Após a demora de policiais e militares em reagir aos ataques de radicais bolsonaristas em Brasília em 8 de janeiro, o presidente Luis Inácio Lula da Silva fez nesta semana uma série de demissões e alterações de cargos de militares em órgãos ligados à Presidência e uma ampla reformulação no comando da PRF e da Polícia Federal.
Até quinta (19), haviam sido demitidos 46 militares que trabalhavam na coordenação da administração do Palácio da Alvorada ou no departamento de residência oficial. A exoneração chamou atenção também porque a primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja, havia mostrado no início do mês danos e estragos que teria encontrado no palácio desocupado por Bolsonaro.
Ao longo da semana também foram demitidos 38 militares que trabalhavam no GSI (Gabinete de Segurança Institucional da Presidência), órgão com status de ministério responsável pela segurança do presidente e por assessoramento em questões de inteligência.
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Mas qual serão os efeitos dessas mudanças?
Para a pesquisadora Adriana Marques, do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um processo de desmilitarização é essencial não somente no Palácio da Alvorada e no GSI, mas no governo em geral. A reformulação das polícias também. Mas as demissões e mudanças de cargos não serão suficientes.
"Um dos pré-requisitos de uma democracia saudável é que os militares não tenham nenhum papel na política e não desempenhem nenhuma função além das que estão relacionadas", diz a professora. "Mas essas medidas não são suficientes. Esse processo de radicalização de militares, que se envolveram com política nos últimos anos, não começa com o ex-presidente Bolsonaro. Ele se intensificou no seu governo, mas é anterior e não vai acabar de um dia para o outro."
No caso da PF e da PRF, diz Marques, só trocar as lideranças não é o suficiente. Para a professora, para reverter de fato a radicalização política infiltrada nas Forças Armadas é preciso uma série de medidas que ajudem a aumentar a transparência e a supervisão.
Entre as medidas que podem ser tomadas pelo governo, diz ela, está a necessidade de voltar a discutir a política de defesa.
"Quais são as missões das forças armadas? Elas precisam estar circunscritas de forma que isso afaste os militares de tarefas que hoje não são da sua alçada", afirma.
"Depois desses dez anos de crise política, e de miltares assumindo um monte de funções no governo Bolsonaro, o que a gente vê é que isso foi criando nas gerações mais novas na academia a ideia de que eles têm um horizonte profissional que vai além das tarefas militares."
Nada de novo no front
Marques descarta que haja uma forte reação às remodelações feitas por Lula, tanto na PF e PRF quanto entre os militares porque a troca já era esperada.
"Essas demissões, para usar um termo do mercado financeiro, já estavam precificadas. Obviamente eles sabiam que não iam conseguir manter os cargos, ainda mais no caso de nomes mais ligados ao bolsonarismo", diz ela.
"Mas os militares mantêm o controle de uma série de outras coisas, até a escolha do Ministro da Defesa", acrescenta. A escolha de Lula de José Múcio Monteiro Filho para o cargo agradou os militares.
Certas mudanças na Polícia Federal e na PRF são naturais em uma troca de governo e Lula não foi muito além do esperado. Esse início de mandato, quando o governo ainda não sofreu desgastes, é visto por analistas como o momento ideal para fazer essas mudanças - Marques concorda.
Quanto às Forças Armadas, diz ela, "o alto comando não deu até agora nenhuma indicação de que pretende dar um golpe" e as demissões não diminuíram a enorme autonomia que os militares têm no Brasil - bem maior do que em outras democracias.
Além disso, explica a professora, "o fato das Forças Armadas terem sido muito lenientes com os golpistas teve uma consequência negativa em termos de opinião pública. E os militares levam isso muito em conta, porque o desgaste com a opinião pública os deixa em situação menos vantajosa".
O retorno
Embora muitos dos militares empregados em cargos civis por Bolsonaro fossem da reserva, diversos cargos também foram ocupados por militares da ativa - e com exonerações do Executivo, eles devem voltar para seus cargos originais.
E isso é uma questão problemática, diz Marques. "Eles vão voltar para a tropa, e ai? Como vai ser esse retorno?", questiona a pesquisadora. "Vai haver um enquadramento dessas pessoas dentro das normas democráticas?"
Um desses casos é o do tenente-coronel do exército Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro que foi extremamente próximo ao ex-presidente.
Dispensado da presidência por Lula, ele deve voltar ao seu cargo no Exército. Mas o seu forte envolvimento político pode comprometer a sua atuação na instituição, avalia Marques.
Cid foi indiciado pela PF (Polícia Federal) por produzir desinformação disseminada pelo ex-presidente Bolsonaro.
Marques explica que o papel de supervisionar a aderência dos militares às normas democráticas não é um papel somente do poder Executivo.
"A Justiça e principalmente o Legislativo precisam urgentemente olhar para essa questão. A tarefa deles é rediscutir o nível de autonomia e as prerrogativas que os militares tiveram na nova república brasileira", afirma.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64340996