Jornal Estado de Minas

TERRORISMO EM BRASÍLIA

Três Poderes: servidores e funcionários se unem para restaurar sedes

Imagens e palavras são insuficientes para expressar e comunicar o tamanho da violência que se viu tomar conta da Esplanada dos Ministérios no domingo, 8 de janeiro. Quem testemunhou os estragos se lembra até hoje do cheiro do gás lacrimogêneo espalhado no ar para dispersar a multidão de terroristas.



Os olhos ardidos assistiam incrédulos à destruição daqueles espaços que muitos dos servidores e funcionários das sedes dos Três Poderes consideram uma segunda casa — e, por vezes, até a primeira. Depois da tempestade, não veio a calmaria, mas a recuperação, pelas mãos de trabalhadores imbuídos do senso de responsabilidade e respeito pelo bem público, que segue a todo o vapor.

O diretor-executivo de Gestão do Senado Federal, Márcio Tancredi, exercia no dia 8 a função de diretor-geral da Casa. Ao ser informado sobre a situação, seguiu para o Congresso pouco antes das 15h, a tempo de assistir, de longe, a invasão ao Palácio do Planalto. No Senado, a Polícia Legislativa ainda mantinha uma primeira barreira entre os tapetes azul e verde. “As pessoas pareciam alucinadas, se jogavam contra o vidro, jogavam coisas sobre o vidro… Me deu a impressão de que eu estava num momento de comoção pública total”, detalha Tancredi.

Em posição de defesa e vestindo roupa de choque, os policiais conseguiram segurar a invasão por cerca de uma hora. Com esferas de aço lançadas por estilingues, os vândalos conseguiram quebraram a maior parte das vidraças e avançaram para dentro da Casa Legislativa.



“Nós não temos uma polícia de choque, embora tenhamos o equipamento, esta não é a vocação da Polícia do Senado”, reforça Tancredi, que exalta o esforço dos servidores em conter os criminosos e, mais tarde, mantê-los no plenário da Casa para efetuar as prisões — foram quase 40 dentro do Senado, as primeiras feitas no dia dos ataques.

A segunda barreira de contenção, montada na entrada do chamado “túnel do tempo”, durou o suficiente para que todo o edifício principal fosse evacuado. “A hora mais dura, para ser sincero, foi voltar. Eles tinham aberto o hidrante, tudo que havia pelo caminho tinha sido derrubado. Passar por ali era uma mistura de fumaça de gás que havia ficado no ambiente. O chão estava com uma lâmina de quatro a cinco centímetros de água. O Salão Azul parecia uma lagoa, um pântano”, descreve Tancredi.
 
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Os sentimentos que tomaram conta durante todo o processo foram mudando à medida que as horas passavam. Primeiro, uma racionalidade extrema, com foco nas soluções possíveis e em garantir a segurança das equipes. Depois, a impotência diante de tamanha violência e, por último, revolta. Ele só conseguiu dormir no dia seguinte, por volta das 3h, para se levantar poucas horas depois e começar uma nova linha de ação: a reconstrução.





Nesse momento, a diretora-geral do Senado, Ilana Trombka, já estava na cidade. Ela passava férias com a família no Nordeste quando, ao voltar de uma caminhada na praia, viu o celular inundado de ligações, de mensagens e de imagens da depredação. Pegou a estrada por mais de duas horas para chegar ao aeroporto. Por volta das 23h30 de domingo, estava na Casa avaliando os estragos. “É muito mais forte do que você ver pela televisão, porque você sente com todos os seus sentidos ao mesmo tempo. Naquele momento eu fiquei triste, mas maior que esse sentimento de tristeza foi o de responsabilidade”, destaca.

