O juiz que ocupa a cadeira que já foi de Sergio Moro é abertamente um crítico dos métodos da Operação Lava-Jato.
Eduardo Appio, 52, assumiu no último dia 7 a titularidade da 13ª Vara Federal de Curitiba, responsável por processos e inquéritos remanescentes da operação no Paraná.
Ele assume a vaga do magistrado Luiz Antonio Bonat, que foi o titular de 2019 até o ano passado, quando recebeu promoção à segunda instância.
Appio se define como um garantista. Nos últimos anos, participava de um programa de debates sobre temas jurídicos, do jornalista Luís Nassif no YouTube, em que a operação era um dos principais alvos dos participantes.
Ele usava expressões sobre o trabalho de Moro e do ex-procurador Deltan Dallagnol como "comédia" e "império punitivista".
Em uma das edições, no ano passado, inclusive debateu com o advogado Cristiano Zanin, que defende o presidente Lula. Disse ser "um grande fã" do trabalho do defensor.
À reportagem Appio defende a revisão da tese de que "a Lava Jato morreu", em uma referência ao discurso de Moro e Deltan em suas candidaturas ao Legislativo no ano passado.
Afirma que busca ampliar a equipe dedicada e evitar prescrições, o que incluirá reclamações ao Conselho Nacional de Justiça se não houver providências de outros juízes em casos inicialmente abertos no Paraná.
A força-tarefa da operação foi encerrada em 2021, e as frequentes operações deflagradas no Paraná não ocorrem mais desde aquela época. Mas ainda há dezenas de ações penais pendentes de julgamento em Curitiba.
Appio tem mais de 20 anos de trajetória na Justiça Federal, além de ter sido promotor de Justiça.
Foi escolhido para o novo posto por critério de antiguidade entre magistrados que se inscreveram. Em sua vida acadêmica, foi orientado em mestrado pelo advogado e procurador aposentado Lênio Streck, um dos mais ácidos opositores da Lava Jato.
O juiz diz agora que a operação teve pontos altos, como a devolução de recursos desviados, e pontos baixos, como os diálogos no aplicativo Telegram que mostram colaboração entre Moro e os procuradores, revelados inicialmente pelo site The Intercept Brasil em 2019 e alvo de uma série de reportagens da Folha.
Também afirma que jamais usaria o cargo para obter projeção política. "Não me elegeria síndico, seguramente —porque lá no meu prédio só tinha a bandeira do Brasil nas eleições."
PERGUNTA - O que ainda resta hoje na Lava Jato na 13ª Vara de Curitiba?
EDUARDO APPIO - Hoje são 71 procedimentos sigilosos. Ainda estou buscando os dados totais de bens e valores acautelados [em processos na Vara]. Mandamos 11 ações penais para a Justiça Eleitoral nos últimos meses. Vamos encaminhar outras tantas.
Só depois das primeiras audiências que eu comecei a entender as nuances da engrenagem daquilo que os delatores chamam de "regra do jogo", que seria o pagamento de propina de 1% a 2% de toda obra da Petrobras. Alguns dizem que seria tradição há muito tempo, remontando ao início da década de 80. Mas vamos apurar e confrontar versões.
A operação fez um corte específico, a partir de janeiro de 2003, primeiro ano do primeiro governo Lula. As questões do passado [antes de 2003] não foram objeto de questionamento nos processos anteriores.
Houve um recorte claro feito pelo Ministério Público Federal, de 2003 para cá, até pelo tamanho gigantesco da operação. Não estou dizendo que houve má-fé do MPF.
Em última análise, estamos tentando nos aproximar de uma realidade histórica, tanto para julgar os processos judiciais como para que fique um registro histórico fidedigno para o futuro, e não só as versões da direita ou da esquerda.
P - O sr. narra parte da complexidade da Lava Jato. Por que decidiu se inscrever para assumir esse cargo?
EA - A primeira razão é profissional. A minha formação profissional sempre foi em direito criminal. Fui promotor por três anos, juiz por um ano e meio, quase sempre trabalhando com matéria criminal. Mas os últimos dez anos foram em uma turma recursal, lidando apenas com matéria previdenciária. Entendi que eu estava subaproveitado.
