O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) frustrou as expectativas de economistas e do mercado financeiro, que esperavam que o novo mandato fosse uma repetição do primeiro. “Pelas declarações mais recentes, inclusive na parte econômica do discurso de posse, Lula se aproxima do período da Dilma (Rousseff)”, lamenta o economista, ex-ministro da Fazenda e sócio-fundador da Tendências Consultoria, Mailson da Nóbrega.
Segundo ele, Lula ainda não se deu conta do desafio que tem pela frente, porque não herdou um país mais organizado, como o deixado por Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em 2003, e, agora, está diante de uma verdadeira herança maldita. “Lula recebe um país, como se sabe, com uma situação fiscal muito delicada e com um crescimento medíocre. E o discurso dele parece sinalizar que basta ter chegado ao governo para superar uma transformação tal que a felicidade chega”, alerta, em entrevista ao Correio.
Ao avaliar o pacote de medidas fiscais de R$ 242,7 bilhões anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na última quinta-feira, Mailson destaca que o plano tem o mérito de tentar reduzir o rombo orçamentário de R$ 231,6 bilhões previsto para este ano. Contudo, no momento, não havia demanda para isso. “A grande espera hoje do mercado é o novo arcabouço fiscal. Então, parece que o anúncio foi para dar a impressão de que a agenda econômica não seria prejudicada pelos acontecimentos de 8 janeiro”, afirma.
No entender do economista, o pecado original dessa largada do governo é desprezar a situação fiscal do país e a restrição orçamentária e não se preocupar com uma revisão dos gastos obrigatórios. A seguir, os principais trechos da entrevista de Mailson concedida ao Correio:
Depois de duas semanas, qual sua avaliação das primeiras falas do presidente Lula e dos ministros?
Eu diria que Lula frustrou as expectativas de economistas e do mercado financeiro, que esperavam que o novo mandato fosse uma repetição do primeiro. Ou seja, o Lula 3 seria uma reprodução do Lula 1. Pelas declarações mais recentes, Lula se aproxima do período da Dilma, com visões intervencionistas muito fortes e com uma percepção equivocada do papel das estatais no cenário econômico brasileiro, como se o Brasil voltasse aos anos 1970, 1980, ou mesmo ao período da era da derrama de dinheiro do Tesouro do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) no governo Dilma. É o período da nova matriz econômica, das pedaladas, da expansão fiscal e de uma volta das visões protecionistas na economia. Lula disse no discurso de posse que não é aceitável importar plataforma de petróleo, aeronaves, microprocessadores. Plataforma de petróleo foi uma ação desastrosa e fonte de grande corrupção. Insistir em microprocessadores é a volta da política de informática do governo militar, que foi um fracasso. E achar que o Brasil é competitivo na exportação de aeronaves, isso é verdade se você estiver falando da Embraer.
Que é uma estatal privatizada…
A Embraer é competitiva em jatos executivos e de passageiros de até 150 lugares. Mas ainda não chegou ao ponto de competir com os aviões de grande porte da Boeing e da Airbus. Lula ainda sinalizou com a ideia de reindustrialização e citou no discurso, com apoio do BNDES a custos adequados. Em outras palavras, isso é a volta de subsídios financeiros que não levam em conta uma realidade posterior ao primeiro mandato de Lula: o surgimento do mercado de capitais como fonte de crédito de longo prazo. O BNDES, nesse campo, perde relevância, porque o setor privado conversa melhor com o setor privado via mercado de capitais. O BNDES é, por natureza, um órgão burocrático.
No novo formato da equipe econômica, o Ministério do Planejamento voltou, separando o planejamento da gestão. Isso não vai ser complicado?
É um exagero. A não ser que o objetivo seja gerar mais postos ministeriais, não acho que faça sentido. O Ministério do Planejamento fez gestão nos últimos 40, 50 anos, sem problemas. O que foi correta foi a volta dos ministérios do Planejamento e do Mdic (Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços). Essa ideia de um Ministério de Economia paquidérmico, poderoso, já não tinha funcionado bem no governo Fernando Collor, com a ex-ministra Zélia Cardoso. Guedes tinha a ideia de ter um ministro poderoso, confundiu quantidade com qualidade e fundiu cinco ministérios num só. O ministro mais poderoso do Brasil foi Delfim Netto, e ele só tinha o ministério da Fazenda. Não se pode ter ilusão de que não vai haver conflito entre essas duas pastas. O potencial de conflito entre o Planejamento e a Fazenda sempre existiu, às vezes por briga de burocracia.
