Estudioso da comunicação política e da democracia digital pela Universidade Federal da Bahia, o professor Wilson Gomes acredita que os ataques terroristas perpretados em 8 de janeiro são o ápice de um movimento social de direita marcado pela irracionalidade. No entendimento do acadêmico, o radicalismo que destruiu os três edifícios da República é a demonstração mais avassaladora de um movimento com origens no início da década de 2010.
Gomes observa, no entanto, que essa corrente extremista não está presa à figura do ex-presidente Jair Bolsonaro, pois se alimenta de ideias antidemocráticas que são anteriores e transcendem o personagem. "As pessoas já projetaram isso em Bolsonaro. É um sujeito que já está fora de controle. Inclusive, se ele se rebelar contra esse movimento, não tem nenhum problema. O movimento iria contra ele. O bolsonarismo é diferente de Bolsonaro."
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Como o senhor enxergou os atos praticados em 8 de janeiro?
Foi muito grave. Há muitas leituras. A sugestão mais evidente é pensar que houve uma espécie de invasão do Capitólio à brasileira. O 6 de janeiro dos Estados Unidos foi o nosso 8 de janeiro de 2023. Naturalmente, lá foi o dia da infâmia. É uma coisa gravíssima na história americana que uma população de sediciosos invada o coração da República. Não se deve subestimar o efeito disso na nossa República, embora nossa República já tenha passado por muita coisa. Tivemos dois golpes de Estado no século passado (Getúlio Vargas e período militar). É assustador. Mas isso não pode diminuir o impacto do 8 de janeiro. Foi uma coisa avassaladora, que não tem cabimento. Nossa última ditadura começou em 1964. Temos um arco de seis décadas em que não aconteceu nada desse nível. Foi uma tentativa atabalhoada de golpe de Estado — o que não é pouco.
Qual a explicação para isso?
Formou-se uma tempestade perfeita. Havia condições nesse sentido. Temos aqui um período tremendo no país, iniciado em 2013, que está completamente fora da caixinha. Como dizem por aí, parece que o país tomou uma cachaça pesada e vem fazendo uma besteira atrás da outra. Tivemos uma presidente reeleita em 2014, mas foi reeleita já perdendo a eleição. Há ainda um conjunto de frustrações, em 2013 e 2014. Depois, vê-se sair do armário uma extrema direita, feroz, ogro, antirrepublicana. Pouco a pouco, notou que tinha poder político. Em 2015, trabalhou duramente pelo impeachment de Dilma Rousseff — e conseguiu em 2016. Aí vem o governo Temer, com episódios de corrupção. O termo Lava-Jato vem comendo solto no país, como uma forma de punitivismo, uma política de ódio, de raiva, de fúria e antipolítica. Então, são quase 10 anos dessa avalanche crescente.
Houve o nascimento de uma geração radical?
Sobre a radicalização, eu comparo um pouco o Brasil com o que aconteceu com os meninos de origem muçulmana na Europa. Eles descobriram grupos extremistas pelo YouTube e se radicalizaram. E, de repente, o pai descobre que o filho entrou no Estado Islâmico. Aconteceu um pouco isso no nosso país. Eu tinha amigos que pareciam convertidos, quase como que para uma religião.
O senhor citou dois golpes ocorridos no Brasil que aconteceram pela ação de quem detinha um poder público. Mas, nos atos de 8 de janeiro, não eram necessariamente agentes políticos. O poder público estava disfarçado em meio aos golpistas?
É inegável que o bolsonarismo radical, hoje, é um movimento social. É preciso dizer, contudo, que o bolsonarismo não é exatamente o sujeito que votou em Bolsonaro. Tem muita gente votou em Bolsonaro por razões pragmáticas, até ideológicas, mas não para aderir à identidade. As pessoas votam em Bolsonaro, mas não são Bolsonaro. O movimento bolsonarista, por sua vez, é o sujeito que se identifica com os valores, adota certas narrativas, se sente parte de alguma coisa. Isso quer dizer que o movimento foi espontâneo? Não. Porque, na verdade, o bolsonarismo se institucionalizou como governo durante quatro anos.
O bolsonarismo surgiu antes de Bolsonaro?
