O ministro da Justiça, Flávio Dino, está convencido de que existe uma inteligência a comandar os movimentos antidemocráticos que vêm se manifestando na crônica política brasileira. Em sua ótica, o país enfrentou, de 30 de outubro a 8 de janeiro, uma sequência de atos organizados para desacreditar o resultado das eleições, incitar um levante das Forças Armadas e impedir o governo Lula de assumir o mandato concedido pela maioria dos eleitores brasileiros. Lembra, ainda, que as intenções dos extremistas eram de alta periculosidade: um dos golpistas, preso em 24 de dezembro, estava em treinamento para atuar como um sniper, atirador de longa distância.
Titular de uma das pastas de maior visibilidade do governo Lula, Dino é um ator fundamental e testemunha privilegiada dos atos infames ocorridos em 8 de janeiro. Nesta entrevista ao Correio, o ministro conta detalhes daquele trágico domingo. Revela, por exemplo, que o presidente Lula chegou a cogitar uma intervenção mais drástica no Distrito Federal, que afastaria todas as autoridades locais. Mas o chefe do Planalto, após refletir melhor, decidiu pela intervenção somente na área da Segurança. Dino relata ainda como assistiu, da janela de seu gabinete, a horda de terroristas avançar pelos edifícios dos Três Poderes. Naquele momento, ele estava na companhia da então vice-governadora do DF, Celina Leão - que havia acabado de conhecer; do chefe da Casa Civil do GDF, Gustavo Rocha; e do futuro interventor do DF, Ricardo Cappelli.
Flávio Dino acredita que, passados pouco de mais de 50 dias da posse, o Ministério da Justiça tem cumprido uma diretriz: garantir a aplicação da lei. Esse princípio está presente nas operações de combate ao garimpo, na regulamentação dos CACs e na colaboração com as investigações do caso Marielle Franco. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida na última quinta-feira.
Sobre o 8 de janeiro. O que aconteceu naquele dia?
Houve pessoas que sabotaram o planejamento que foi feito em 6 e 7 de janeiro. Nesses dias, à semelhança do que aconteceu para a posse, houve reuniões. E, para a posse, tudo que foi acordado foi feito. Tudo. Eu diria até que mais do que acordado foi feito. E não tivemos um único incidente. Miraculosamente, o mesmo sistema que funcionou uma semana antes para 300 mil pessoas depois não dá conta de 5 mil? Não tem lógica, e portanto fica evidente que houve uma intencionalidade de sabotagem, no sentido de que aquilo que foi pactuado no dia 6 não foi feito, sobretudo no que se refere ao policiamento ostensivo, que constitucionalmente compete à Polícia Militar do Distrito Federal. Não estou dizendo nenhuma novidade. Quem disse isso foi o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, a governadora interina Celina Leão.
E o senhor viu tudo daqui, do gabinete do ministério.
Nessa janela estava a então vice-governadora Celina Leão (aponta para a vidraça). O chefe da Casa Civil, Gustavo Rocha, estava aqui. E eles viram o que eu vi. Viram que a Polícia Militar estava em contingente ínfimo, despreparado, não estava equipado. As linhas previstas, os bloqueios não funcionaram. Mas como? Se funcionaram no dia 1º? Então houve um engendramento que passou por civis, por agentes militares, e os nomes estão aparecendo.
Não foi um ato tresloucado, então.
Há uma coerência nesse desatino. De 30 de outubro a 8 janeiro, esse agrupamento só fez pensar em uma única coisa: como dar um golpe no Brasil. Havia inteligência nisso tudo, e essa inteligência começou com a tentativa de ganhar na marra a eleição no segundo turno - com as operações da Polícia Rodoviária Federal e da Polícia Federal. Continuou nos dias seguintes com os bloqueios das estradas e a tentativa de criar um pânico no país, com a ausência de forças policiais que deveriam estar agindo e não agiram. Prosseguiu, sabemos nós, com aquela esdrúxula minuta, no mês de dezembro, de um decreto golpista, localizado lamentavelmente na casa do meu antecessor. Prosseguiu nos ataques de 12 de dezembro, que foram fabricados também. Partiram, iniciaram e terminaram no acampamento situado em frente ao Quartel-General do Exército. Mais adiante, o ataque à bomba no dia 24 de dezembro. Houve um hiato, que foi exatamente a posse. Na minha ótica, a articulação institucional e a presença popular impediram que houvesse algum tipo de atentado. E lembrem que o cidadão que está preso pela participação no ataque à bomba estava fazendo treinamento de sniper para dar um tiro de longa distância. Tudo isso está documentado. Então, a essas alturas, ninguém de bom senso pode imaginar que o dia 8 de janeiro foi fruto de uma falha. Não! Foi fruto de um plano! Um plano que começa pouco antes da eleição, continua depois do resultado das urnas, se agudiza em dezembro - a meu ver, fruto do desespero - e que ecoa até 8 de janeiro.