Mas no discurso de posse da ministra do Planejamento, Simone Tebet ressaltou que Lula queria opiniões divergentes na equipe…
É interessante como comprou-se essa ideia de que o bom é ter opiniões divergentes. Isso é uma visão completamente errada, a meu ver. As opiniões divergentes são importantes no debate público e no seminário acadêmico. No governo, o que deve prevalecer é a unidade. Então, se já era difícil quando não havia divergência, a convivência dos dois ministérios, imagine quando há divergência. O discurso dela foi correto. Eles vão fazer o possível para trabalhar em conjunto, para não haver conflito, mas é muito difícil que não haja.
Lula vai ter muita dificuldade para governar com uma economia que não cresce e com uma equipe que não é coesa?
Lula parece não ter se dado conta do desafio que tem pela frente. Ele recebe um país, como se sabe, com uma situação fiscal muito delicada e com um crescimento medíocre. O discurso dele (Lula) parece sinalizar que basta ter chegado ao governo para superar uma transformação tal que a felicidade chega, vai ter dinheiro para todo mundo, para reequipar as Forças Armadas, vai ter picanha para os pobres. Esse discurso do presidente de certa forma ufanista influenciou o discurso dos ministros que tomaram posse. Se olharmos as falas na quase totalidade incluem recomposição orçamentária, as reclamações do Orçamento menor. Parece que as pessoas não perceberam que essa é a pura realidade do Brasil.
Se você tem um teto de gastos e as despesas obrigatórias têm um crescimento vegetativo, as despesas discricionárias vão minguando e começa a faltar dinheiro para a ciência e tecnologia, para a cultura, para os investimentos... Mas os discursos são como se fosse uma revogação completa do teto de gastos e se restabelece todos os gastos do passado. E, nesse caso, o país vai entrar numa trajetória muito explosiva da dívida pública.
Qual está sendo o pecado original do Lula nessa largada de governo na área econômica?
Desprezar a situação fiscal do país e a restrição orçamentária. O discurso do Lula parece sugerir que o Orçamento é elástico. Que pode fazer tudo e não vai acontecer nada. O próprio ministro da Casa Civil (Rui Costa) disse que é mais importante fazer um gasto eficiente, o gasto bem feito do que obedecer o teto de gastos. Qual é a mensagem? Se o gasto for bem feito, você pode fazer à vontade, sem limite.
E não dá para ficar emitindo título da dívida e, ao mesmo tempo, criticar o mercado “nervosinho”, que financia dívida do governo...
Esse é um erro que Lula comete sempre. Ele acha que o Tesouro Nacional deve aos bancos. Não. O Tesouro deve àquelas pessoas que põem o dinheiro delas diretamente nos fundos de investimentos e de previdência privada, que são os que mais compram títulos públicos. Se o Lula tiver uma dimensão adequada da grave situação fiscal do Brasil, verá que, se não resolvida, condenará o país à mediocridade econômica, à inflação, e aos juros altos e, portanto, prejudicando, basicamente, os mais pobres. Se ele tivesse dimensão, teria feito outro discurso de posse, parecido com o de Winston Churchill, que, quando assumiu o cargo de primeiro-ministro britânico, prometeu apenas sangue, suor e lágrimas.
Lula deveria ter alertado a sociedade de que nós vamos precisar de medidas duras para recuperar a função do Orçamento público e restaurar a capacidade de investimento do Estado. Um país não pode dar certo se o governo central dispõe apenas de 5% a 7% do Orçamento para fazer políticas públicas. É por isso que falta dinheiro para tudo. E, se o novo governo quiser restabelecer os níveis de gastos do passado, a dívida vai para uma trajetória explosiva.
Mas e agora, o que a gente pode esperar desse novo governo do PT?
Eu diria que se o governo não conseguir medidas ou formulações que gerem o ano fiscal crível, nós vamos para uma situação complicada. Porque isso vai gerar uma queda de confiança, que significa depreciação do câmbio e aumento da taxa de juros futuras. Significa menos crescimento e mais inflação. Isso tudo vai se abater, em maior intensidade, nas populações mais pobres. E, além do mais, o Lula está pegando uma situação que é oposta àquela que ele contou em 2003.
O ministro Fernando Haddad tem prometido zerar o deficit criado em grande parte pelos R$ 168 bilhões de gastos fora do teto aprovados com a PEC de Transição, mas ele ainda não falou de cortes de subsídios ineficazes…
Isso tem dois problemas que precisam ser considerados. Esses incentivos existem porque tem grupos poderosos que conseguiram a sua aprovação. E você vai ter uma mobilização deles no Congresso para barrar a redução dos benefícios, sobretudo se eles abrangerem alguma coisa na Zona Franca de Manaus. É preciso considerar ainda a partilha dos impostos federais. Estados e municípios ficam com 70% da arrecadação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e com metade do Imposto de Renda. Quando Paulo Guedes reduziu o IPI, ele fez bondade com o chapéu dos outros e tirou dinheiro dos estados, dos municípios e dos fundos regionais. Essa é uma situação tão complicada que, em resumo, se o governo quiser aumentar a carga tributária para fazer superavit primário via tributação de dividendos, por exemplo, será preciso cobrar o dobro, porque a metade da arrecadação vai para estados e municípios.
