Mais para o final do ano, o governo deve discutir normas para o crescimento de despesas obrigatórias e vinculações orçamentárias (despesas que são atreladas a um piso ou também ao crescimento das receitas). É o que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), vai propor ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O ministro diz que ainda não pode adiantar precisamente o que será objeto de "regras mais estáveis", mas devem estar em questão reajustes do salário mínimo, de servidores, pisos e vinculações para saúde e educação, por exemplo. A ideia é acabar com o "vai e vem" de vinculações e normas de reajustes a cada governo "conservador" ou "progressista".Haddad adianta também que a grande revisão de desonerações deve ocorrer depois da aprovação da reforma tributária, que imagina aprovada na Câmara em junho e julho e no Senado em setembro ou outubro.
Então haveria uma discussão maior de isenções de impostos que, pelos cálculos da Receita, chegam a R$ 400 bilhões por ano. A revisão ("reoneração") seria paulatina, para também atender necessidades progressivas de receita, até para cumprir as metas de superávit do arcabouço fiscal. Pela "NRF", nova regra fiscal, o crescimento mínimo da despesa federal será de 0,6% por ano (em termos reais, além da inflação) e no máximo de 2,5% (crescimento limitado, ao ano, a 70% do crescimento da receita).
Haddad adianta também que na semana que vem divulga as novas regras para facilitar parcerias público-privadas (um modo de contratação de investimento, gestão ou serviço privado, em que a empresa arca com algum risco de remuneração, mas em que o setor público garante um pagamento).
Já é sabido que haveria do aval do Tesouro Nacional para parcerias em estados e municípios, diminuindo o risco de que as empresas não sejam pagas e aumentando, pois, a atratividade do negócio, emperrado no Brasil. Haddad conta também que empresas destas PPPS regionais também poderão emitir debêntures incentivadas (vão poder levantar financiamento no mercado de capitais com isenção de impostos, como já ocorre no caso federal).
Na entrevista, Haddad critica ainda os "jabutis" e os lobbies patrimonialistas (de empresas) que tiram receita do governo federal, exotismos "jurídico-legislativos", fala do papel do BNDES e rebate críticas à nova regra fiscal, do PT e economistas "ortodoxos".
PERGUNTA - O presidente pediu mudanças ou determinou diretrizes do que deveria ser o arcabouço fiscal? Por exemplo, aumento de despesa em saúde e educação?
FERNANDO HADDAD - O presidente Lula não pediu mudança naquilo que foi apresentado para ele. Quando levei, já era uma coisa bastante amadurecida [dentro do governo, em diálogo com outros ministros e com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto]. Não pediu mudança dos parâmetros, entendeu a lógica. Sobre recomposição de despesas em saúde e educação, houve apenas discussão de como fazer. Levamos um consenso para o presidente do que todos esses atores entendiam pertinente.
P - Com o fim do teto aprovado no governo de Michel Temer, despesas com saúde e educação devem voltar a ter um piso mínimo, vinculado ao crescimento da receita. Outras despesas, obrigatórias inclusive, vão ter crescimento ainda maior, como na Previdência, por causa do aumento real do salário mínimo. Vai haver um piso para investimentos. É possível que as despesas obrigatórias cresçam além do ritmo de crescimento da despesa total, comprimindo outros gastos. Existe alguma tentativa de conter despesas obrigatórias?
FH - Até o final do ano queremos uma rediscussão sobre isso. Queremos evitar isso que é recorrente: os governos progressistas revogam as desvinculações, os governos conservadores reintroduzem [regras que desobrigam o governo a gastar com certas rubricas do Orçamento, como em saúde ou educação]. O que nós queremos discutir, depois da reforma tributária, é uma regra que acabe com esse vai e vem, que dê uma estabilidade maior e mais consistente para esse tipo de despesa [obrigatória ou de crescimento vinculado a receitas].
Aliás, desde 1988, nós temos esse problema. Veio o governo Fernando Henrique com a DRU [desvinculação de receitas]. O governo Lula repôs as perdas. Vieram os governos Temer e Bolsonaro e retomaram a desvinculação. Vem o nosso governo e repõe as perdas. Está na hora de a gente ter uma regra mais sustentável.
[Essa rediscussão] Não está no arcabouço, porque não tem como estar em lei complementar, mas como tem uma emenda constitucional que vai ou não ser prorrogada no final do ano sobre desvinculação, nós entendemos que depois da reforma tributária é um momento interessante para fazer essa discussão. Isso causa muito prejuízo para o país. Uma hora, você congela o salário mínimo por sete anos, outra hora, você dá [reajuste de acordo com o crescimento do] PIB nominal. Então vamos buscar, em uma negociação, uma regra estável para evitar os solavancos que verificamos nos últimos anos...
P - Inclusive para reajustes do funcionalismo, salário mínimo?
