Jornal Estado de Minas

ENTREVISTA

Ministra Anielle Franco: 'Somos a maioria da população'

 

Comida no prato, saúde, educação e o fim do que considera genocídio da população preta brasileira. Essas são as missões que a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, colocou como prioridades da pasta que comanda há um mês. Simbólico na luta racial no Brasil, o ministério vai implementar políticas inclusivas e supervisionar  a adoção dessas práticas no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).



“Completamos 31 dias de governo e viemos trabalhando muito. A gente não tem hora para sair do gabinete. Fizemos muitas coisas importantes e, para mim, a primeira foi a de quando Lula assinou, no dia da minha posse, a Lei da Injúria Racial, para tipificar esse crime de racismo. Isso (racismo), tem sido tão comum, tem acontecido tanto… foi muito importante esse ato dele”, disse Anielle Franco em entrevista ao Estado de Minas.

 

Anielle é irmã da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), assassinada em 2018, no Centro do Rio de Janeiro, um crime que segue sem solução depois de cinco anos. Após o episódio, ela, que é jornalista de formação, criou o Instituto Marielle Franco.

Com experiência e ativista das questões de raça e gênero e após os desdobramentos de casos de violência política, ela assume o compromisso de lutar pela inclusão da população preta na pauta do governo federal.



“Nós já tivemos algumas reuniões muito pontuais e importantes como, por exemplo, com a ministra da Saúde, Nísia Trindade. Falamos muito sobre a saúde da população negra, que é uma população que, infelizmente, tem pouco acesso à saúde pública, mas também tem enfrentado nos últimos anos um aumento drástico de problemas de saúde mental”,exemplifica.

 

Anielle também se reuniu com o ministro Camilo Santana, da Educação, e discutiu o uso de dados da Lei de Cotas para a avaliação do programa de assistência estudantil, incluindo auxílio-transporte, alimentação, moradia e compra de livros e materiais. Além disso, a criação de um comitê gestor interministerial também foi pauta de discussão entre os ministros.

Esses visam incluir na comissão representantes de ambas as pastas que ficariam responsáveis pela integração, produção e monitoramento de dados.

“Vamos oficializar em poucos dias a criação deste GT (grupo de trabalho) para debater não só o fortalecimento dessa lei (de Cotas), mas também debater no PNLD (Plano Nacional do Livro Didático), o livro didático, porque as pessoas negras precisam ser representadas também no material didático”, explicou.



Nascida e criada na Maré, comunidade do Rio de Janeiro, a ministra deseja ser associada à luta da população negra na chegada ao topo. Veja abaixo os principais pontos da entrevista de Arielle Franco.

Inclusão no governo

“A gente tem feito um movimento estratégico, mas também muito transversal. A transversalidade tem que ser, de fato, concreta. Ela traz paridade de gênero; ela traz equidade racial; ela traz coisas que as pessoas podem não estar muito preparadas para aceitar, como, por exemplo, um letramento racial.

Então são movimentos específicos que nós temos feito de sinalizar a todos os outros ministérios que a questão racial existe, é importante, não cabe dentro de uma secretaria, ela realmente merece um ministério, porque nós somos a maioria da população desse país. Nós somos quase 57% (da população), e esses sinais têm sido desenhados ali quando chegamos na educação, na saúde, na própria cultura, no esporte.

Nós entregamos, sim, essa lista em apoio com uma organização chamada Elas No Orçamento. Nós entregamos, também, 41 nomes ao presidente da Embratur, Marcelo Freixo. Mas para além disso, o Ministério da Igualdade Racial tem hoje um banco de currículo de 5.300 pessoas negras espalhadas pelo país inteiro para justificar, fortalecer e fazer com que todos entendam que as pessoas negras estão aptas, preparadíssimas, prontas para entrarem em qualquer lugar.



Nós lançamos também um banco de currículos para pessoas trans e travestis em parceria com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), que nos solicitou. Todos os ministros e ministros que nos perguntam e falam conosco sobre indicações, a gente tem. Então isso é importante, esse diálogo.

A gente precisa naturalizar a entrada dessas pessoas negras em lugares de poder que historicamente nos foram negados. A gente está aqui para provar o contrário e vamos continuar, se Deus quiser.”

Inspiração na irmã 

“Acho que muita coisa que aconteceu após a morte da Mari (Marielle Franco), jamais imaginei que eu pudesse passar o que eu fosse passar. Na verdade, após perder a minha irmã, que era a minha melhor amiga, minha confidente, eu confesso a vocês que eu fiquei com muita vontade, muita gana de lutar, principalmente pela população negra, mas em momento nenhum passou pela cabeça virar ministra de Estado.

A Mari era a pessoa responsável por mim quando meus pais não podiam, por exemplo, ir à escola me buscar ou me levar. Ela começou a ter muita responsabilidade muito nova. Ela engravidou num período que eu estava para completar meus 15 anos – e eu vou para os Estados Unidos um pouco depois disso, eu vou com 16 para 17 anos.



Ela conversava assuntos comigo que, às vezes, eu tinha um pouco de vergonha e era acanhada de falar com a minha mãe e com meu pai. Acho que todo adolescente tem essa pessoa, e que bom que eu tinha minha irmã. Então, ela me moldou como mãe, como mulher, como irmã, como tia.

A gente dividia muita coisa: desde roupa a confidências de namorados de adolescência. Eu diria que ela me influenciou e influencia em tudo. Se eu sou, hoje, a mulher que eu sou, eu devo muito a ela e à minha mãe porque foram as mulheres que me moldaram, que me criaram, que me ensinaram a não abaixar a cabeça, nunca desistir dos meus sonhos e a lutar pelos meus ideais.