Mas, antes de mexer nos subsídios, é preciso fazer a reforma tributária?
Reforma tributária não altera isso. Eu acho que isso é um erro da Constituição de 1988, que veio para ficar e que continua sendo cometido. Todo ano, os municípios conseguem uma emenda constitucional aumentando a fatia de receita nos fundos regionais.
Qual a sua avaliação do pacote de R$ 242,7 bilhões de medidas fiscais anunciado por Haddad?
O pacote tem o mérito de procurar reduzir o deficit previsto no Orçamento. Agora, não sei se havia demanda dos mercados pela apresentação desse programa, já que o ministro podia ter ficado mais tempo a pensar na proposta. A grande espera hoje, no mercado, é o novo arcabouço fiscal.
O governo estima, por exemplo, um aumento de R$ 36,4 bilhões de receita neste ano, mas o cenário é de desaceleração da economia…
As previsões, tanto do Banco Central, do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial, quanto do mercado financeiro e das consultorias, desde o fim do ano passado, são de desaceleração da economia em 2023. E uma das estimativas mais otimistas é a do FMI, de crescimento de 1%. Só o ex-ministro Paulo Guedes (da Economia) que falava no Brasil vai crescer mais de 2,5% neste ano. Portanto, essa circunstância já deveria ter sido levada em conta nas projeções desse pacote. Por outro lado, acho que tem duas medidas do plano que não são adequadas e o governo devia ter pensado melhor.
Quais?
Primeiro, é a volta do voto de qualidade, que é essa ideia de dar ganho de causa ao Fisco, em caso de empate nas votações do Carf. Isso é contra a tendência mundial de julgamentos em que a votação termina empatada. A outra é recomeçar essa história de Refis. Pode até ter outro nome, mas o objetivo é criar incentivos, com perdão de multas e juros e até de principal, dependendo do caso, para o contribuinte ajustar contas com a Receita. Isso foi muito utilizado na época do PT, mas é uma coisa desastrosa, porque cria o incentivo a atrasar o pagamento de tributos. É um incentivo ao aumento dos maus pagadores, porque é muito mais barato se financiar no Fisco do que nos bancos. Você pode, inclusive, se financiar a custo zero, se houver perdão de multas e juros. Essa é uma lição que todo administrador público deveria tomar. Nunca se faz a primeira anistia, porque a segunda virá. E quando a segunda vier, não faça a terceira.
Quer dizer que o plano tem mais pontos negativos do que positivos?
Não, mas parece que foi feito às pressas para mostrar que o governo está funcionando em busca do equilíbrio fiscal novamente. Não precisava disso. O ministro da Fazenda tem prazo até agosto para apresentar um novo arcabouço fiscal. E, certamente, vai conter um elemento de aumento de receita que pode ser esse conjunto de medidas ou algo mais. Eu espero que tenha um componente de controle de gastos. Não é ruim apresentar esse programa, só que não era tão urgente neste momento. Parece ter sido ideia de um burocrata.
Aliás, o ajuste do pacote foi praticamente todo do lado da receita e muito pouco do lado do gasto...
A rigor, não haverá ajuste fiscal do Brasil sem que duas questões muito espinhosas sejam enfrentadas. Primeira, atacar a vinculação de recursos a gastos com educação e saúde. Isso é uma forma primitiva de decidir sobre prioridades. É muito ruim para a economia, porque gera desperdícios. E, a segunda é rever os gastos obrigatórios. O país não pode ir longe, nem ter um Orçamento viável se tiver só 5% a 7% das despesas para tocar as políticas públicas.
Qual deve ser o modelo da nova âncora fiscal?
É uma missão muito difícil que o ministro da Fazenda tem, porque, na minha avaliação nenhum arcabouço fiscal será crível se não contiver um elemento de controle de gastos. Ou seja, o teto de gastos é fundamental para a credibilidade da nova âncora fiscal. Claro que tem que ser reformulado, aproveitando a experiência de seis anos de vigência. Mas, ao contrário do que disse o presidente Lula, não é uma coisa estúpida. Pelo contrário, foi uma medida sensata. Foi um freio de arrumação, porque o país estava em uma trajetória suicida. Sem o teto de gastos, a âncora será frágil.
