagrado e até a literatura especializada hoje o usa para caracterizar aquilo que está sendo disputado.
Existe, então, um contexto que favorece o retorno de Bolsonaro?
No Brasil, o bolsonarismo na verdade é um movimento precário, por ter um líder muito despreparado, desqualificado. O que a gente pode considerar como bolsonaristas mesmo são os fanáticos que estão acampados na nas portas dos quartéis e os seus financiadores, porque os caras não estão lá com banheiro químico, logística, alimentação, salário, porque ninguém pode ficar semanas sem trabalhar, só pedindo golpe. O Bolsonaro não tem um partido, por exemplo.
O PL já está migrando para o centrão de novo para fazer negociações com o governo Lula. Um problema que o Brasil pode enfrentar para evitar o retorno de Bolsonaro é a falta absoluta de novas lideranças em todos os partidos, e o fato de que em 2018 houve a ruptura do modelo que formava tanto governo, quanto oposição no Brasil. Uma estrutura sui generis, em que tinha uma disputa bipartidária no eixo presidencial com PT e PSDB e uma disputa muito competitiva, no eixo multipartidário, pelas bancadas na Câmara e no Senado. Esse modelo se quebrou, ele teve uma ruptura com a dissolução do PSDB e a derrota do PT para um partido que não era contra quem disputava historicamente.
Então hoje você tem uma disputa entre vários partidos que estão olhando e pensando que talvez consigam, agora, realizar uma vocação presidencial, porque não tem mais o PSDB. Eu acho que quem está melhor posicionado para fazer isso no momento é o PSD de (Gilberto) Kassab e Rodrigo Pacheco. Essa mistura tem que ser arrumada daqui até a próxima eleição presidencial para que haja de fato uma alternativa que tenha credibilidade, que seja competitiva para frear esse retorno do ressentimento e, também, depende de sabermos se o Lula vai ser capaz de, minimamente, interromper esse processo de crise social que a gente está vivendo.
Quais são as missões de Lula para evitar uma derrota para a direita na próxima eleição?
O Lula tem que ser capaz de cumprir as promessas, as promessas básicas: ele vai ter que reduzir drasticamente a fome e a miséria, para poder produzir satisfação no lugar de insatisfação. À medida que ele faz isso, a popularidade dele sobe e o poder dele sobre o Congresso aumenta. Ele precisa melhorar a situação do emprego e da renda em geral, para todos os assalariados. Não é uma tarefa fácil, porque hoje o mundo todo lida com dois níveis diferentes de crise.
Cada país vive a sua crise à sua maneira, mas tem a crise estrutural, que tem a ver com as mudanças no sistema e na organização do trabalho, como já falei, e a crise que decorre da dos abalos ainda da pandemia. Por muito tempo, as empresas fecharam por causa dos lockdowns. Então você tem uma crise estrutural e uma crise conjuntural.
É muito complicado você conseguir separar e ser capaz de explicar para a população a diferença entre os efeitos de cada uma delas. Quem está desempregado não quer saber se ele foi desempregado por um robô ou porque a empresa dele quebrou. Lula tem que resolver pelo menos parte dessa crise para gerar uma quantidade de satisfação suficiente nas classes médias e numa parte do setor empresarial para conseguir manter-se com legitimidade no poder e, aí, conseguir que a próxima eleição não seja uma eleição de revanche e de ressentimento. Quer dizer, novamente, um espaço fértil para um candidato antipetista, anti-establishment, outro aventureiro, que pode até não ser o Bolsonaro, se aproveite.
E quais os principais desafios do próximo governo nesse sentido?
Acho que o Lula está passando por uma situação inédita, porque nenhum presidente da República da história do Brasil teve que montar uma maioria antes de tomar posse e em um Congresso que vai desaparecer. São 192 deputados que não vão voltar para a Câmara dos Deputados e Lula está gastando uma enorme quantidade de capital político com a negociação pela PEC da Transição. É uma armadilha. O Bolsonaro colocou uma porção de minas no caminho do Lula.