E tem o desafio pessoal: me considero emocionalmente maduro, estável, para enfrentar.
P - O sr. fala da afinidade com o direito criminal, quis assumir a Vara da Lava Jato e já falou que busca uma reconstrução histórica. O sr. quer reconstruir a história da Lava Jato?
EA - Quero reforçar a credibilidade da Justiça Federal, assegurar a neutralidade ideológica ou político-partidária. Neutralidade absoluta. Foi uma operação muito polêmica, que produziu coisas boas e ruins. É importante mostrar para as partes que o juiz que está ali é um juiz neutro, que quer zelar pelas garantias constitucionais. Eu sou tido como juiz garantista.
P - Sobre o que deu certo na Lava Jato e o que deu errado, a prisão para extrair delações foi um problema que o sr. observou?
EA - Li muitas críticas de que isso poderia ter acontecido. Seria temerário e leviano eu afirmar de forma categórica.
Eu tinha um compromisso acadêmico comigo mesmo e com os meus alunos de escrever sobre o tema, não só para criticar, mas apresentar medidas propositivas que viessem a evitar isso no futuro, que viessem a isolar o juiz de qualquer pressão, inclusive da própria sociedade.
A Lava Jato acabou fazendo muita escola. Houve uma jurisprudência que endossou determinados mecanismos porque isso produzia resultados concretos.
Há um apelo emocional muito grande ao discurso de que a sociedade anseia por mudanças. Quer, mas as mudanças não virão, a não ser a um custo altíssimo, a que nos assistimos, através do Poder Judiciário, por mais frustrante que isso possa ser.
Ficaria um superpoder fazer proposições políticas de grandes mudanças estruturais, como "20 medidas contra impunidade", aquela coisa. Isso é da política. Se quer fazer política, vai para a política. Tanto é verdade que o atual deputado federal Dallagnol e o atual senador Sergio Moro foram para a política. Viram que dentro do Judiciário e do Ministério Público é inconstitucional fazer isso.
Isso eu sempre defendi. Judiciário está atrelado a princípios.
O juiz vai estar tentado a todos os dias à sedução do populismo judicial. É uma tentação que nós convivemos todos os dias, principalmente os juízes mais jovens.
P - O sr. é crítico à prisão do presidente Lula. Gostaria que explicasse melhor.
EA - A questão do atual presidente Lula é ilustrativa. Não interessa a pessoa, é o que menos importa, o que interessa é o 'case' do direito.
Para nós, acadêmicos, que escrevemos sobre direito, ele envolve os requisitos para a prisão cautelar [provisória], a necessidade ou não de prender uma pessoa, no caso, com mais de 70 anos, sem que possamos mostrar de forma muito concreta de que se estiver solto vai continuar perpetrando crimes. Ali, os críticos da prisão do atual presidente falaram exatamente isso.
E tem procedência na minha opinião, como professor. Por quê? Os crimes que se apontavam na denúncia [contra Lula] haviam ocorrido, segundo o Ministério Público, muitos anos atrás. [Portanto,] é evidente que aqueles requisitos legais e constitucionais não estavam presentes na minha modestíssima opinião. É um caso que já transitou em julgado [não há mais possibilidade de recurso] no Supremo, é um caso encerrado.
P - Havia uma decisão do Supremo autorizando a prisão de condenados em segunda instância [na época, como era o caso de Lula].
EA - Acabou revertida depois a questão da execução provisória. Quantas pessoas no Brasil inteiro tiveram a execução iniciada [dessa forma]? Dez pessoas, cinco pessoas?
O Supremo reverteu sua própria decisão [sobre o tema, em 2019] porque considerou que foi um erro judiciário.
A questão central era esta: havia os requisitos da prisão cautelar naquele momento? Havia necessidade de um isolamento absoluto em relação a crimes que haviam sido cometidos muito tempo no passado? Até que ponto essas decisões judiciais interferiram nas eleições de 2018 [quando Lula estava preso]? A Constituição cria determinadas amarras, garantias, para que o processo eleitoral seja o máximo possível isolado das atribuições judiciais.
