A revelação de que o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tentou reverter a apreensão de um conjunto de joias dado de presente pela família real da Arábia Saudita colocou, novamente, militares no centro de um caso rumoroso.
As reportagens publicadas primeiramente pelo jornal O Estado de S.Paulo mostram como pelo menos quatro militares tentaram, de diferentes formas, obter a liberação das joias destinadas à família Bolsonaro.
O caso virou alvo de investigações conduzidas pela Polícia Federal, Receita Federal e Ministério Público Federal (MPF). Na cena política, o episódio vem sendo explorado por políticos aliados ao governo para desgastar a imagem do ex-presidente.
Os apoiadores de Bolsonaro, por sua vez, minimizam o caso e defendem que ele não tomou nenhuma atitude irregular.
Em meio a esse "tiroteio" político, a imagem dos militares volta a ficar em evidência em um caso relacionado à proximidade deles com o antigo governo. Ao longo dos quatro anos da gestão de Bolsonaro, pesquisas apontaram que houve um aumento significativo na presença militar em cargos civis.
Essa proximidade nem sempre foi acompanhada de uma percepção positiva, como no caso da gestão do general Eduardo Pazuello, que comandou o Ministério da Saúde entre setembro de 2020 e março de 2021.No período, o Brasil vivenciou picos nos casos de covid-19 e se transformou em um dos países com o maior número absoluto de mortes pela doença.
Mas como os militares viraram peças-chave no episódio das joias de Bolsonaro? E qual o impacto do caso na reputação deles?
A BBC News Brasil entrevistou duas especialistas em assuntos de Defesa que avaliaram que a presença dos militares no caso é resultado, em parte, do aumento de integrantes da caserna na gestão do governo passado.
Elas avaliam ainda que o episódio tem um efeito significativo na imagem que boa parte da sociedade brasileira tem sobre os militares. Segundo elas, afeta a ideia de que as Forças Armadas seriam compostas por uma espécie de "casta superior".
Joias apreendidas
Segundo reportagens publicadas até agora, o caso começou em outubro de 2021, quando a Receita Federal apreendeu um conjunto de joias contendo um colar de diamantes, brincos, anel e relógio avaliado em R$ 16 milhões no Aeroporto de Guarulhos.
As joias fariam parte de um presente dado pela família real da Arábia Saudita ao então presidente Jair Bolsonaro e à ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro.
A participação de militares no episódio começa desde o seu início, uma vez que as joias estavam sendo transportadas pelo tenente do Exército Marcos Soeiro, então assessor do ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque (e, por sua vez, um almirante da Marinha).
Segundo as reportagens, os bens não foram declarados à Receita Federal quando entraram no país.
De acordo com a legislação, bens acima de US$ 1.000 que entrem no Brasil por via aérea precisam ser declarados à Receita Federal e, para serem liberados, é necessário pagar uma multa equivalente a 50% do valor do produto, além de outra de 25%. Ou seja, seria preciso pagar uma multa de R$ 12 milhões.
Após a publicação das reportagens, o ex-presidente disse, em entrevista nos Estados Unidos, que não cometeu nenhuma irregularidade e que as tentativas de reaver as joias tinham como objetivo incorporá-las ao "acervo". Ele não especificou se era uma referência ao seu acervo pessoal ou ao da Presidência da República.
"Eu não fiquei sabendo. Dois, três dias depois a Presidência notificou a alfândega que era para ir para o acervo. Até aí tudo bem, nada demais. Poderia, no meu entender, a alfândega ter entregue. Iria para o acervo, e seria entregue à primeira-dama. O que diz a legislação? Ela poderia usar, não poderia se desfazer", disse o ex-presidente.
A ex-primeira-dama declarou em uma rede social que não tinha conhecimento das joias.
Em nota divulgada no dia 4 de março, a Receita Federal afirmou que os procedimentos para destinação das joias ao acervo da Presidência não foram tomados pelo antigo governo.
"A incorporação ao patrimônio da União exige pedido de autoridade competente, com justificativa da necessidade e adequação da medida, como por exemplo a destinação de joias de valor cultural e histórico relevante a ser destinadas a museu. Isso não aconteceu neste caso", disse a nota.
Bento Albuquerque, em comunicado enviado à BBC News Brasil, declarou que o governo brasileiro "tomou as medidas cabíveis e de praxe, como sempre ocorreu, em relação aos presentes institucionais ofertados à Representação Brasileira" e que "em função dos valores histórico, cultural e artístico dos itens, o ministério encaminhou solicitação para que o acervo recebido tivesse o seu adequado destino legal".
Um vídeo divulgado pela Rede Globo mostra o momento em que Albuquerque e seu assessor conversam com fiscais da Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos logo após as joias serem apreendidas.