O que essas pessoas pretendiam?
Provavelmente que o dia 8 funcionasse como uma espécie de gatilho. Elas imaginavam, no seu mundo paralelo, que haveria uma grande adesão popular - que não houve, nem em Brasília nem fora de Brasília. E que as Forças Armadas iriam se levantar para restabelecer a ordem - que estaria perdida, naquele momento pela inédita invasão dos prédios. E com isso eles conseguiriam essa virada de mesa que buscavam. São golpistas, terroristas, pessoas perigosas.
O senhor diria que essa inteligência foi neutralizada?
Eu diria que ela sofreu uma grave derrota. Todos aqueles que entre 30 de outubro e 8 de janeiro tentaram o golpe perderam. O presidente Lula venceu, foi diplomado, subiu a rampa e governa. Esse é o fato. Eles diziam que nada disso ocorreria. Aconteceu.
Dá para relaxar?
Não, porque a base social que alimentava essa gente, em muitos aspectos, continua. Latente, mas continua.
Mas ela foi reduzida.
Foi reduzida, porque o 8 de janeiro funcionou como um alerta para as pessoas que estavam no meio do caminho - inclusive nas corporações armadas do Estado. Ficou "over". Muita gente que dizia assim 'Ah, eu odeio o Lula' - é o direito delas, ninguém é obrigado a amar ninguém. O dia 8 criou um "mas". 'Eu odeio o Lula, mas...Eu não concordo com a destruição do Supremo, não concordo com baderna'. Esse 'mas' se adensou. O legalismo é maior que o golpismo.
Praticamente 900 pessoas continuam presas. Mas faltam os financiadores.
Nós temos a situação dos executores, presos em flagrante por crimes graves. Se tivessem ocorrido em dia de semana, teriam resultado em mortes, tal o nível de agressividade que estava se verificando. É importante dizer isso com clareza porque hoje há discursos que tentam apresentar as prisões como excessos. Não! A ação do Estado tem que ser proporcional à gravidade da conduta.
Mas muita gente estava só no acampamento, e acabou presa no bolo dos terroristas.
As pessoas que estavam no acampamento foram presas. Eventualmente, nas ações penais, elas têm direito à defesa. Muita gente foi solta nas audiências de custódia, e por fatores humanitários. Agora lembro: quem está em um acampamento que pede golpe de Estado já está cometendo crime. É importante mostrar isso com clareza. Quem diz isso? O Código Penal. Se você está em um acampamento, com uma faixa "Militares, salvem o Brasil!", "Deem o golpe!", "Intervenção militar", seja lá o que for, isso é incitação criminosa. É crime incitar a animosidade entre as Forças Armadas e instituições civis. Mesmo as pessoas que acham que não cometeram crime - é um direito achar que não cometaram - elas cometeram. As pessoas vão ser julgadas pelo Poder Judiciário, não é o governo que julga. Quem oferece a ação penal é o Ministério Público, que é independente. E quem julga é a Justiça, que é independente. Tudo o que a lei manda foi feito.
Haverá novas operações?
Novas operações vão acontecer, visando a elucidação completa desta rede delituosa, que se refere a executores, organizadores, muitos dos quais presos, financiadores, alguns dos quais presos, e os mandantes. Os chefes dessa empreitada criminosa, cujos nomes estão sendo revelados e vão continuar a ser revelados nos próximos meses.
Quais são as próximas diligências?
