A ex-presidente Dilma Rousseff (PT) lançou um apelo nas primeiras horas da gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que reforçou a pressão de movimentos sociais por uma blindagem do novo mandato, com o alerta de que a ausência de mobilização popular poderá paralisar e até derrubar o governo.
A fragilidade política de um presidente eleito com margem apertada e refém de uma oposição hostil no Congresso e nas ruas está por trás da preocupação. Organizações ligadas ao petista dizem que é preciso dar suporte às medidas do governo, que promete buscar diálogo com a base.
"Temos de nos organizar para conseguir apoiar que as medidas legislativas e políticas que o governo venha a tomar tenham apoio, tenham sustentação, e que não ocorra nenhuma ruptura que nós não possamos enfrentar", afirmou a petista, que sofreu impeachment em 2016.
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"Porque a gente diz que 'ditadura nunca mais', que daqui pra frente é 'democracia sempre'. 'Democracia sempre' sem uma estrutura de organização popular não se mantém, sinto informar."
A advertência ressoou como uma senha em movimentos como MST (dos sem-terra), MTST (dos sem-teto) e UNE (União Nacional dos Estudantes), que já previam mobilização permanente para fazer avançar suas agendas de interesse, em boa parte alinhadas com o discurso de Lula.
"É uma fala de quem sabe que foi golpeada por grupos poderosos e que a organização e a mobilização populares não tiveram forças suficientes para impedir", diz Raimundo Bonfim, coordenador nacional da CMP (Central de Movimentos Populares) e filiado ao PT.
Segundo ele, é consenso no segmento que a vigilância será necessária "para implementar o programa vitorioso nas urnas e impedir tentativas de golpe". Porta-vozes dos militantes descrevem um período de profunda crise, que obriga os setores organizados a se equilibrarem entre cobrança e endosso.
Os movimentos conquistaram espaço na administração depois do afastamento que começou com Michel Temer (MDB) e atingiu níveis inéditos sob Jair Bolsonaro (PL). O ministro Márcio Macêdo (PT-SE) assumiu a Secretaria-Geral da Presidência com o discurso de que agora o segmento deve "se sentir em casa".
"Acho que é uma fala [de Dilma] importante porque reconhece as organizações da sociedade civil como pilares da democracia", diz Josué Rocha, da coordenação do MTST, aliviado com uma aproximação que ocorre "depois de quatro anos de ataque e criminalização".
"Nossa mobilização será fundamental", afirma a presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes), Bruna Brelaz. "Temos que ser guardiões da democracia e da reconstrução do Brasil depois da escalada autoritária, com a radicalização do discurso fascista, que alimentou uma parte da população."
A Secretaria-Geral concentrará o diálogo com os movimentos no governo, mas há planos de descentralizar a tarefa, com representantes em outros ministérios para ouvir as reivindicações de cada área.
Em dezembro, após ser convidado para assumir a pasta, Macêdo negou em entrevista à Folha a possibilidade de perda de autonomia das partes e disse que "nem os movimentos vão ser correia de transmissão de governo nem o governo vai ser aparelhado pelos movimentos sociais".
O horizonte, contudo, é complexo. A nova gestão terá o desafio de contemplar demandas como reforma agrária e clamores por investimento em moradia e educação pública em um contexto de aperto orçamentário e diálogo obstruído com parte significativa da população e do Congresso.
Ao assumir como ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira (PT-SP) sinalizou disposição para atender aos pedidos, mas também fez a ressalva de que nem tudo é possível.
"Iremos trabalhar com porta aberta [para os movimentos], em um diálogo permanente, acolhendo sugestões e críticas, naquela 'amizade incômoda'. Venham pra cima", disse.
Já a nova ministra das Mulheres, Aparecida Gonçalves, deixou clara a vontade de ter o movimento de mulheres como parceiro. "Elas vão me ajudar a cobrar também, né? Eu também não vou ter medo nenhum de dizer: 'Gente, socorro, estou precisando de ajuda'", afirmou Aparecida à Folha.
Procurados, Macêdo e Dilma não responderam.
A fala da ex-presidente, com a menção embutida ao impeachment, resgata o debate sobe o papel de movimentos sociais na articulação contra a deposição da petista. Uma das críticas é a de que forças sociais e partidárias subestimaram a ameaça inicialmente e tiveram uma reação tardia.
Por fim, sobreveio a tal ruptura impossível de enfrentar, como resumiu Dilma na segunda-feira.
Bonfim, da CMP, cita manifestações de rua de apoio à petista convocadas em resposta aos atos contrários para contestar a percepção de inércia dos setores populares. Ele reconhece, porém, que uma mobilização mais densa só aconteceu quando as forças de direita já estavam avançando.
Para a cientista política Talita Tanscheit, o PT e partidos aliados falharam ao minimizar o risco naquele momento, mas a relação de Dilma com parte dos movimentos de sustentação do governo já estava estremecida por causa da política de ajuste fiscal do então ministro da Fazenda, Joaquim Levy.
A pesquisadora afirma que uma análise em retrospecto leva à conclusão de que a queda de Dilma seria inevitável por estar configurado o cenário clássico para um impeachment: escândalo de corrupção, baixa popularidade, crise econômica e conflitos políticos no Congresso.
"O novo governo Lula aponta para a incorporação da sociedade civil na produção de políticas públicas, como foi nos outros mandatos. No passado, essa interlocução não impediu que os grupos pressionassem o governo, tivessem críticas ou fizessem oposição a determinadas medidas", diz ela.
"Minha impressão é que os movimentos vão aproveitar a retomada dos conselhos, conferências e estruturas participativas que foram esvaziadas e serão muito mais brandos neste primeiro momento do que foram em 2003, por entenderem que o processo de recuperação da democracia é lento."
Para Talita, que é ligada à Universidade do Estado do Rio de Janeiro e à Universidade Diego Portales (Chile), o governo Lula 3 não escapa à fórmula que pode resultar em impeachment, mas o risco é atenuado por fatores que vão da escolha do vice, Geraldo Alckmin (PSB), à conjuntura econômica.
"Não vejo cenário propício para isso porque a recuperação da estabilidade política e democrática do Brasil é fundamental para a nossa recuperação econômica. E há muitos interessados na nossa reabilitação econômica, não só internamente, mas também na comunidade internacional."