O flagelo dos ianomâmis na Amazônia ganhou repercussão mundial pela dimensão e por envolver uma etnia extremamente fragilizada diante do avanço das atividades ilegais no coração da Amazônia. As mortes relatadas por desnutrição, doenças e confrontos com garimpeiros deflagraram uma grande reação de políticos e de organizações da sociedade civil, que denunciam crime de genocídio e cobram da Justiça a punição dos responsáveis. Nos tribunais, a questão é complexa, mas há precedentes na Justiça brasileira para tipificar o que está acontecendo em Roraima.
Tramita no Ministério Público Federal (MPF) uma investigação sobre possíveis crimes cometidos na gestão do então presidente Jair Bolsonaro (PL) contra o povo ianomâmi. No Supremo Tribunal Federal (STF), há um julgamento dos anos 2000 que abre precedente para a eventual responsabilização de Bolsonaro e seus ministros. É o caso do que ficou conhecido como Massacre de Haximu, ocorrido 30 anos atrás.
Esse julgamento fixou jurisprudência na Corte, em 2006, e pode servir de embasamento para o que acontece hoje em Roraima. Na visão do STF, para esse tipo de crime não há necessidade de assassinatos em massa. Para ser considerado genocídio, a morte de indivíduos de grupos étnicos, como os indígenas da etnia ianomâmi, já basta para caracterizar o crime, caso a Justiça se convença da possibilidade de extermínio.
O Massacre de Haximu, denunciado em 1993 pelo MPF de Roraima, foi remetido ao STF, que concluiu o julgamento em 2006. No plenário, a Corte decidiu pela condenação de cinco dos 24 réus citados na peça inicial do processo, por genocídio. A tragédia se deu com a execução de 12 ianomâmis, entre homens, mulheres e crianças que habitavam a região. A denúncia chegou ao conhecimento das autoridades por meio de um bilhete escrito por uma freira, que estava em missão na Floresta Amazônica.
O caso teve repercussão internacional e é um dos marcos no julgamento de genocídios no Brasil. No mundo, esse tipo de crime é julgado por cortes internacionais, como Tribunal Penal Internacional (TPI). O ditador do Sudão (no Nordeste da África), Omar Bashir, foi o primeiro condenado por uma corte internacional. Contra o ex-presidente Jair Bolsonaro há, pelo menos, seis denúncias apresentadas à Corte de Haia.
Jurisprudência
A jurisprudência do STF serve de parâmetro também para uma eventual condenação do ex-presidente acerca do descaso do governo federal com os indígenas durante a pandemia de covid-19. O Supremo, com o julgamento do massacre, passou a definir genocídio como "crime contra a diversidade humana como tal", consumado mediante ações "lesivas à vida, integridade física, liberdade de locomoção e a outros bens jurídicos individuais". A visão do STF está alinhada ao Estatuto de Roma, que entende que "comete genocídio quem, com intenção de destruir total ou parcialmente um grupo, causar mortes no grupo; causar grave lesão à integridade física ou mental; ou submeter o grupo a condições capazes de ocasionar a destruição física total ou parcial".
O Estatuto de Roma estabeleceu, em 1998, a Corte Penal Internacional (CPI), também conhecida como Tribunal Penal Internacional (TPI), a primeira criada em caráter permanente. O objetivo do TPI é julgar indivíduos, e não Estados — tarefa que fica sob jurisdição da Corte Internacional de Justiça (CIJ), ou Corte de Haia, por estar sediada na cidade holandesa.
Na sexta-feira, Lula afirmou à CNN Internacional, nos Estados Unidos, que Bolsonaro "vai ser condenado em alguma corte internacional". "É uma coisa muito grave o que aconteceu lá (na Terra Indígena Yanomami). Ele (Bolsonaro) incentivava os garimpeiros, incentivava a jogar mercúrio na água, a poluir a água que as pessoas bebiam naquele mundo bem escondido do restante do país. Então, acho que ele, em algum momento, vai ser condenado".
A investigação do Ministério Público Federal se dá após a denúncia de parlamentares do PT sobre a crise do povo ianomâmi, assinada pelo deputado Zeca Dirceu (SP), líder do partido na Câmara. O MPF também pediu uma investigação cível, que foi remetida à equipe do órgão em Roraima. O processo criminal ficou sob a responsabilidade do procurador-geral da República, Augusto Aras. A ação judicial corre em segredo de justiça.
Os andamentos se dão em circunscrições diversas. Os dois processos visam apurar a denúncia de que houve cometimento de crimes contra ianomâmis por parte de Bolsonaro, da ex-ministra Damares Alves (Republicanos-DF) e outros nomes que integraram o governo entre 2019 e 2022, período no qual há fortes indícios de que, pelo menos, 570 crianças morreram por causa do garimpo ilegal em Roraima, de acordo com levantamentos que constam nos autos de processos no STF e em investigações da Polícia Federal.
Pandemia
Em 2020, no primeiro ano da crise sanitária da COVID-19, Bolsonaro vetou uma lei que previa o fornecimento de água potável e material de higiene e proteção aos ianomâmis, bem como a obrigatoriedade de elaborar planos de contingência para indígenas isolados, entre outros pontos. O ex-presidente suspendeu o Programa Cisternas, sob o argumento de que a água não é essencial na pandemia, e destinou a oferta de vacinas apenas para indígenas aldeados, excluindo os que vivem em meio urbano. O veto foi derrubado pelo Congresso Nacional.
As denúncias contra Bolsonaro e sua equipe de governo também constam no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 (CPI da Covid), entregue a Augusto Aras, que não abriu nenhum inquérito até agora com base nas conclusões do colegiado político, organizadas com o auxílio de juristas como o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr.