Era manhã de sexta-feira e milhões de brasileiros começavam a se preparar para mais uma partida da Copa do Mundo de 2022. Uns colocavam carvão em suas churrasqueiras, outros arranjavam espaço no freezer para a cerveja. Supersticiosos seguiam suas tradições, ansiosos roíam as unhas, apostadores lançavam suas fichas em aplicativos de celular.
Claro, havia os que torciam contra, mas não é exagero dizer que a maioria imaginava que o poder de ataque da Seleção Brasileira pudesse eliminar a Croácia. Não deu. Coincidência ou não, horas antes da derrota nos pênaltis, o então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já demonstrava preocupação com a retaguarda, mas não era com a zaga escolhida por Tite. Numa sinalização às forças armadas, escalou para a Defesa José Múcio Monteiro, considerado um meio-termo entre o petista e os militares.
Mas por que Lula fazia questão de anunciar o nome de Múcio logo entre os primeiros de sua equipe ministerial, antes mesmo das pastas da Educação, Cultura, ou Meio Ambiente, por exemplo? Não custa lembrar que, no Brasil, existem os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, sendo papel das Forças Armadas cumprir as determinações do seu comandante supremo, ou seja, o presidente da República. Porém, a militarização do governo anterior forçou o gesto do líder petista.
O livro “Poder Camuflado: os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro” (Companhia das Letras), escrito pelo repórter e editor Fabio Victor, pode ajudar a explicar o aceno de Lula, pois mostra que, mesmo após a redemocratização do país, o exército atua, seja em banho-maria ou em fogo alto, de forma a manter sua influência e seus interesses.
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O autor, nascido no Recife, trabalhou por 20 anos na “Folha de S. Paulo” e foi finalista do prêmio Gabo 2019. Sua longa pesquisa jornalística é dividida em três partes que, juntas, formam “Poder Camuflado”. O livro contém passagens curiosas da política nacional, como em 1992, quando o deputado Jair Bolsonaro teve seu Chevette azul rebocado em frente ao portão de entrada da Academia Militar das Agulhas Negras, ou em 2002, quando o mesmo Bolsonaro deu “nota 10” para um discurso de Lula na Comissão de Relações Exteriores. Há também o episódio em que o general Hamilton Mourão cai de um cavalo durante um torneio de saltos na véspera do segundo turno de 2018.
Outro ponto que chama a atenção é como a caserna abraçou um “oficial insubordinado, que entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990, era persona non grata na corporação”, e que devido ao acúmulo de afrontas virou “sinônimo de indisciplina, anarquia e desonra à farda”. Esse oficial, Jair Messias Bolsonaro, foi condenado em 1988 pelo Conselho de Justificação, uma espécie de tribunal verde-oliva de primeira instância, depois de um imbróglio envolvendo uma reportagem que expôs seu plano: explodir bombas-relógio em unidades militares caso o governo não concedesse reajustes salariais à altura do que esperava. Durante o processo, o réu ainda foi acusado de ameaça de morte por uma jornalista, mas foi inocentado das acusações “graças a uma interpretação esdrúxula do Superior Tribunal Militar (STM)”.
Do episódio em que Fernando Collor de Mello decide pela extinção do Serviço Nacional de Informações (SNI) à aproximação entre Itamar Franco e militares, das tentativas de Fernando Henrique Cardoso para estabelecer um controle civil sobre as atividades castrenses ao pragmatismo de Lula em relação às Forças Armadas, do governo Dilma Rousseff e trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) à acusação do Exército de ter sofrido uma “facada” nas costas, da Lava-Jato a Temer, do anticomunismo ao antipetismo, do olavismo ao bolsonarismo. Fabio Victor refaz o caminho da nossa jovem democracia, por vezes plena, por vezes surrada, e entrega um material rico em detalhes e informações. A leitura indica que a radicalização, como também mostra a série documental “extremistas.br” (Globoplay), transformou militares em militantes e a conta a ser paga pode ser alta demais.
Vinte dias após o início de seu terceiro mandato como presidente do Brasil, com as Forças Armadas diariamente no noticiário, Lula se reuniu com os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. Também estavam presentes o ministro José Múcio, que resistiu à pressão e se manteve no cargo, e Josué Gomes, presidente da Fiesp.
Oficialmente, o objetivo foi tratar de investimentos para a indústria da defesa. No dia seguinte, Lula demitiu o general Arruda, então comandante do Forte Apache. A história pode estar longe de terminar, mas parece ser clara a mensagem das instituições democráticas: “quem não marchar direito vai preso pro quartel”. Leia, a seguir, a entrevista de Fabio Victor ao Estado de Minas.
ENTREVISTA COM O AUTOR
1- Você destaca que, na América Latina, o modelo brasileiro de transição da ditadura para a democracia foi o que menos avançou quanto à responsabilização criminal de agentes do Estado. De que maneira isso afeta nossa cultura, as instituições e o modo como a população enxerga as Forças Armadas? Por quê?
Parece sintoma de uma cultura afeita à conciliação, aos grandes acordos, somos uma sociedade que resiste a dizer não e prefere driblar seus fantasmas a encará-los de frente --provavelmente porque aqui, mais do que nas democracias consolidadas, quem tem poder intimida e prevalece, resquícios de uma formação escravocrata e patriarcal. Aparentemente não é algo que incomoda tanto a sociedade, até porque há até pouco tempo as Forças Armadas eram a instituição com maior credibilidade perante a população, segundo pesquisas. A ver se essa confiança será mantida após quatro anos de Governo Bolsonaro, com politização das Forças Armadas e militarização da política.
2- A recente politização, principalmente do Exército, levou um general a tomar vacina “escondido”, oficiais de alta patente compartilharam fake news, muitos militares colocaram em dúvida o funcionamento da urna eletrônica. Na sua opinião, é possível reverter este cenário de invasão dos coturnos na política?