Ilana deixou o Senado às 5h e menos de quatro horas depois estava de volta. Todas as áreas começaram o levantamento dos prejuízos e uma primeira grande limpeza foi organizada à medida que a Polícia Federal liberava os espaços, após a perícia. Às 23h30 da segunda-feira, o primeiro relatório de danos estava pronto para ser entregue ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. O documento dá conta de um prejuízo próximo a R$ 4 milhões. Uma das reposições mais difíceis, segundo a diretora-geral, será a do tapete do Salão Azul, que ficou inutilizável. São quase 2km de tapete e o tom “azul Senado” não existe no mercado.

Democracia fortalecida

Os esforços dos servidores, que começaram com a ação estratégica da Polícia Legislativa no início dos atentados, permitiram que a deliberação de terça-feira ocorresse dentro do plenário. “Foi a resposta simbólica por eles tentarem nos impedir de fazer o nosso papel na democracia, que é desenvolvido preponderantemente nesse plenário azul, feito pelo Niemeyer”, observa a diretora-geral.





Na terça-feira pela manhã, quando as demandas mais urgentes haviam sido atendidas, Ilana chorou. “Aí eu me dei conta do tamanho da violência que nós havíamos sofrido, do dano patrimonial, e da raiva que aquelas pessoas estavam, uma raiva que não trazia nada”, relembra. Ela, que é casada com um servidor do Senado Federal, onde trabalha há 25 anos, considera o local, muitas vezes, sua primeira casa.

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Sentimento semelhante é relatado pela diretora em exercício da Secretaria de Comunicação Social, Luciana Rodrigues, servidora há 25 anos. "Quando fomos fazer o reconhecimento dos estragos, o que eu vi foi de uma tristeza absoluta, uma sensação que vários servidores compartilham: de casa invadida, casa roubada. Quando você vê um espaço que você cuida sendo depredado, violado, roubado, isso é extremamente impactante. As imagens de vídeo e fotografia não dão conta de mostrar o estado em que ficou o Senado Federal", conta.

"Hoje, eu acho que, de alguma forma, acabamos saindo mais fortes, porque os servidores do Senado conseguiram mostrar nesse episódio algo que a gente sente, mas não fala, que é o amor pela instituição", resume Ilana Trombka. Vários servidores se dispuseram a voltar das férias e contribuir com a reconstrução. Houve quem se oferecesse até mesmo para pintar paredes. Nesse contexto, um dos trabalhos que geralmente passam invisíveis pelos corredores dos palácios e das sedes dos Poderes tomou proporção monumental. As equipes de limpeza e de conservação estão entre as mais elogiadas por todos os gestores.





Líder de uma delas, o encarregado de limpeza Lucimar Pereira da Silva estava de plantão no dia 8. “É uma coisa muito triste, nunca pensei que veria o Senado naquela situação”, diz ele, que atua no local há seis anos. Passado o susto, veio o momento de recuperar o que foi perdido, e o sentimento de união é o que mais se fortaleceu. Todos os funcionários se esforçaram para entregar o espaço recuperado o quanto antes. "É a nossa segunda casa, e alguém veio e destruiu."

Esforço para resgatar o acervo

A analista legislativa da Câmara dos Deputados Adriana Magalhães, servidora da Casa há 21 anos, custou a acreditar no que via na tevê. "Fiquei chocada, estarrecida. Não só por ser brasileira, mas por ser brasiliense, e por trabalhar na Câmara", lembra.

Na terça-feira seguinte aos ataques, Adriana foi ao prédio principal e se surpreendeu com o trabalho da equipe de limpeza. Grande parte dos estragos já não era mais aparente. A escultura que se assemelha a um anjo, no Salão Verde, que tem espaço em sua memória afetiva, estava intacta. Ela lamenta os estragos em presentes protocolares que ficavam expostos. Lembra que levava os filhos ao local para passear e conhecer as obras. "Eram coisas lindas que a gente passava lá e ficava olhando."