Na semana passada, a Polícia Federal pediu autorização ao ministro Alexandre de Moraes para realizar diligências relativas a militares. Depoimentos de policiais militares e de policiais federais começaram a imputar crimes contra militares. Não somos nós que achamos. São provas colhidas nos inquéritos.
São militares da ativa ou da reserva?
Há o depoimento no qual um policial federal alude a militares da ativa. Então é isso que nós estamos investigando.
Nenhum militar está preso até agora. Como se processa isso?
É porque a princípio a competência é da Justiça Militar. Temos muito cuidado com o chamado devido processo legal. Nada aqui é feito de qualquer jeito, de modo imprudente. Tudo aqui é feito lastreado em provas ou indícios.
Está na hora de o governador Ibaneis Rocha voltar?
Não gostaria de opinar sobre o mérito de uma questão da política do Distrito Federal, porque integro o governo federal e poderia ser algo indevido. O que posso afirmar é que, até o presente momento, não há nenhuma prova de que o governador Ibaneis participou ativamente do planejamento da execução de um golpe de Estado. Quantas vezes me perguntaram e eu vou dizer: 'Não, não existe essa prova'. 'Ah, mas ele errou nisto, naquilo ou naquilo outro'. Bom, isso é uma aferição que vai ser feita posteriormente. Aparentemente - repito, até aqui - tudo se processou em níveis hierárquicos abaixo dele.
E Anderson Torres?
Não gosto de mencionar nomes, mas o Anderson se encontra preso neste momento. Então isso é uma revelação de que houve alguma participação dele. Em que nível, cabe ao Poder Judiciário decidir, faço questão de sublinhar isso. Não me cabe julgar esse senhor ou qualquer outra pessoa.
O retorno de Ibaneis é possível?
Possível, é. Mas é um tema que compete ao Supremo decidir. Qualquer coisa que eu diga pode configurar algo que eu não faço, que é interferir em outro poder. Esse pedido está no Supremo. É um pedido razoável, que tem uma base argumentativa lógica: até agora, decorridos quase 60 dias do afastamento, não houve nenhuma prova concreta contra o Ibaneis. É um pedido razoável, mas não sei o que Supremo vai decidir.
O senhor fez algum contato com Ibaneis no dia 8?
Sim. Logo que a crise foi deflagrada, fui avisado e vim para cá. Eu estava próximo, na região do Gama, aqui no DF. Em mais ou menos 25 minutos cheguei aqui. Entrei no ministério pela (avenida) N2. Chego aqui nessa janela e me defronto com poucos manifestantes - ou seja, algo absolutamente controlável - subindo aquela rampa do Congresso. Alguns já estavam ali, próximo às cúpulas do Congresso.
Qual foi sua reação?
Obviamente, o primeiro telefonema que eu dei foi ao presidente da República, meu chefe imediato. Ele já sabia, óbvio. Abri o cardápio jurídico a ele. Eu disse: 'Presidente, a Constituição prevê o estado de sítio, estado de defesa, intervenção federal, GLO...' Enfim, abri o cardápio jurídico do que podia ser feito, inclusive para permitir o nosso comando. Porque às vezes há uma ideia de que o ministro da Justiça manda na PM do DF. Não, nós não mandamos. A Constituição diz que quem comanda a PMDF é o governador, assim como a PM do Rio Grande do Sul ou do Amapá. Então, há a autonomia federativa.
O que o presidente disse?
O presidente definiu o caminho da intervenção federal. Inicialmente seria uma intervenção no DF, ou seja, haveria inclusive o afastamento do governador e de todas as autoridades locais. Posteriormente, o próprio presidente, por alguns minutos, me liga e pergunta: 'A intervenção pode ser apenas na segurança?'. Eu disse: 'Sim, presidente, pode ser feito legalmente'. E ele define esse caminho que foi adotado. O decreto de intervenção foi preparado aqui naquela mesa (aponta para a mesa de reuniões no gabinete do ministro), enviei o decreto ao presidente, a intervenção é decretada. Nesse espaço de tempo, logo depois de eu falar com o presidente Lula, tentei falar com o governador Ibaneis, ele não atendeu.
Tentou mais alguém?