As eleições de 2018 estão distantes no tempo. Mas acho que é papel do jornalismo, dos historiadores, dos acadêmicos, dos estudantes de direito, se debruçar sobre esse case. Foi o caso mais importante o do atual presidente. Foi o que teve maior repercussão, nacional, internacional, foi o caso que sem dúvida nenhuma interferiu nas eleições de 2018. O ex-presidente Bolsonaro falou diversas vezes que muitas das razões pelas quais tinha sido eleito foram graças às ações e a tudo que aconteceu na Lava Jato.
Queremos a lei igual para todos, as mesmas garantias para Lula, [Michel] Temer, Bolsonaro ou sr. João da Silva.
P - O sr. tem uma trajetória de jurista, de professor de direito, e participou bastante tempo de um programa no YouTube no qual fazia comentários e usava termos duros para se referir à Lava Jato. O sr. não acha que a neutralidade que o sr. gostaria de aplicar pode ser questionada por conta dessas declarações passadas?
EA - Acho que eu nunca fiz críticas pessoais. Foram sempre críticas aos métodos. E alguns episódios da Lava Jato, isolados, foram dignos de comédia pastelão. Como aquela questão do crucifixo de Aleijadinho que Lula teria levado para casa [Em 2016, procuradores suspeitaram de apropriação de uma peça histórica, segundo mostraram diálogos no aplicativo Telegram, o que se mostrou falso]. Tinha coisas que caíram no folclore popular na época. A criatividade ganhou asas e se aproximou demais do sol, e os personagens acabaram tendo as asas queimadas e caíram.
Acho muito mais importante discutir a traição do que discutir o sofá. Vamos discutir quem critica tudo que aconteceu e não vamos discutir os conteúdos da Vaza Jato? Tudo que aconteceu ficou dito pelo não dito. Pelo contrário, todo mundo foi eleito.
P - A sua postura é diferente da de outros colegas juízes.
EA - Sim, mas e os diálogos da Vaza Jato? Foram derivados de uma prova ilícita, e isso foi reconhecido, mas e o debate moral, político e ético? Tudo foi jogado para debaixo do tapete, como se nada tivesse acontecido. Todos lemos perplexos os diálogos, temos que nos resignar e imaginar que isso é o dia a dia dos promotores e juízes. Não é verdade. Eu estou há 30 anos nisso. Eu nunca vi.
Participei do programa, não me arrependo. Inclusive, no âmbito pessoal, não tenho nada contra Moro, contra Deltan Dallagnol. Mas isso não me impede de fazer crítica à operação como um todo, ao papel histórico. Achei interessante marcar posição naquele momento, quando a hegemonia era o discurso punitivista, o pé na porta e rasgar a Constituição. Eu estava do lado certo da história.
P - Quando Moro estava aqui [na 13ª Vara de Curitiba], ele foi questionado sobre pretensões eleitorais. O sr. iria para a política?
EA - Não tenho [pretensões], zero. O Moro disse que não tinha, né?
Se eu fosse para a política, teria que fazer o oposto. Ao invés de criticar a Lava Jato, diria que foi a melhor coisa que aconteceu no Brasil. Ou, como o Deltan disse nesta semana em entrevista, diria que os políticos mataram a Lava Jato. Negativo. A Lava Jato está viva e, se depender de mim, vai continuar muito viva. Quando ele fala isso, se cria uma lenda urbana. Como acabou com tudo? Tem 237 ações penais aqui.
Uma das obrigações do juiz é evitar a prescrição dos processos. Não queremos um caso Banestado 2 [escândalo dos anos 2000]. Nós, que estamos no Judiciário, temos a obrigação de encarar os processos. Existe uma responsabilidade muito grande nos nossos ombros.
RAIO-X
EDUARDO FERNANDO APPIO. 52
É desde 1999 juiz federal da 4ª Região (que engloba os estados do Sul). Também foi promotor de Justiça no Rio Grande do Sul. É doutor pela Universidade Federal de Santa Catarina e fez pós-doutorado na Universidade Federal do Paraná. Escreveu, entre outros livros, "Direito das Minorias"