Brasília - A viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China, considerada a mais importante dos primeiros 100 dias de governo, foi articulada com muitos interesses em jogo, além dos tradicionais acordos bilaterais. O encontro com o líder chinês, Xi Jinping, marcou a intenção dos dois países de inserir o Brics – acrônimo de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – no tabuleiro da geopolítica mundial, dominado, nas últimas duas décadas, pelos EUA, após a queda do império soviético. A chegada, amanhã, do ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, a Brasília, é mais um passo no processo de redefinição do papel do bloco em um cenário global bem mais complexo e tenso, por causa da invasão russa à Ucrânia.
Uma das principais diferenças entre o primeiro encontro de cúpula do Brics, em 2006, ainda sem a participação da África do Sul, e a situação atual é a posição da China. O maior país emergente do clube, na época, assume, agora, a liderança inconteste do bloco como única potência mundial a rivalizar com o poderio econômico e militar dos EUA. A agenda dos cinco sócios, até então limitada à defesa de interesses comerciais nas negociações com as principais economias do mundo, principalmente na área do agronegócio, também ficará mais ampla.
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A questão mais sensível para os diplomatas envolvidos nessas negociações é a incerteza quanto à participação do presidente russo, Vladimir Putin, na reunião de cúpula de agosto. Putin tem contra si um mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia (Holanda), por crimes de guerra. Como a África do Sul (assim como o Brasil) é signatária do estatuto firmado com base no Acordo de Roma, de 1988, (ao qual o Brasil aderiu em 2002, no governo de Fernando Henrique Cardoso), Putin teria que ser preso ao desembarcar em solo sul-africano.
Diplomatas e especialistas em relações internacionais apontam os desafios dos sócios do Brics neste momento de grandes incertezas globais. A guerra na Ucrânia é, unanimemente, apontada como o principal entrave, por envolver, justamente, o sócio responsável pela deflagração do conflito, repudiado pela ONU, com voto do Brasil. Por outro lado, as questões econômicas abrem áreas de consenso e de oportunidades para os cinco países, envolvendo, principalmente, o comércio (principalmente commodities do setor agrícola), investimentos em infraestrutura, acesso a novas tecnologias e meio ambiente, como o enfrentamento da emergência climática.
“Para o Brasil, será um momento muito especial, porque o país se projeta muito por meio do Brics. Ainda mais agora, em que o Brasil ocupa a presidência do banco do Brics, com a ex-presidente Dilma Rousseff. O banco tem recursos dos países membros – e a China aloca a maior parte dos fundos – para financiar, sobretudo, a área de infraestrutura. O Brasil ganha uma projeção imensa nesse sentido”, avalia um diplomata envolvido diretamente nas negociações do Brics.
“O Brasil sempre foi um país que defende o multilateralismo, a não ingerência em assuntos internos, a soberania territorial, a solução pacífica das controvérsias. O Brasil é tido como um país muito confiável pelos outros parceiros justamente por essas posições tão equilibradas e legalistas que adota.” O diplomata considera este ano extremamente importante para o país, porque prioriza o Brics em um momento em que o bloco está em evidência. “O governo está tomando as decisões mais acertadas, de respeito ao multilateralismo, estamos retomando as parcerias, não estamos buscando restrições às nossas relações, ao contrário, e essa é a tradição do país.”
“O Brics ainda é um sonho, porque a posição dos países ainda é díspar. A Índia ainda é protecionista, a China é mais pragmática, a Rússia é uma incógnita sempre. Ainda não vejo o Brics como uma expressão prática, é teórica ainda, muito boa, positiva, mas precisa alinhar questões de caráter macroeconômicos que não estão claros ainda. Mas tem potencial para vir com vigor, com força, para assumir um papel de protagonismo”, diz Roberto Rodrigues, professor emérito da Fundação Getulio Vargas e ministro da Agricultura no primeiro mandato do presidente Lula. “O Brics tem um potencial espetacular, reúne quatro países enormes, e tem mais países chegando agora”, avalia o professor, se referindo às negociações para a entrada de Argentina e Irã, cujas conversas diplomáticas estão em andamento.
Segundo Hugo Albuquerque, especialista em relações sino-brasileiras e editor de Autonomia Literária, a entrada da Argentina é mais tranquila, diferentemente da pretensão do Irã. “A próxima questão é um alargamento do bloco, a inclusão da Argentina e do Irã, o que, talvez, faça o bloco mudar de nome”, disse ele. Para Albuquerque, a ampliação do bloco tem cunho geopolítico estratégico, mas, em função das dimensões dos países, dificulta a atuação unificada dos países do bloco. Para ele, o próximo passo será definir uma estratégia de mediação em relação à Rússia. “Ninguém sabe dizer aonde a Índia vai, mas a tendência é que ela tenda a se acomodar com a China no médio prazo”.
CONFLITO
Sobre o papel do Brasil, ele destaca a boa imagem do presidente brasileiro. “Lula é uma figura inquestionável pelas suas capacidades negociais, e o Brasil tem uma posição privilegiada, pois tem relações muito boas tanto com a Ucrânia e com a Rússia, assim ele tem uma posição privilegiada justamente por não ter tanto interesse na região e não ter tanta força militar”, aponta Albuquerque. Já para a professora de Relações Internacionais da ESPM Denilde Holzhacker, mesmo que EUA e China consigam a paz na Ucrânia, o Brasil não terá papel central. Ela afirma que será difícil para o país manter sua postura de neutralidade.
“O Brics passou a ter uma agenda muito mais preocupada com cooperação e desenvolvimento, mas deixou (nos últimos anos) de ser um ator coeso de tomada de decisão e de posicionamento internacional”, aponta. Segundo ela, o fato de o Brasil estar no Brics não garante ao país ser um interlocutor de uma agenda que é europeia. “A influência no conflito deve ser pequena, mas todos os lados parecem ter boa vontade de ouvir o Brasil”.