Liguei para o doutor Gustavo (Rocha, chefe da Casa Civil do GDF). Ele me atendeu, eu disse: 'Não consigo falar com o governador'. Ele disse: 'Estou indo para aí'. Em talvez 40 minutos ele chegou. Apresentou-me a doutora Celina (Leão), que eu não conhecia. Ela veio junto com ele. No momento da chegada dos dois, os terroristas já estavam no Supremo. Nós não tínhamos visão, mas já havia ocorrido aquela retirada de policiais na ladeira da Câmara. E os golpistas já estavam no Supremo e acho que no Planalto também.
O senhor falou da intervenção federal?
Neste momento em que o GDF chega, eu informo da intervenção. Já havia a decisão, faltava apenas o decreto retornar com a assinatura do presidente. O interventor (Ricardo Cappelli) estava aqui, e houve a intervenção. Graças a Deus, com uma hora e pouco, houve a reversão daquele fato de descontrole. E essa resposta rápida, a meu ver, foi decisiva inclusive para desanimar um eventual efeito dominó que os golpistas esperavam que fosse ocorrer.
A intervenção federal foi a melhor resposta para o 8 de janeiro?
Ela se revelou eficaz. Quando você tem várias alternativas, é preciso escolher aquela que responde mais rapidamente e de modo proporcional. Por que não fizemos um estado de sítio? Porque o estado de sítio talvez fosse excessivo diante daquela situação até ali existente. Estado de sítio é a medida máxima de restrição. Então acho que o presidente Lula foi muito sábio no sentido de ter guardado uma certa proporcionalidade. A intervenção foi o meio eficaz e suficiente para reverter aquela situação.
Um fator importante para o 8 de janeiro foi o extremismo nas redes sociais. Como o ministério pretende combater esse problema?
Essa é uma questão mundial, tanto que a Unesco fez na semana passada uma conferência sobre isso. A União Europeia legisla sobre isso. Então não é uma questão apenas brasileira, é uma questão nodal das democracias contemporâneas. Portanto é imperativo que o Brasil, além de fazer ouvir a sua voz na cena internacional, faça o dever de casa. E é isso que o Ministério da Justiça propôs. O que nós propusemos foi um texto moderado, adstrito a seis crimes, fazendo uma regulação bem leve em relação a essas condutas em geral nocivas na rede. A nossa proposta não se refere a fake news de um modo geral. Ela cria um conceito jurídico novo no Brasil, que é o chamado dever de cuidado das plataformas. Elas deixam de ser vistas como imunes à responsabilidade pelo que lá trafega, mas não de um modo geral e, sim, em relação a seis crimes, delimitados na lei do terrorismo e no capítulo do Código Penal destinado aos crimes contra o Estado Democrático de Direito. Em relação a isso eles passam a ser responsabilizados.
Por que isso seria um avanço?
Vamos supor. Um shopping pode alugar um estande para ensinar uma pessoa a fabricar bomba? Não. E se o fizer? Quem é responsável? Tecnicamente, é quem está ensinando, e o shopping, que está alugando um espaço. É assim. A internet ganhou uma centralidade tal que esse conceito da neutralidade ou da imunidade não pode mais prevalecer. Por quê? Porque é do modelo de negócios dessas empresas maximizar lucros com o vale-tudo. Os antagonismos, os preconceitos, os ódios são funcionais a esse modelo de negócios. Ou seja, pessoas ganham dinheiro com sangue e com vidas. E, por isso mesmo, aí entra a lei. Para conter os apetites insanos de quem quer ganhar dinheiro à custa de vidas humanas. E aí eu me refiro a vidas, não só pela ocorrência de homicídios, como nós vimos agora no Mato Grosso (sete pessoas assassinadas em uma chacina), como também vidas dizimadas por agressões morais. Então nós estamos propondo um pacto.
Isso difere do que está sendo discutido no Congresso?
Sim, porque no Congresso, até agora, prevalece uma ideia de autorregulação das plataformas. E essa autorregulação sequer é obrigatória. Produz-se algo que, do ponto de vista jurídico, é até dispensável. Nenhuma empresa precisa de autorização legal para se autorregular. Tanto é que os jornais têm seus manuais de redação. O que são os manuais de redação? São autorregulações para os seus profissionais. Então, nenhuma empresa precisa de autorização legal para dizer que ela pode eventualmente se autorregular. Então, nós estamos numa gradação entre autorregulação facultativa, que é o que até agora está no Congresso, e nós estamos dando um passo. Qual é o passo? Para manter uma zona, óbvio, um espaço de autorregulação, mas introduzir uma regulação externa em relação a seis crimes.