No vídeo, Albuquerque afirma que os bens teriam como destino a então primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Apesar da intervenção de Albuquerque, os fiscais da Receita mantiveram os bens retidos. Depois disso, ainda segundo as reportagens, o governo começou uma série de tentativas para liberar as joias apreendidas.
Entre essas investidas, houve um pedido feito pelo Ministério de Minas e Energia ao Ministério das Relações Exteriores (MRE) para que a pasta intercedesse na Receita pela autorizar os bens.
A dois dias do fim do mandato de Bolsonaro, uma última tentativa de reaver as peças foi feita e ela também envolveu militares.
O sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva foi enviado em missão "urgente" ao aeroporto de Guarulhos para fazer a retirada das joias que estavam apreendidas.
O militar foi enviado pelo então chefe da Ajudância de Ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid.
Apesar da tentativa, os servidores da Receita, que têm estabilidade funcional, não cederam e mantiveram a joias retidas.
No olho do furacão
Para a professora da Escola Superior de Guerra (ESG) Mariana Kalil, o fato de os militares terem sido tragados para o "olho do furacão" do caso das joias é uma consequência de um fenômeno que se acentuou durante o governo Bolsonaro: o aumento da presença de militares em cargos civis.
Uma pesquisa Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea) divulgada no ano passado apontou que entre 2013 e 2022, houve um crescimento de 193% no número de militares ocupando cargos civis no governo federal.
Kalil explica que isso aconteceu porque houve uma conjunção de dois fatores simultâneos.
"De um lado, você tinha um governo que precisava de quadros. E, de outro, você tinha as Forças Armadas que concordaram em ceder essas pessoas para compor o governo e ampliar sua presença no governo", disse Kalil.
A professora avalia que essa demanda mais acentuada por militares em cargos civis é resultante de uma espécie de "mística" criada em torno da formação militar no país.
"É uma herança dos tempos da ditadura. Foi criada uma ideia de que militares teriam uma formação para tratar de questões como segurança e desenvolvimento. Isso explica, em parte, porque um almirante foi nomeado ministro de Minas e Energia. A realidade é que militares não são normalmente treinados para isso. São treinados para atuar em questões de defesa", afirmou.
A pesquisadora da PUC do Rio de Janeiro Maria Celina Soares D'Araújo é doutora em Ciência Política e estuda, há décadas, os militares e questões de defesa no Brasil.
Ela concorda com Mariana Kalil sobre a "janela de oportunidade" que se criou durante o governo Bolsonaro para o aumento da presença de militares no governo.
"A ocasião faz o ladrão. Abriram espaço e os militares aproveitaram esse vácuo para ocupar postos de relevo. Os militares no Brasil são uma elite e se comportaram como elite ao assegurar posições e recursos. Mas, ao fazer isso, eles foram tragados para o olho do furacão", explica a professora.
Mito da casta superior em xeque
Tanto Mariana Kalil quanto Maria Celina Soares D'Araújo avaliam que a participação direta de militares nas tentativas de liberar as joias dadas à família Bolsonaro mancham a reputação da instituição.
"No Brasil, criou-se o mito de que os militares fossem uma casta superior, incorruptíveis e muito técnicos. Esse episódio colocou esse mito em xeque. Há uma exposição muito negativa", afirma Kalil.
Para Maria Celina, o dano à imagem dos militares neste caso é grave.
"O envolvimento das Forças Armadas com esse episódio das joias é muito sério porque, no Brasil, elas nunca foram rotuladas como parte de uma chamada 'cleptocracia' como vimos em alguns países vizinhos. Essa imagem se manteve intacta até recentemente. Agora, estamos vendo casos de militares em transações escusas e isso tem um impacto grande nessa mística", afirmou.
Mariana Kalil afirma que, entre os militares, o caso é tratado com certo distanciamento porque, na visão deles, as pessoas envolvidas não estavam atuando como militares.
"Os envolvidos estavam atuando como civis porque estavam cedidos por suas forças. O problema é que uma vez militar, sempre militar. As pessoas, em geral, não vão fazer essa distinção", afirma.
Em nota, o Exército disse que como o militar envolvido no episódio não estava a serviço da Força, os processos investigatórios devem ser feitos pelo órgão ao qual ele estava subordinado.
"O Exército segue à disposição dos Órgãos que apuram os fatos, a fim de contribuir com as investigações, sendo que quaisquer esclarecimentos solicitados serão prestados exclusivamente a esses órgãos. Nesse contexto, a Instituição tem proporcionado total apoio para o esclarecimento de todos os fatos", disse outro trecho da nota.
A Marinha enviou nota informando que o caso está sendo apurado fora do âmbito militar.
A reportagem também entrou em contato com Mauro Cid, mas ele não respondeu às chamadas e às mensagens enviadas.
O sargento Jairo Moreira da Silva desligou o telefone quando a reportagem se identificou.
Marcos Soeiro e seus representantes não foi localizado pela reportagem.