O texto, protocolado em 1987, previa que lei complementar poderia instituir "órgãos administrativos autônomos, dotados de poder normativo e de polícia, para regular a moeda e o crédito e outros setores determinados da ordem econômica e social".
Além da autonomia, a proposta do PT -batizada de "O Projeto de Constituição da República Federativa Democrática do Brasil"-- defendia a fixação de mandato para seus diretores, com direito à recondução.
A Constituição promulgada em 1988 acabou deixando essas sugestões de fora e tratou apenas das atribuições do BC. Mas o tema foi alvo de novas investidas do PT ao longo dos anos 1990 e 2000, com projetos de lei apresentados por parlamentares da sigla em favor de autonomia formal para a instituição ou fixação de mandatos para seus diretores.
Para atacar a autonomia formal, o petista já disse que Henrique Meirelles, presidente do BC em seus dois primeiros mandatos, tinha tanta independência quanto o atual chefe da instituição, Roberto Campos Neto.
À Folha, Meirelles afirma que Lula chegou a lhe prometer a autonomia formal do BC, mas cerca de seis meses após o início do governo precisou desfazer o trato.
"Como ele deve se lembrar, porque tem boa memória, nós tínhamos combinado que teria uma independência formal quando me convidou. Só que depois ele me informou que não era possível aprovar a autonomia, a independência formal. Eu disse: 'Presidente, eu estou agindo de forma independente, vou continuar agindo de forma independente, está funcionando e vai continuar funcionando'", diz.
Procurada, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República não se manifestou até a publicação deste texto.
Lula era líder da bancada do PT na Constituinte e presidente nacional do partido quando subiu à tribuna na tarde do dia 6 de maio de 1987 para apresentar o projeto de Constituição que previa a autonomia do BC. No discurso, ele descreveu o documento como uma carta política que, a um só tempo, concretizava a unidade do partido e explicitava seu perfil e sua ação política.
Ao final do discurso, Lula pediu que o projeto fosse publicado e distribuído aos demais constituintes. A Folha obteve a íntegra do projeto de Constituição por meio da pesquisadora Carla Bezerra, que já analisou o texto em trabalhos sobre os sentidos da participação social para o PT.
A criação de um órgão administrativo autônomo dotado de poder normativo para regular a moeda e o crédito estava prevista no artigo 116 da proposta.
"Os membros dos órgãos normativos autônomos são nomeados pelo presidente da República, mediante prévia aprovação do Congresso", complementava o artigo 117. Uma das regras previa que "a nomeação será por prazo certo, admitida a recondução para o período subsequente somente uma vez", indicando a fixação de mandatos para seus integrantes.
Antes de ser apresentado por Lula, o projeto de constituição do PT foi debatido e aprovado pelo Diretório Nacional do partido. O ponto de partida foi o texto do jurista Fábio Konder Comparato, que, a pedido da direção da sigla, elaborou, em fevereiro de 1986, uma proposta constitucional intitulada "Muda Brasil". Ali já estava prevista a autonomia para o BC.
Um dos 16 membros da bancada petista da Constituinte, o ex-deputado Virgílio Guimarães (PT-MG) lembra que, à época, o partido optou por não citar o nome Banco Central para que o texto ficasse mais amplo.
Mas 12 dias após o discurso de Lula, em 18 de maio de 1987, o deputado constituinte do PT Luiz Gushiken apresentou uma emenda à subcomissão do sistema financeiro propondo um Banco Central do Brasil "com autonomia" para exercer a função de órgão central do sistema financeiro e monetário do país.
Outra emenda estipulava que o presidente do BC seria "nomeado pelo presidente da República, com mandato de quatro anos, após aprovação da escolha pelo Congresso Nacional, que poderá votar sua destituição ou anular ato do presidente da República que o demita, antes do término do mandato".
O dispositivo vedava a indicação de quem tivesse exercido cargo em instituição financeira privada nos quatro anos anteriores, bem como proibia esse tipo de atividade pelos quatro anos seguintes após deixar a função na autoridade monetária.
As propostas foram acolhidas pelo relator da subcomissão, e o texto foi aprovado por unanimidade.
À época, a autonomia do BC foi defendida pelos bancários e pela CUT (Central Única dos Trabalhadores). A bandeira também foi levantada em ao menos um artigo publicado no boletim da executiva nacional do PT, em 1987.
Lula já disse que projeto de Constituição do PT tornaria país 'ingovernável' Após concluir seu segundo mandato, Lula fez uma crítica ampla ao projeto de Constituição do PT e disse em entrevista que o Brasil seria "ingovernável" caso ele tivesse sido aprovado.
Os registros históricos da Constituinte mostram que, ainda em 1987, economistas ligados ao partido criticaram a autonomia nos debates da subcomissão. Para esse grupo, ela colocaria o país "dentro de um colete", sem espaço para o desenvolvimento econômico.