E a liberdade de expressão?
Não creio que o nosso projeto seja uma ameaça à liberdade de expressão. Pelo contrário, o nosso projeto defende a liberdade de expressão. Na medida em que você combate abusos, você protege o direito. No momento em que você fecha o caminho para dizer: 'Olha, a liberdade expressão tem fronteira. Você não pode propor matar as pessoas, não pode propor que segmentos sociais sejam discriminados', você está dizendo o que é a liberdade de expressão legítima. Você está protegendo-a. É como a liberdade religiosa. Por que a laicidade é a verdadeira proteção à liberdade religiosa? Porque ela diz que todos podem ter as suas religiões. Então a liberdade é sempre regulada. Dentro do nosso lar, no âmbito doméstico, familiar, todos temos liberdade regulada. Os cônjuges, os filhos, todos têm liberdade regulada pelo Código Civil, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, etc. Por que a internet vai ficar sem regulação alguma, se até os nossos lares são regulados? Então isso é uma farsa. Estes que dizem defender a liberdade de expressão são farsantes porque, na verdade, estão protegendo os seus lucros. Essa é a realidade.
Por que a Polícia Federal vai colaborar no caso Marielle Franco, cinco anos após o crime? Qual resultado o senhor espera?
Cinco anos depois do crime. Esse é o fator objetivo que justifica a determinação que eu enviei à Polícia Federal. Temos cinco anos dessa trágica ocorrência. Houve um avanço da investigação até os executores, e nós precisamos dar passos seguintes. Quem contratou? Quem mandou? Quem financiou? Foram apenas aquelas pessoas? Qualquer profissional versado em segurança pública, ou qualquer jornalista que acompanha temas policiais sabe que não foi isso. Que não foram apenas aquela duas pessoas. Recebi a gentil visita do procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro. E perguntei a ele se a participação da Polícia Federal era bem-vinda. Ele disse que sim. Fiz então a determinação do inquérito, que não corresponde ainda à chamada federalização porque a competência jurisdicional não saiu da Justiça estadual. A federalização depende de uma decisão do STJ. Nós não propusemos isso ainda. Podemos chegar ao pedido de federalização? Podemos, mas não chegamos ainda.
O índice de feminicídio no Distrito Federal está acima da média nacional. O senhor anunciou que o presidente Lula quer medidas emergenciais para todo o país. O que será feito?
Em 8 de março, o presidente Lula vai fazer uma série de anúncios sobre o Dia Internacional das Mulheres, inclusive sobre o feminicídio. Infelizmente é um crescimento nacional desse tipo de crime. Tenho acompanhado o Distrito Federal - é praticamente o dobro do ano passado. Mostra que essa cultura do ódio, do vale-tudo, vai contaminando as relações humanas. É preciso romper tudo isso e fortalecer as políticas públicas. Desde medidas educativas, como também medidas práticas, como o ministério comprando 270 viaturas policiais para entregar a todas as unidades federadas em apoio às patrulhas Maria da Penha e às delegacias da mulher. Vamos lançar um programa de novas Casas da Mulher. Esse é um modelo bem-sucedido, porque aumenta a eficiência das chamadas medidas protetivas.
Após pouco mais de 50 dias, como avalia a atuação do ministério?
O Ministério da Justiça e Segurança Pública é amplo, mas tem um fio condutor entre todas as ações: a garantia da aplicação da lei. Eu destaco sobretudo esse desafio: garantir que haja uma reorganização institucional do país, tendo a lei como referência. Dou um exemplo: por que havia a proliferação de garimpos ilegais no Brasil? Porque ninguém se interessava pelo assunto. Então, obviamente, onde não há norma, onde existe o vale-tudo, as pessoas perdem a noção de limites. Isso gerou uma brutal crise humanitária envolvendo povos indígenas e a morte de centenas de crianças.