FH - Não estou querendo antecipar pois há decisões de alçada do presidente da República. Mas penso que uma discussão séria sobre perenidade de regras como essa deveria entrar na ordem do dia, no segundo semestre. Então vamos buscar, em uma negociação, uma regra estável para evitar os solavancos que verificamos nos últimos anos...
P - Vai ser obrigatório que a despesa cresça no mínimo 0,6% ao ano, além da inflação, como está no arcabouço?
FH - O aumento do gasto durante o teto de gastos foi de 0,6% ao ano. Mesmo com a medida mais dura já tomada na história mundial, que foi o teto de gastos, a despesa cresceu 0,6%. Nos sete anos de governos ultraneoliberais, a despesa cresceu 0,6% [ao ano]. Na minha opinião, seria um equívoco vender para o país uma coisa que nem os governos ultraneoliberais conseguiram entregar.
É melhor apresentarmos uma coisa factível [levando em conta] o potencial de crescimento que a economia brasileira tem. O pressuposto de muitas das perguntas que você está me fazendo é: o Brasil nunca mais vai crescer.
P - Sobre os impostos, o sr. já falou de empresas de apostas, do fim do impacto de créditos do ICMS sobre a receita federal. O que mais vem, em termos de fins de isenções ou reonerações?
FH - Certo ou errado, o BNDES foi muito criticado pela imprensa ao longo dos últimos anos por privilegiar certos setores, alguns chamavam de "campeões nacionais" e tudo mais. Tem uns cinco BNDES dentro do Orçamento federal. Sobre o que não vejo a imprensa reclamar com a mesma energia, vamos dizer assim. Penso que isso é estranho.
P - O sr. está falando de subsídios, certo?
FH - Subsídios, desonerações, isenções.
Exemplo. Em virtude de uma emenda parlamentar, dentro de uma lei complementar, de 2017, a subvenção a custeio de empresas hoje está em 88 bilhões
P - O sr. está falando de perda de receita federal por causa de créditos do ICMS, certo?
FH - Essa subtração, na mão grande, da base de cálculo de um tributo federal, pelo não pagamento de um tributo estadual, foi um assalto aos cofres públicos. Não tenho como caracterizar de outra maneira.
Já perdemos a base de cálculo do PIS/Cofins por causa de uma decisão do Supremo que mandou excluir 100% do ICMS da base de cálculo, à vista e retroativo. Agora, teve a decisão de dezembro [do STF], que mandou fazer a revisão da vida toda da Previdência.
Só essas duas decisões levaram o que o governo anterior alardeava o que teria sido a economia com a reforma da Previdência, um trilhão [de reais, em uma década], sem que ninguém notasse. Se nós continuarmos nessa toada, não vai dar certo.
Se você vai acabar com os tributos federais, você vai acabar com o Estado nacional. Porque não existe Estado nacional sem base fiscal, aprendi isso na escola.
Estamos em uma situação em que esse tipo de artifício, uma péssima combinação entre jabutis e decisões judiciais exóticas, um exotismo que só existe no Brasil.
P - Quais são os outros "BNDES" [o equivalente em subsídios aos empréstimos do banco]?
FH - Tem coisa que tudo bem. Ninguém está pensando em rever ProUni, isenção das Santas Casas, tudo isso faz parte do sistema social, de proteção social do Brasil. ProUni é bolsa de estudo. Santa Casa tem um papel complementar do SUS. Esse tipo de benefício é um benefício justo. Subvenção ao investimento [das empresas via créditos do ICMS e seu efeito em imposto federal] nós queremos manter, mesmo considerando que essa não é a maneira mais adequada de fazê-lo: isto é, o governo estadual decidindo qual a isenção que o governo federal vai dar. Mas, até para atenuar os efeitos da revisão [da isenção] vamos rever apenas a subvenção sobre custeio [das empresas]. Para investimentos, vamos manter
P - Vai ser mudança por lei ou medida provisória. Vai ter lobby contrário, em especial do varejo.
FH - O que eles vão ganhar de redução de taxa de juros é muito mais importante do que eles vão passar a pagar devidamente. Eles não estão entendendo o equilíbrio macroeconômico que nós estamos perseguindo.
P - Por isso alguns setores também são contra a reforma tributária...
FH - Aí é o problema do patrimonialismo brasileiro. Todo setor vê o seu naco. E quem vê o todo? É cada um buscando o seu naco e a consistência macroeconômica do país sai pelo ralo.
Se, quem não paga imposto, passar a pagar, todos nós vamos pagar menos juros e a economia vai crescer. Para o bem comum. Enquanto setores privilegiados continuarem a fazer o que estão fazendo, lobby no Congresso, lobby no Judiciário, lobby para erodir a base fiscal do Estado... [vamos ter isso] cinco BNDES no Orçamento da União.
E eu vejo o BNDES com bons olhos. Prestou grandes serviços ao país. Estou fazendo uma comparação, estou falando aqui é da escala [de subsídios em geral no Orçamento], que estão no Orçamento e sem transparência.