Desde o dia 8 de janeiro, quando milhares de pessoas invadiram as sedes dos Três Poderes, em Brasília, autoridades brasileiras passaram a registrar um tipo diferente de violência: torres de transmissão de energia que atendem milhões de pessoas foram derrubadas ou vandalizadas.
Os atos coincidiram com convocações de militantes bolsonaristas para protestar contra a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Desde então, o governo federal anunciou a criação de uma força-tarefa para monitorar as redes e evitar novos atentados.
Na quarta-feira (18/1), o Ministério Público Federal (MPF) tinha pelo menos três investigações em curso para apurar se há ligação entre os atos do dia 8 de janeiro e os ataques às torres de energia.
De um lado, especialistas em Direito divergem sobre se essa prática pode ser enquadrada como crime de terrorismo, com penas que podem chegar a 30 anos de prisão. De outro, estudiosos sobre conflitos armados e forças armadas apontam que a destruição ou o comprometimento desse tipo de infraestrutura podem ser encarados como uma das estratégias do que vem sendo chamado de "guerra híbrida".
Torres derrubadas
Dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) enviados à BBC News Brasil apontam que, desde o dia 8 de janeiro, 16 torres foram alvo de ataques. Desse total, quatro foram derrubadas e outras 12 foram danificadas.
O Estado que concentra a maior parte dos casos é Rondônia, onde três foram derrubadas e 6 foram avariadas. O Estado deu a segunda maior votação proporcional ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno das eleições de 2022. Lá, ele obteve 70,66% dos votos.
As autoridades temem que a continuidade desse tipo de ataque possa comprometer o abastecimento de energia elétrica a milhões de pessoas, uma vez que a maior parte do sistema elétrico brasileiro é interligado. Isso significa que um problema em uma torre em Rondônia pode, em tese, afetar o abastecimento em outras regiões do país.
Guerra híbrida
Os ataques às redes de energia registrados nos últimos dias estão em linha com convocações feitas por grupos bolsonaristas para ações direcionadas a refinarias de combustíveis. Na semana passada, o pesquisador Leonardo Nascimento, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), havia detectado um aumento no número de menções a tentativas de bloqueio ao acesso de refinarias na esteira dos atos de 8 de janeiro.
Refinarias de combustíveis, assim como torres de energia, são chamadas, no jargão militar, de "infraestrutura crítica". Esses equipamentos são considerados críticos porque, sem que estejam operando plenamente, o funcionamento da própria sociedade fica comprometido.
Na avaliação da professora da Escola Superior de Guerra (ESG) Mariana Kalil, se os danos causados às torres pelo Brasil tiver sido causado pelos mesmos grupos que invadiram as sedes dos Três Poderes, então o país estaria diante de um ato de uma "guerra híbrida".
"Guerra híbrida é um tipo de guerra de última geração que envolve diversos tipos de guerra que foram se desenvolvendo ao longo da história, mobilizando todos os aspectos materiais e psicossociais de uma nação sem que ela necessariamente tenha consciência de que está mobilizada e de que pode estar prestes a ceder à vontade do inimigo, que muitas vezes sequer compreende como inimigo", explica a professora.
"Quando falamos em guerra híbrida, o complicado é que ela não é mais declarada. Ela fica subentendida e acontece não necessariamente com bombas e artilharia", complementa o antropólogo e professor titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Piero Leirner, que estuda as Forças Armadas há 30 anos.
Kalil afirma que, nesse tipo de conflito, os próprios agentes envolvidos são difíceis de detectar e que diversas técnicas são utilizadas.
"Uma guerra híbrida pode envolver aspectos de guerra convencional (entre Estados), de guerra irregular ou assimétrica (entre Estados e atores não-estatais), de guerra nuclear e de guerra de informação (ou psicológica). O objetivo é subverter a vontade e a capacidade do inimigo frequentemente sem que este sequer reconheça que está enredado naquele conflito", disse a professora.