A equipe de administração da Câmara dos Deputados trabalha na recuperação do prédio e do Museu, de boa parte do acervo. A diretora de Coordenação e Administração de edifícios da Casa, Marisa Seixas Prata, diz que o comprometimento em deixar a Casa arrumada motivou os servidores. "Sem saber o que íamos encontrar, fizemos uma checagem prévia, para não termos surpresas, e preparamos uma equipe de vários setores diferentes. Tinha serralheiro, chaveiro, vidraceiro. No dia, ficamos surpresos, mas isso nos uniu para organizar, novamente, todo o local, o que possibilitou, inclusive, a reunião do colegiado do Senado e da Câmara para deliberar a situação", diz.

Para a diretora, naquela noite, um dia após o vandalismo, a Câmara dos Deputados pôde cumprir o papel de defesa da democracia. "É comovente o número de colegas, servidores, que simplesmente mandaram mensagens se oferecendo para trabalhar, todos se sentiram agredidos pessoalmente", completa.

A chefe do serviço de preservação, Gilcy Rodrigues, e o responsável pelo Museu da Câmara, Marcelo Sá de Sousa, explicam que o salvamento das peças não passou por tantos problemas porque o setor tem todas as informações dos acervos.





Marcelo recorda o momento em que encontrou as obras danificadas. "O choque foi mitigado pelo alívio. A Casa estava destruída, encontramos cenas de guerra, mas esperava ver uma situação pior. Depois que vi uma obra de Di Cavalcanti intacta, fiquei aliviado", pontua.

Para Gilcy, a realidade é diferente. Brasiliense nata, apaixonada por Athos Bulcão, ela conta que encontrar a azulejaria do multiartista estragada e arranhada por grade de ferro jogada trouxe tristeza. "Quando entrei e vi os danos, doeu. Como brasileira, fiquei muito chateada. Mas na hora não tivemos tempo de pensar. A gente queria resolver o problema", recorda. 

Danos ao STF e Planalto

A Assessoria de Imprensa do Supremo Tribunal Federal (STF), o prédio mais atingido pelos ataques, informou que nenhum servidor falará por enquanto. Em entrevista à jornalista Basília Rodrigues, da CNN, em 13 de janeiro, o ministro decano da Corte, Gilmar Mendes, que já havia soltado nota oficial repudiando com veemência os ataques, comentou brevemente sobre a sensação de ver seu local de trabalho depredado.





"Eu fiquei extremamente chocado e emocionado de ver. Vivo aqui há 20 anos, trabalhando, e convivo com o Supremo Tribunal Federal há mais de 40 anos, então a gente cria uma relação de amor, de amizade e de admiração por tudo o que o Supremo representa. Foi um choque imenso para mim, para todos os colegas e acho que para toda a comunidade jurídica. Percebemos a carga de raiva que descarregaram no Supremo ao vermos todas as estátuas destruídas, as fotografias, as galerias", elencou o ministro, que estava de férias e voltou a Brasília após os atos de vandalismo.

Em campanha oficial da Corte, a presidente, ministra Rosa Weber, garantiu que o Supremo "reconstituirá seu edifício-sede, patrimônio histórico dos brasileiros e da humanidade, e símbolo do Poder Judiciário, um dos três pilares da democracia constitucional brasileira". 

Os danos ao Palácio do Planalto também foram extensos. Diversas obras emblemáticas acabaram atingidas pela ação de criminosos revoltados com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, entre elas As mulatas, de Di Cavalcanti. Nas redes sociais, dias depois, a primeira-dama, Janja, compartilhou vídeo em que traz depoimentos e agradece a equipe da limpeza do Palácio.

"Muito obrigada a toda a equipe de manutenção do Palácio do Planalto, brasileiras e brasileiros dignos de serem chamados patriotas! Com o trabalho deles, a destruição promovida por vândalos sem qualquer respeito pelo nosso patrimônio e pelo nosso país já virou coisa do passado", escreveu. O presidente também posou em foto ao lado dos funcionários após a recuperação do espaço.