"Estabelecer ou reforçar muito o princípio da autonomia das autoridades gestoras da política monetária e cambial é fazer com que haja uma dualidade de comando", disse Carlos Lessa na noite de 29 de abril de 1987. Ele depois presidiu o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social), entre 2003 e 2004.
Havia na época, porém, uma preocupação em tornar o BC uma instituição mais centrada nas funções monetárias. Outro desejo manifestado pelos congressistas era o de que o BC tivesse maior efetividade na fiscalização de eventuais irregularidades em instituições financeiras, com maior proteção contra pressões de banqueiros.
Nos anos seguintes, esses princípios continuaram norteando as propostas do PT voltadas para o funcionamento do BC.
Em 1996, José Fortunati, na época deputado pelo PT do Rio Grande do Sul, apresentou um projeto de lei complementar para estabelecer que o BC seria uma autarquia federal "dotada de autonomia administrativa, técnica, econômica e financeira".
"Historicamente o Banco Central sempre teve a sua existência fortemente marcada por um total atrelamento ao Poder Executivo Federal. Na prática, o Banco Central não passa de um mero departamento do Ministério da Fazenda", dizia a justificativa. Para ele, a autonomia seria um meio-termo entre a situação da época e uma independência total.
Em 2001, Virgílio Guimarães apresentou um projeto de lei que previa mandato para o presidente do BC, coincidente com o do presidente da República, mas que o blindava de uma demissão sem justificativa.
Em 2007, já no governo Lula, ele protocolou nova proposta, com fixação de mandato de três anos (renováveis) para o presidente e o diretor de Fiscalização do BC.
As decisões sobre taxas de juros e sobre emissão de moeda, porém, seriam tomadas pelo Cepom (Comitê Executivo de Política Monetária), composto pelos ministros da Fazenda e do Planejamento, pelo presidente do BC e mais dois diretores da instituição --o que conferiria à política monetária um caráter mais político.
Defensor da autonomia da instituição, Virgílio Guimarães diz considerar que seu projeto é uma "obra-prima".
A lei atual, em vigor desde 2021, prevê "autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira" para a instituição. O texto ainda estabelece mandatos fixos de quatro anos ao presidente e aos diretores da instituição, não coincidentes com o do presidente da República. Os membros da diretoria podem ser reconduzidos ao cargo apenas uma vez.
Desde que assumiu, Lula escalou nas críticas ao BC. Após chamar a autonomia de "bobagem", o presidente disse que poderia rever a medida após 2024, quando termina o mandato de Campos Neto. A declaração foi dada em 2 de fevereiro, um dia após o BC deixar a taxa básica de juros estável em 13,75% ao ano pela quarta vez seguida e emitir um duro recado ao governo sobre a condução das contas públicas.
"Quero saber do que serviu a independência. Eu vou esperar esse cidadão [Roberto Campos Neto] terminar o mandato dele para a gente fazer uma avaliação do que significou o BC independente", disse Lula em entrevista à RedeTV!.
O ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT), tentou colocar panos quentes na crise na quarta (8).
"Não existe nenhuma iniciativa do governo sobre mudança da lei [da autonomia] do Banco Central e nenhuma pressão sobre mandato de qualquer diretor. A lei estabelece claramente que tem mandatos e que serão cumpridos", disse.
ENTENDA: AUTONOMIA DO BANCO CENTRAL
O que é autonomia do Banco Central?
A regra desvinculou o BC do Ministério da Economia e o tornou uma autarquia de natureza especial. A principal mudança foi a criação de mandatos fixos de quatro anos, com possibilidade de uma recondução, o que distancia o órgão da influência política.
Quando a lei de autonomia do BC foi aprovada e por quê?
Com o objetivo de blindar a instituição de interferências de governo e criar mandatos fixos, o projeto de lei foi aprovado em 2021 e em seguida sancionado pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL).
Os membros da diretoria podem ser demitidos?
Podem deixar o cargo quando apresentarem desempenho insuficiente para alcançar os objetivos do BC, com decisão do presidente da República e sendo necessário o aval do Senado em votação secreta. Também podem ser exonerados a pedido ou caso contraiam doença que incapacite o exercício do cargo. Além disso, podem ser demitidos se condenados, mediante decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, pela prática de improbidade administrativa ou de crime cuja pena proíba, temporariamente, o acesso a cargos públicos.
Como ficou definido o primeiro mandato fixo?
O presidente e dois diretores terão mandatos até 31 de dezembro de 2024, e os demais encerram os períodos de forma escalonada. Dois deles já encerraram o mandato em 31 de dezembro de 2021. Os próximos dois terminam em 28 de fevereiro de 2023; e outros dois, em 31 de dezembro de 2023.