São dois fenômenos distintos, embora complementares. O primeiro é a ocupação da máquina pública por militares promovida por Bolsonaro, com resultados em alguns casos desastrosos, como no Ministério da Saúde durante a pandemia. Desmilitarizar a Esplanada não será simples, mas é factível, há vontade política do novo governo para fazê-lo (e já começou a ser feito).
O outro fenômeno, a meu ver mais grave, é o da politização das Forças Armadas, a cruzada de Bolsonaro para transformá-las em braços político-ideológicos, em instrumentos de governo e não de Estado, que infelizmente foi parcialmente bem-sucedida. Este é de mais difícil reversão, é um processo de médio a longo prazo e depende da consciência dos atuais líderes militares e dos que virão da necessidade urgente de revertê-lo.
As Forças Armadas não podem mais continuar se metendo em política. Vejamos se o discurso do novo comandante do Exército, general Tomás Ribeiro Paiva, nesse sentido é pra valer na prática e se ele terá forças para implantar esses preceitos elementares junto a tropas que estão nitidamente politizadas.
3- No livro você cita o filósofo Rodrigo Nunes e a teoria do “troll”, que “atua sempre no fio da navalha entre a zoeira e a ameaça que pode ser levada a cabo”. Como o estado brasileiro pode se proteger de um agente que “testa os limites, sem nunca deixar de ter uma rota de fuga”? Por quê?
Talvez compreendendo melhor como opera a comunicação contemporânea, algoritmos, hiperconectividade, bots etc --um terreno que o bolsonarismo domina, com larga vantagem sobre o PT e o governo eleito. E com uma ação enérgica e efetiva da polícia e da Justiça em relação a abusos e ameaças --mas dentro da legislação vigente, sem inventar a roda com regulação draconiana de redes sociais, sob pena de censura e abuso de poder.
4- As denúncias de que agentes de segurança teriam facilitado a ação de terroristas em Brasília, no dia 8 de janeiro, podem dar início a uma mudança de comportamento, tanto do poder público quanto da caserna? Como colocar um ponto final na ideia de que o Exército é “um poder moderador”?
Autoridades dos Três Poderes correm para punir os responsáveis. Embora estejam colocando um cadeado depois da tranca arrombada, é o que deve ser feito --punição exemplar para todo e qualquer envolvido, sejam das Forças Armadas, das polícias ou dos governos.
Escrevi num artigo recente para o Canal Meio e repito aqui: "As forças de segurança do Distrito Federal falharam miseravelmente em proteger o coração da República, mas o governador Ibaneis Rocha, seu então secretário de segurança — o bolsonarista Anderson Torres — e o agora ex-comandante da PM, Fábio Augusto Vieira (afastado e preso, como Torres), não são os únicos responsáveis pelo fiasco. Admitir que houve falhas graves também por parte das forças federais, incluindo as Forças Armadas — e é evidente que houve —, não significa dizer, como fez irresponsavelmente o governador mineiro, Romeu Zema, que o governo Lula permitiu o ataque para se vitimizar. Por mais que o 8 de Janeiro tenha sido um fracasso coletivo, um dos maiores fracassos coletivos da história republicana, há um protagonista claro, Jair Bolsonaro (e seus asseclas), e vítimas igualmente distinguíveis: os Três Poderes da República, a democracia, o Estado de Direito".
Há muitas maneiras de combater a ideia equivocada de que as Forças Armadas são um poder moderador: talvez a mais efetiva fosse mudar o artigo 142 da Constituição e retirar delas a atribuição de garantir a lei e a ordem (isso deve caber a outros entes, polícias e Judiciário), pois é em que se apoiam os bolsonaristas para distorcer o texto da lei. Enquanto isso não ocorre, se é que ocorrerá, campanhas de esclarecimento à população seriam bem-vindas. É importante sobretudo que os militares se atenham à sua função primordial, de defesa do território e da soberania nacional.
5- No seu ponto de vista, qual a principal reflexão proposta por “Poder Camuflado”? Por conta das constantes notícias envolvendo as Forças Armadas, o ministério da Defesa e a movimentada política brasileira, você pensa em produzir um novo livro sobre o tema?
Poder Camuflado é um livro jornalístico, movido por interesse jornalístico, e portanto sua principal função é apresentar elementos factuais (surgidos de entrevistas inéditas, documentos, pesquisa histórica e vasta bibliografia) para que entendamos o recente processo de politização das Forças Armadas. Creio que é uma contribuição valiosa para a compreensão desse noticiário frenético e intenso envolvendo os militares nos últimos anos, sobretudo nos últimos meses. Por enquanto não penso em fazer novo livro sobre o tema, este ainda tem um bom percurso pela frente.
TRECHO DO LIVRO
“Grosso modo, todos os governos pós-redemocratização poderiam se encaixar no que o cientista político polonês Adam Przeworski denominou de ‘democracias tutelares’, em que as Forças Armadas, após imporem e conduzirem governos autoritários, voltam aos quartéis, mas ‘continuam a pairar como sombras ameaçadoras, prontas a cair sobre qualquer um que vá longe demais na ameaça a seus valores ou interesses’. Para o cientista político brasileiro Jorge Zaverucha, seguindo a linha de raciocínio do colega polonês, a inexistência de golpes militares no país desde 1985 não significa que tenha sido criado um controle civil das Forças Armadas. Quando têm seus interesses ameaçados, aponta Zaverucha, elas costumam mostrar o tacape, e o poder civil cede”.
FICHA
. Poder Camuflado: os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro
. Fabio Victor
. Companhia das Letras
. 446 páginas
. R$ 78,90 (livro) e
. R$ 44,90 (e-book)