Além desse período em que Bolsonaro sentou-se no trono de ferro do Brasil, houve os anos de preparação para isso. Havia um movimento ultraconservador contra os direitos humanos. Eu mapearia esse momento a partir de 2011, que foi formado ao redor de pastores evangélicos, de militantes contra os direitos humanos, com reação aos direitos dos homossexuais, que foi recrudescendo. É o que se chamava na época de 'cercadinho dos feios, sujos e malvados'. Muito antes dos influenciadores sofisticados, havia uma militância em ambientes digitais, orbitando ao redor de figuras importantes, divulgando teses que as pessoas não sustentariam em uma reunião de família.
A que figuras o senhor se refere?
Se Bolsonaro não tivesse aparecido, e Eduardo Cunha não tivesse cometido o suicídio sacrificial para matar o mandato de Dilma, talvez agora nós estaríamos com o cunhismo, e não o bolsonarismo. Já havia uma figura assim. Já existia uma militância em volta de Cunha. Toda essa bancada da Bíblia, da bala no Congresso Nacional, por exemplo. Assim como os conservadores passaram a orbitar em volta de Marco Feliciano, quando ele assume aquela comissão de Direitos Humanos no Congresso. De repente, o Cunha "morre" politicamente. Mas o movimento, as intenções, esse sentimento antipolítica de desconforto ultraconservador, está ali à disposição.
Os atos do dia 8 foram um salto no extremismo de direita no Brasil?
Em 2016, nos Estados Unidos, e em 2018, no Brasil, vemos um movimento com chances eleitorais. E é um movimento que diz o seguinte: 'Nós vamos dar um cavalo de pau, mas nós não vamos dar um golpe. Não precisa disso. Vamos fazer uma revolução pelos meios que a democracia liberal coloca à nossa disposição: apresentar uma candidatura e ganhar a eleição'. É a institucionalização da revolução que se pretendia com esse movimento. Em 2020, o Trump perde. Isso tem um impacto enorme. Se Trump tivesse sido reeleito, o que seria de nós? Em 2022, no Brasil, as forças democráticas reagiram e disseram: 'Olha, vamos parar de brigar entre nós e vamos enfrentar esse homem, porque não vai dar para viver'.
O bolsonarismo não se institucionalizou, então?
Não, no sentido de que foi domesticado, de que passou a fazer parte do sistema. Até porque Bolsonaro continua se comportando como um outsider. Sem apetite para governar, mas com grande apetite para o mando. Ele não mostrou capacidade de ser um líder carismático desse movimento forte no Brasil.
Apesar da inaptidão como estadista, Bolsonaro quase foi reeleito.
Porque o movimento não é Bolsonaro. A questão é ter um líder carismático. Tem alguma outra pessoa para substituir Bolsonaro nessa função? Não tem. Mourão, por exemplo, não tem esse carisma. As pessoas já projetaram isso em Bolsonaro. O bolsonarismo é diferente de Bolsonaro. Bolsonaro é o símbolo. Há muito de religioso nisso.
Qual será o futuro das redes sociais após esses episódios?
Não sei se vai mudar muita coisa. Uma coisa são as plataformas; outra coisa é o que as pessoas fazem nelas. Com relação às plataformas e suas políticas, muita coisa mudou desde 2020. Há um esforço de intervir em seu próprio negócio de modo que elas não sejam consideradas como base para uma guerra de ódio, o fim da democracia. Não é vantagem para o seu negócio ter essa imagem. Então, houve muito mais intervenções, como desenhar um algoritmo para emperrar determinado tipo de coisa. Nesse ponto, sim, acho que há um esforço de cooperação.
O problema está ou não nas redes sociais?
Está nas redes sociais, no segundo sentido — no uso social dessas redes. Nunca se atualiza quem é o ator principal dessas plataformas, que é povo, são as pessoas. A questão é o que todos fazem com essas plataformas. Esse é o problema. Há fake news porque as pessoas adoram fake news. Adoram passar, distribuir, consumir fake news. Esse ambiente é de muito ódio, porque as pessoas adoram ódio. Ódio é um sentimento legal, que cria comunidades. É preciso considerar os cidadãos pelo uso que eles fazem das comunicações digitais. Eu coordeno um instituto de democracia digital e digo: tudo o que há no digital pode ser usado para produzir mais democracia, ou pode ser usado para acabar com a democracia.
Qual sua opinião sobre a resposta institucional aos ataques?