É uma tragédia deliberada?
Por que esse garimpo ilegal operou durante tanto tempo, de modo impune? Porque havia pessoas que se sentiam autorizadas a invadir o território ianomâmi e porque havia um mecanismo de lavagem. Então, quando falo de autoridade da lei, me refiro a situações assim.
Como está a operação contra o garimpo?
Conseguimos avançar fortemente na desintrusão do território ianomâmi, onde antes havia milhares de pessoas. Mais de 10 mil pessoas, seguramente. Hoje, temos poucas centenas. Acreditamos que até abril tenderá a zero, que é nosso objetivo. Queremos a desintrusão completa do território ianomâmi, para que, aí, a gente possa partir para outras seis áreas. O plano é que tenhamos, inclusive, a separação do joio e do trigo. Sabemos que há pessoas que querem trabalhar nos termos da lei.
Questiona-se muito o modelo adotado hoje sobre a origem do ouro. A pessoa diz que o ouro é legal e fica por isso mesmo. Há iniciativas para corrigir?
Esse é o único ponto em que realmente se faz necessária uma mudança legislativa para fechar esse caminho. Temos outros que também devem ser adotados, mas não dependem de novas leis. São atos administrativos. Que, por exemplo, podem significar o fim das notas fiscais em papel e todas as notas fiscais serem eletrônicas. Isso não depende de mudança de lei, depende de atos infralegais, administrativos no âmbito do Ministério da Fazenda, por exemplo. Isso que está em debate no governo neste momento. O que o governo pode fazer de modo sequenciado? Primeiro, ações humanitárias, que foram e estão sendo feitas. Dois: desintrusão, está sendo feita. Três: mudanças administrativas, que estão em estudo e vão sair em breve; e mudanças legislativas, que envolvem sobretudo essa mudança desse conceito de presunção de boa-fé e de autodeclaração.
Como rastrear o ouro ilegal?
Hoje, a tecnologia permite aferir se aquele ouro veio daquela origem que foi declarada. Esses avanços tornam possível uma mudança da lei, e o governo também deve enviar um projeto de lei. Já há minutas no âmbito do governo, acho que ao longo do mês de março haverá também essa proposta ao Congresso Nacional.
Há empresários envolvidos na estrutura do garimpo ilegal. O ministério está em busca dessas pessoas também?
Há pessoas presas, em relação a esses outros âmbitos. Não adianta apenas tirar aquelas pessoas e, eventualmente, até prendê-las. É preciso identificar quem financia, quem são os donos dos aviões, quem transporta o combustível. Isso está sendo feito. E estamos investigando também para onde o ouro vai.
Concluída a ação de repressão, qual é o próximo passo?
Hoje mesmo (quinta-feira) conversei com o ministro Rui Costa, da Casa Civil. Temos um debate geral a fazer sobre a Amazônia, que não se refere apenas ao garimpo: trata-se da forma pela qual vamos garantir que 30 milhões de brasileiros e brasileiras possam viver. Isto é um debate real. Concreto. São pessoas. Você precisa gerar alternativas econômicas sustentáveis. Economia verde, reflorestamento, algo concreto, tangível, prático e que resolva as condições de vida dessas pessoas. Tivemos a Zona Franca de Manaus, com todos os seus defeitos - uma parte da indústria brasileira não gosta da Zona Franca e uma parte dos economistas não gostam -, mas foi o instrumento que até hoje atendeu a um problema concreto. Eu não defendo esse modelo necessariamente, mas precisamos de coisas novas com essa perspectiva. Quando se fala em economia verde, muita gente diz: "Ah, vamos fazer um projeto de pesca aqui, um projeto sobre castanhas acolá'. São projetos bons, mas não são suficientes.
Falta escala?
Não tem escala e, se não tem escala, não entra no mercado. E se não entra no mercado, você deixa de criar o desincentivo econômico à degradação ambiental. Então, hoje, você precisa de repressão, a parte do Ministério da Justiça e da Defesa, lei ordem controle, comando. Mas isso é uma parte do problema. A parte emergencial do problema, a ponta visível do iceberg. Tem que ser feito, está sendo feito. Mas a solução definitiva, você tem que olhar o conjunto.