Por quê?
Porque dívida nunca é uma âncora exclusiva. Existem fatores que influenciam a dívida sobre os quais o governo não tem nenhum controle. Por exemplo: um surto inflacionário que obriga o Banco Central a aumentar a taxa de juros; uma crise mundial que leva à fuga de capitais para portos mais seguros, e que gera depreciação cambial e um câmbio mais alto afeta a parte da dívida; as calamidades; decisões do Judiciário impondo o pagamento de despesas, como de precatórios. Tudo isso altera a dívida e o governo não tem nenhum controle.
O ex-ministro Paulo Guedes gosta de dizer que deixou as contas arrumadas, porque reduziu a relação dívida-PIB. Mas há muita coisa escondida debaixo do tapete, como o precatório. O governo Bolsonaro deu um calote bilionário. Como o senhor vê isso?
Essa melhora que houve no campo fiscal tem pouco a ver com o governo. Ela ocorreu, sobretudo em 2022, por fatores alheios, como a alta dos preços das commodities por causa da guerra na Ucrânia. E isso aumentou a arrecadação. Houve uma expansão dos serviços que veio acima das projeções do mercado. É simplesmente resultado da medida em que se reduz o impacto da pandemia, os serviços foram recuperando o espaço. Por outro lado, o teto de gastos ajuda na redução da manutenção da relação entre despesa federal em relação ao PIB. Não há nenhum mérito do governo. Quanto ao calote dos precatórios naquela época o correto teria sido excluir os precatórios do teto, porque é uma despesa imprevisível que não tem nenhum controle do governo. É decisão do Judiciário.
Mas o Guedes sempre gosta de se vangloriar de que conseguiu também reduzir a despesa em relação ao PIB…
Foi a ação do teto de gastos e não dele. Se não houvesse teto, a despesa tinha subido. Mas cada governo faz o marketing mais conveniente. E o PT é muito bom nisso. E todo mundo do governo agora está dizendo que vão por o pobre no orçamento. Mas o pobre nunca saiu. Isso é uma invenção do PT, assim como ele inventou que tinha recebido uma herança maldita do Fernando Henrique. O pobre está no Orçamento desde o governo (José) Sarney.
Agora ele tem uma verdadeira herança maldita?
Agora sim. E mesmo que não fosse do governo (Jair) Bolsonaro. A realidade mundial é menos favorável do que naquela época. Por isso, todas as projeções indicam uma desaceleração da economia e em 2023. Aliás, essa desaceleração ocorreu no terceiro trimestre, mesmo com os estímulos fiscais. Tem algumas projeções mais otimistas, como o FMI, que estão em torno de 1%.
E sem crescimento, não tem arrecadação e as promessas dele não cabem no Orçamento…
É, mas temos ainda que dar o benefício da dúvida. O governo tem apenas duas semanas. Pode ser que, diante das informações que vão revelar uma realidade, Lula reformule os seus conceitos e tome ciência da grande realidade que herdou um país com crescimento medíocre. O discurso do ministro do Mdic, o vice Geraldo Alckmin, foi um discurso correto. É preciso um esforço para reindustrializar o Brasil, porque tudo indica que o país tem uma desindustrialização precoce. Mas tem que atacar o que causou isso.
O que seria?
Foi um conjunto de fatores que não são reversíveis no período de governo. São, primeiro, o prolongamento da estratégia de substituição de importações, quando ela já era ruim para a economia, porque desestimula a inovação, acomoda os empresários e prejudica os consumidores. Segundo, o sistema tributário é caótico. Tem a má qualidade das estradas no Brasil, a má qualidade da educação do trabalhador, que é lamentável. Tudo isso reduz a produtividade, que é o principal fator de geração de riqueza. Grande parte dos industriais está esperando a volta da política industrial do passado, que combina protecionismo, com intervencionismo e subsídios. E tudo isso gera uma indústria com pouca capacidade de inovação.
E qual é a saída?
As políticas industriais modernas são voltadas para incentivar a inovação. O mercado privado faz o resto. É preciso fazer reformas profundas, que não vão acontecer num único mandato de governo. Dificilmente o governo Lula vai reverter, de forma importante, o processo de desindustrialização. O que ele pode fazer é tomar medidas que permitam, no longo prazo, a indústria se tornar mais competitiva. Felizmente, tem um projeto para isso, que são as propostas de reforma tributária do Congresso, a PEC 45 (da Câmara) e a PEC 110 (do Senado), que estão nessa direção. Mas o BNDES não pode voltar a exercer o papel que teve no passado. Não tem dinheiro para isso.