É neste contexto fluído que Mariana Kalil afirma que os ataques às redes de energia elétrica do país podem ser interpretados como um ato dentro de uma "guerra híbrida".
"Se existe uma ideia entre os indivíduos radicalizados que executaram os atos do 8 de Janeiro de que o Brasil estaria no espectro de uma guerra híbrida que teria como objetivo a implantação do comunismo no país, esses indivíduos estariam executando uma profecia autorrealizável: por acreditarem que estão numa guerra híbrida, eles se engajam em atos de guerra híbrida, que no caso incluem a sabotagem de infraestrutura crítica como as torres de transmissão", disse a professora.
Tanto para Kalil quanto para Leirner, o Brasil vive espectros (graus) de uma guerra híbrida.
"O país vive aspectos de uma (guerra híbrida), pois no Brasil passou a ser constante uma forma de eliminação e controle gerencial de atores políticos e estatais através de mecanismos de guerra psicológica, 'dossiecracia', perseguição jurídica e produção constante de ameaças que induzem a um estado de insegurança frequente", disse o professor da UFSCar.
"A gente está vivendo no espectro de uma guerra híbrida. Não significa que a sociedade inteira esteja voluntariamente empenhada em uma guerra híbrida, mas há uma porção da sociedade que se enxerga em uma guerra híbrida contra o globalismo, que teria como expressão no Brasil a social-democracia que vai do antigo PSDB passando pelo PT e chegando no PSOL", disse Mariana Kalil.
Leirner, por sua vez, avalia que os ataques às redes de energia são atos comuns em diferentes tipos de conflito, inclusive na guerra híbrida, mas que ainda não seria possível afirmar que os atos registrados nos últimos dias são resultado desse tipo de conflito.
"Isso (derrubada de torres) é comum em qualquer guerra, guerrilha ou guerra civil. Na híbrida também, mas não é uma marca dela. A sabotagem visando criar caos, desordem e confusão é comum [...] é preciso esperar alguma investigação para saber", disse.
Terrorismo ou não?
No ambiente jurídico, há divergência sobre se os ataques às torres de transmissão podem ou não ser considerados atos terroristas, o que poderia levar a penas de até 30 anos de prisão.
Para a promotora de Justiça Celeste Santos, do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), os atos registrados nos últimos dias poderiam ser enquadrados como terrorismo.
"Existem indícios que justificam a investigação por ato terrorista. A destruição de meios de comunicação é um modus operandi comum de organizações terroristas", disse a promotora.
A lei antiterrorismo foi sancionada pela então presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016. Na época, ela foi criticada pela comunidade internacional por ser supostamente vaga na sua definição do conceito de terrorismo o que, em tese, poderia colocar em risco defensores dos direitos humanos ou militantes políticos.
Em um de seus incisos, no entanto, a lei deixa claro que ataques e sabotagem a redes de transmissão de energia são considerados atos terroristas.
O professor de Direito Penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie Rogério Cury, por sua vez, afirma que é preciso que as investigações apontem quais foram as reais motivações dos responsáveis pelos ataques às torres. Segundo ele, dependendo da motivação, os atos podem ser enquadrados de uma forma ou de outra.
"A lei diz que para um ato ser considerado terrorista ele precisa ter sido motivado por: xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião. Se as motivações dos ataques não foram essas, os atos não poderiam ser classificados dessa forma", afirma.
Para o professor, a depender das razões dos responsáveis, os ataques poderiam ser enquadrados na lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, sancionada em 2021 por Bolsonaro.
Ele avalia que há dois artigos que podem se aplicar aos atos registrados nos últimos dias.
Um deles é o uso de violência com o objetivo de abolir o Estado Democrático de Direito. O outro é o de sabotar infraestruturas com esse fim. No primeiro caso, as penas vão de quatro a oito anos de reclusão. No segundo, as penas são de dois a oito anos de prisão.
"O enquadramento dos casos vai depender, fundamentalmente, das motivações que levaram aos ataques", sintetiza o professor.