Uma das principais medidas foi a anulação dos decretos de armas. De lá para cá, houve gestos dos bolsonaristas para tentar retomar os decretos do ex-presidente Bolsonaro, e uma chacina semana passada em Mato Grosso, na qual um dos assassinos é CAC. Como isso vai ser tratado?
Nós temos hoje, além da lei que está em vigor desde 2003 e que estamos cumprindo, decisões do Supremo. Então, eu não vejo como, a estas alturas, alguém possa de modo delirante propor que haja a volta a esse passado tão nocivo. Isso se choca contra decisões nítidas do Supremo. Ou seja, formou-se um consenso nacional das pessoas sérias de que não podemos conviver com esse caminho fraudulento, em que repentinamente brotaram CACs no Brasil. Inclusive os CACs de verdade sabem que isso está errado.
Por que o caminho dos CACs é fraudulento?
Como, de repente, surgiram tantos colecionadores de armas, tantos atiradores esportivos, tantos caçadores, para caçar o quê, afinal, se na imensa maioria do nosso território a caça é até ilegal? Os CACs viraram um escudo para pessoas que queriam ter porte de arma e não conseguiam, por ausência de comprovação da efetiva necessidade, por exemplo. E repentinamente acordaram e se descobriram CACs. Nosso problema não é com o atirador esportivo. Eu jamais seria, mas há pessoas que gostam. Nosso problema não é com o colecionador de armas. Nosso problema é com os fraudadores. Como esses que vão dar tiro em escola, no trânsito, por motivo de uma partida de sinuca, que vão matar as esposas, os filhos ou que vão vender armas para o PCC e para as quadrilhas no Brasil.
As fraudes já foram identificadas?
Sim, há notícias em profusão sobre isso. Há inquéritos que mostram, e o recadastramento vai mostrar. Por que estamos fazendo o recadastramento? Porque arma de uso restrito tem que ser mostrada fisicamente. Por que, como, de repente, uma pessoa acorda e resolve comprar 30 fuzis? Um já é esquisito. Convenhamos, a imensa maioria da população não tem dinheiro para comprar uma pistola, quiçá um fuzil e, de repente, comprou um fuzil? Comprou para quê? E comprou seis mil cartuchos? Para quê, se está com a conta de luz em casa atrasada?
E qual a sua conclusão?
Virou meio de vida. Para muita gente.
Era tráfico de armas mesmo?
Inclusive. Quadrilhas já foram desbaratadas vendendo registros falsos, vendendo armas. Então, o que nós queremos é distinguir. O CAC verdadeiro, ele vai continuar a existir. Nós não vamos caçar todos os registros de CAC. E eu digo isso porque há pessoas que estão sendo envolvidas por esse discurso. Estamos fazendo essa revisão, inclusive os CACs, os verdadeiros. Vão participar conosco, vamos ouvir 50 pessoas físicas e jurídicas. Começaremos agora nesta semana, em audiência pública.
Haverá uma agência nacional de armas?
É uma possibilidade. Hoje não está exatamente no nosso horizonte, porque a Polícia Federal e, em parte, o comando do Exército, podem fazer isso. Se no futuro surgir esse tema, não há oposição da nossa parte. Agora, nós precisamos organizar os cadastros. Havia muitas fraudes, muita inconsistência cadastral. Daí, o recadastramento.
Estima-se, no mínimo, 900 mil armas circulando por aí no país e houve uma procura muito baixa para o recadastramento. Caso esse recadastramento continue muito baixo, o que o ministério fará?
Acreditamos que esse recadastramento tende a crescer. Havia a expectativa de alguns de que a Justiça iria derrubar o decreto do presidente. Como houve a decisão do Supremo deixando claro que o decreto do presidente é compatível com a lei, com a Constituição, essa expectativa se fechou. Hoje, há outros mercadores de ilusões dizendo que vão resolver no Congresso, que vão mudar a lei, enfim, e para esperar. Como isso também não vai acontecer, porque se acontecesse, o que não vai acontecer, essa mudança legislativa seria incompatível com a decisão do Supremo. Eu acredito que quanto mais essas ilusões forem se dissipando, a tendência é que o cadastro aumente.