A resposta do Judiciário tem sido forte, coerente. Havia todo um discurso sobre os excessos, a mão pesada do ministro Alexandre de Moraes. Isso ficou invalidado no dia 8. Se com a mão pesada do ministro, os caras entram nos Três Poderes da República como se fosse um passeio no parque? O que é isso? Quer dizer que se juntar 2 mil pessoas, posso invadir o STF? Os bolsonaristas mostraram que isso é possível, invadir os três edifícios como se não fossem nada. Se não fosse o Moraes atuando como zagueiro, como seria? É grave demais aquilo. Desculpe, mas o argumento da mão pesada de Alexandre de Moraes só vale até 7 de janeiro. A partir do dia 8, acredito que faltou mão pesada das instituições.
E as respostas do governo federal?
O comportamento no domingo me pareceu adequado, proporcional. Tentaram articular todas as instituições da República, porque todas foram atacadas. Tentaram jogar dentro de um quadro constitucional. Mas era óbvio, naquela noite, que alguma coisa de muito séria precisava ser feita. Foi apropriado. Até hoje não há quase ninguém discutindo sobre a propriedade do que foi tomado como decisão naquele domingo. O que a polícia de Brasília fez foi gravíssimo. Não aparecer ninguém para defender o coração da República é de uma gravidade absoluta.
Um escândalo. Os policiais fazendo selfie... Isso foi uma tragédia anunciada. Qualquer menino, qualquer tia do zap sabia que podia acontecer alguma coisa de muito grave. Ainda mais na época da civilização digital. Temos rastros digitais de tudo, e ninguém estava preparado para entender o que poderia acontecer naquele domingo? E o governo não sabia? E achou que mandar alguns ofícios ia resolver a coisa? Foi muita incompetência na previsão do dano. Tem mais uma coisa, se você olhar os perfis da Secom e do gov.br, não publicam um tweet desde 31 de dezembro.
Eles (os órgãos de comunicação oficial) não reativaram sequer as contas institucionais da comunicação política. Isso é comunicação para gestão de crise. Hoje as mídias digitais estão inundadas com narrativas de campo de concentração, de velhinha que morreu, e não tem uma comunicação governamental. É uma resposta analógica, para um mundo digital. Não há ninguém disputando a narrativa, disputando a interpretação. Parece que a comunicação digital não foi reinstalada! Não é possível um negócio desses. É um acavalamento de incompetências.
Os governadores apoiaram Lula. Um dos pontos mencionados é um alerta para que esses episódios não se repitam nos estados. Essa ameaça existe?
Aqui na Bahia, não se cria. O bolsonarismo aqui, embora faça muito barulho, tem pequeno efeito sobre a massa. Se foi uma ilha 'Bolsonaro free' nos últimos quatro anos, não vai ser agora que vai ter esse tipo de coisa. Mas, em outros estados, sim. Acho que São Paulo se assustou, com aquela multidão na 23 de Maio.
Mas essa preocupação procede para os outros estados, ou é algo mais dirigida para Brasília?
Brasília tem um valor simbólico. É o fulcro da coisa. Mas obviamente não quer dizer que o movimento não mude. Não é uma coisa muito racional Não tinham um plano. A revolução deles parecia uma excursão de adolescente, fazendo selfies e lives para dizer 'Olha mamãe, estou aqui'.
Uma excursão extremista?
É uma revolução exibicionista, instagramável. É a revolução do TikTok. Isso é racional? Não é. Foi um plano mal desenhado? Foi. Foi um golpe de estado mal desenhado. Então não espere muita racionalidade desse pessoal.
Para onde vamos agora?
Em primeiro lugar, espero que a sociedade brasileira, o governo e as instituições se deem conta de que não se deve subestimar o potencial danoso do movimento bolsonarista à democracia, à vida pública, ao nosso bem-estar. O movimento bolsonarista provou, definitivamente, que é incompatível com a democracia liberal. Não aceita Três Poderes, não aceita o resultado das eleições. Eles querem simplesmente que Bolsonaro governe perpetuamente o Brasil para produzir sua revolução dos costumes e para impedir o comunismo de destruir tudo. Segundo, espero que o governo federal seja capaz de colocar inteligência digital para ser capaz de prever, de antecipar, de evitar danos. Não tem sentido, em uma sociedade digital, que o governo seja analógico. São minhas duas esperanças.