Ele já sofre, antes de assumir, com críticas por conta de sua política orçamentária. Como isso afeta a percepção do governo Lula?
Acho que o problema não é nem tanto a crítica, mas mais as concessões que ele está tendo que fazer. Eu vejo o seguinte: o Lula fez uma promessa de que não seria um governo do PT, seria um governo da frente ampla e que teria um ministério plural e diverso com mulheres, negros, indígenas. Aí ele começa sempre a fazer essa negociação inédita antes de tomar posse, e aí tem que fazer concessões. Ao mesmo tempo, quando ele vai vendo o grau de resistência que está enfrentando no Congresso, ele começa a ser defensivo, então ele começa a se cercar das pessoas que ele confia. Você vê que, até a aprovação da PEC da Transição, todos os nomeados eram petistas ou fortemente simpatizantes ao partido.
Quando ele começa a negociar concessões ministeriais para aprovar a PEC da Transição, ele começa a colocar nos ministérios mais homens brancos, porque o Centrão, esse núcleo oportunista do Congresso, só tem homem branco. Após a aprovação da PEC, a nomeação de ministros como Nísia Trindade para a Saúde, Anielle Franco para a Igualdade Racial e Silvio Almeida para os Direitos Humanos começa a dar uma face nova ao governo.
O senhor também faz alguns alertas sobre a judicialização da política. Mas, no Brasil, o Judiciário teve papel importante para frear arroubos antidemocráticos, principalmente nos últimos meses?
Eu acho que até mais do que é importante, foi inevitável. Diante da captura da Procuradoria-Geral da República e da Câmara dos Deputados, sobretudo a partir do orçamento secreto, praticamente todos os sistemas de pesos e contrapesos da democracia foram desativados. Sobraram o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que tem um escopo de ação limitado, e o Supremo Tribunal Federal (STF) – esse sim, que tem uma amplitude até disfuncional.
No julgamento do orçamento secreto, por exemplo, o ministro Luís Roberto Barroso estava falando que o Supremo julga desde questões comezinhas até grandes questões constitucionais. A nossa Constituição regula coisas que têm a ver com políticas públicas, inclusive efêmeras. A gente precisa desconstitucionalizar muita coisa. O primeiro movimento importante nesse sentido foi essa proposta do Lula, que está sendo muito bem recebida de uma nova âncora fiscal fora da Constituição, para que o debate de controle macroeconômico não se torne um debate constitucional, que vai ser judicializado. Então, tem uma amplitude disfuncional da judicialização no Brasil, mas ela não tem a ver, digamos, com um desejo de expansão do poder do Judiciário.
Ela tem a ver, basicamente, com um excesso de constitucionalização da rotina do cotidiano brasileiro. Agora, por outro lado, à medida que todas as barreiras de defesa da democracia foram sendo derrubadas, o Supremo ficou sendo um foco de resistência, a aldeia gaulesa do Asterix, os únicos que resistem ao poder romano. Mas a judicialização efetiva tem uma contrapartida inevitável, que é a politização do Judiciário. Na primeira instância, inacreditável, você tem juízes e juízas na primeira instância que são bolsonaristas e que julgam de acordo com a cartilha de fake news e de teorias conspiratórias. O que é um absurdo.
Essas pessoas devem ser afastadas pelo Conselho Nacional de Justiça. Tem juízes proibindo, por exemplo, que mulheres estupradas não possam interromper a gravidez, indo contra o que a lei permite por puro fanatismo e radicalismo extremista. No Supremo, a gente também tem sintomas da politização. A atitude, por exemplo, do ministro André Mendonça, o "terrivelmente evangélico" que o Bolsonaro nomeou. Ele é campeão de pedir vistas. Ele está segurando quase 40 processos, interrompidos para desativar o exame do Supremo e beneficiar os interesses dos grupos ligados ao Bolsonaro e aos evangélicos.