E foi com elas, também, que eu ganhei o amor pela educação, e com elas que eu coloquei na minha cabeça que o meu conhecimento ninguém tira.”

Lula pela igualdade 

“A gente tem trabalhado muito e não tem hora para sair daqui do gabinete. Vou tentar resumir as pautas prioritárias que nós já fizemos nesse primeiro mês de governo. Acho que tiveram ali coisas muito pontuais e importantes, como, por exemplo, no dia da nossa posse, que o Lula assina a Lei de Injúria Racial para tipificar esse crime de racismo, porque isso tem sido tão comum, tem acontecido tanto, então foi muito importante esse ato dele.



Para além disso, nós já tivemos algumas reuniões muito pontuais e importantes como, por exemplo, com a ministra da Saúde, Nísia Trindade. Falamos muito sobre a saúde da população negra, que é uma população que, infelizmente, tem pouco acesso à saúde pública, mas também tem enfrentado aí nos últimos anos um aumento drástico de problemas de saúde mental.

Ela se mostrou extremamente favorável a isso. Acho que, paralelo à injúria e paralelo à saúde, nós tivemos também uma reunião importantíssima que eu, como professora, vou sempre pautar com o ministro da Educação, Camilo Santana, para falarmos do fortalecimento da Lei de Cotas, pra falar, mudar a aplicação das leis de ensino de história da África na educação básica.

Nós já tiramos dessa reunião a criação de um GT (grupo de trabalho), para debater não só o fortalecimento dessa lei, mas também no PNLD debater o livro didático, porque as pessoas negras precisam ser representadas ali também no material didático. Nós tivemos também algumas reuniões aqui que foram importantíssimas, para além de deputados e movimentos.



A gente está escutando todo mundo. E falta só agora a reunião com o ministro Wellington (Dias, ministro do Desenvolvimento e Assistência Social) para o combate à fome. O povo negro está ali, 70% com fome nesse país. Eu preciso, neste momento, pautar a fome desse povo, então isso é primordial.

Além da saúde, a educação e o genocídio. A gente precisa; são quatro coisas. E é muito difícil de eu tirar e medir qual é mais importante do que outra. É por isso que a gente está se empenhando tanto.”

Ação dos extremistas 

“O que aconteceu no último dia 8 de janeiro foi muito grave. Foi muito grave, a gente precisa responsabilizar. Aquilo ali foi de um extremismo enorme. A gente não pode, em hipótese alguma, pensar que ideologia política tem que ser maior do que valores humanos. Eu repito essa frase literalmente desde 2018, quando mataram a minha irmã e cuspiram na minha cara com a minha filha de 2 anos no colo.



Então, assim, aquele dia para mim, eu pensei: 'Gente, pensar diferente da outra pessoa, ok. Eu posso acreditar em A e você pode acreditar em B, mas daí para agressões, violência, o desrespeito à maneira de pensar, eu acho que já é um patamar elevadíssimo. A gente precisa falar, a gente precisa defender a democracia, a gente precisa trazer essas pautas para dentro de todos os âmbitos possíveis de debate.

É inadmissível que no Brasil, na diversidade que temos dentro desse país, a gente ainda precise explicar o óbvio. E o respeito, a empatia, isso faz parte do óbvio. Depois que tomei posse, desde o dia primeiro, eu tenho repetido que todos os dias são dias que eu literalmente sinto um sentimento de eleição.

A gente sabe que está lidando com pessoas que pensam diferente, a gente sabe que vai ter um Congresso muito difícil também, desafiador, mas eu acredito no diálogo. Eu acredito que a gente vai conseguir. O mínimo que seja. Sentar, dialogar, conversar, propor, pensar junto. Óbvio, se houver um respeito. Se houver ali uma articulação onde a gente possa entender o ponto do outro sem transpassar o limite do respeito e da empatia.



Desde que assumi, eu não recebi nenhuma ameaça. Até o dia 1º, eu recebi algumas coisas bem racistas, algumas frases que não vale nem a pena repetir, me xingando. Também se referindo à cor da pele, à minha irmã, mas nenhuma ameaça.”

Legado da mulher negra 

 

“Acho que se conseguir alcançar 50% de todos os meus sonhos aqui, eu vou estar satisfeita. Mas eu quero que seja um legado deixado, principalmente, para as meninas jovens, de favela, negras, pobres, de olharem e entenderem que através do estudo, através da luta, a gente consegue estar em lugares que nós nunca imaginávamos. Eu poderia estar aqui após a morte da Mari, mas eu não estaria aqui do jeito que eu estou hoje se não fosse pela minha família.

Então, eu espero que o meu legado seja o legado de luta, um legado de uma pessoa que fez muito pela população negra, um legado que deixe marcas históricas agora, tanto aqui, quanto no mundo afora; de como é, de fato, a gente transformar um luto em luta, e do que a gente precisa deixar para as próximas gerações: para as minhas filhas, para as minhas netas.

Que seja de uma vez por todas um entendimento de que a pauta racial é crucial nesse país, que ela precisa ser respeitada. Eu quero deixar um legado de muita luta, de muita força. Quero deixar um legado onde a gente possa fazer com que posses, como a minha e da Sônia (Guajajara, ministra dos Povos Originários), sejam ações recorrentes nesse país, e que, quem sabe, dentro dos próximos, anos, a gente consiga fortalecer para descobrir quem foi que mandou matar a Marielle.”