Há exatos 40 anos, em 19 de abril de 1983, Mário Dzururá – ou Mário Juruna (1943-2002), como se tornou conhecido o chefe guerreiro xavante – subiu à tribuna da Câmara dos Deputados para pronunciar-se em um discurso histórico, que abordava a dura realidade dos povos originários e a conjuntura política da época – em certos aspectos muito parecida com a de hoje.
Ele criticou a ausência de representação indígena no Parlamento, a falta de acesso à escolarização do seu povo, cobrou eleição direta para presidente e denunciou o Brasil de castas privilegiadas do poder econômico e do poder político, em contraposição às classes despossuídas, que lutavam para fazer a próxima refeição. O deputado Juruna, em sua fala aos colegas parlamentares, trouxe à luz a condição de invisibilidade social da sua gente antes da Constituição Federal de 1988.
Apontando o dedo para a ditadura militar, naquele pronunciamento histórico, Juruna sugeriu o retorno dos militares aos quartéis e reivindicou o direito de a população brasileira eleger o seu presidente da República, num momento em que a sociedade ainda não se mobilizara em respaldo à emenda Dante de Oliveira, apresentada em 2 de março de 1983, restabelecendo as eleições diretas para a Presidência da República.
“Presidente da República tem que ser mais votado com povo brasileiro (...) O presidente foi eleito com empresário, presidente foi compromisso com multinacional, com fazendeiro, com empresário e grande empresário. Se presidente pai do Brasil, presidente segurava toda barra que está acontecendo no Brasil. E aqui gente tá morrendo. E por quê? Porque não tem presidente, não tem autoridade. E toda autoridade é comprada, toda autoridade está se vendendo, quer o dinheiro, quer ganhar dinheiro”, declarou Juruna, que ainda pediu a demissão de todo o ministério do general João Batista Figueiredo e pleiteou que a Funai fosse administrada por indígenas, não por militares.
Mário Juruna foi o primeiro indígena na história do Brasil a conquistar, em 1982, mandato representativo na Câmara dos Deputados, pelo Rio de Janeiro. Filiou-se ao PDT estimulado por Leonel Brizola e pelo antropólogo Darcy Ribeiro.
Precursos da participação indígena na política
A eleição dele representou um ponto de inflexão do movimento indígena brasileiro. Além de afrontar a tutela do estado aos povos originários, foi precursor da participação de indígenas na política partidária, abrindo a avenida para as candidaturas e algumas vitórias de representantes dos povos originários, em todos os níveis de governo.Em 2022 foram eleitas quatro deputadas federais – Célia Xacriabá (Psol-MG), Juliana Cardoso (PT-SP), Silvia Waiãpi (PL-AP) e Sonia Guajajara (Psol-SP). Entre 2016 e 2020, os prefeitos indígenas passaram de seis para oito; já os vereadores aumentaram de 168 para 179. Considerando também os vice-prefeitos, 197 indígenas saíram-se vitoriosos nas eleições municipais de 2020, contra 184, no pleito anterior.
Mudanças na Funai
Mário Juruna exerceu a legislatura 1983-1987 focado nas questões indígenas. Criou a Comissão do Índio, da qual foi o primeiro presidente. Conseguiu aprovar um projeto que modificava a composição da diretoria da Funai – dirigida até então por militares desconectados com a realidade dos povos originários –, o que garantiu a formação de um conselho diretor para fiscalizar a atuação da entidade nas áreas indígenas, com membros indicados pelas comunidades.
Deu visibilidade à causa dos povos originários, marcando forte presença étnica na Câmara dos Deputados, com corte de cabelo, ornamentos característicos, discursando algumas vezes em sua língua original. Em decorrência da crítica permanente ao governo militar, após um discurso em que chamou ministros de corruptos e ladrões, houve tentativa de cassá-lo.
Eleitor de Tancredo Neves no colégio eleitoral, Juruna viu o fim de seu mandato se eclipsar, após denunciar o empresário Calim Eid, coordenador da campanha presidencial do candidato Paulo Maluf, (PDS), por tentar comprar a mudança do voto dele. Fotografado com a pilha de dinheiro à sua frente, Juruna admitiu ter recebido para votar em Maluf, mas devolveu o suborno. Ele não se reelegeria no pleito seguinte.
Desligou-se do PDT e deixou a Câmara dos Deputados em janeiro de 1987. Contratado pelo Projeto Rondon, foi colocado à disposição da Assembleia Constituinte como assessor técnico.
A realização da representação indígena, com a presença de Juruna na Câmara dos Deputados, estimulou a ascensão de novas lideranças dos povos originários e abriu caminho para que na Assembleia Nacional Constituinte ocorressem mudanças importantes, como o reconhecimento da organização social indígena, dos costumes, línguas, crenças e tradições, e os seus direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens.
Deu visibilidade à causa dos povos originários, marcando forte presença étnica na Câmara dos Deputados, com corte de cabelo, ornamentos característicos, discursando algumas vezes em sua língua original. Em decorrência da crítica permanente ao governo militar, após um discurso em que chamou ministros de corruptos e ladrões, houve tentativa de cassá-lo.
Eleitor de Tancredo Neves no colégio eleitoral, Juruna viu o fim de seu mandato se eclipsar, após denunciar o empresário Calim Eid, coordenador da campanha presidencial do candidato Paulo Maluf, (PDS), por tentar comprar a mudança do voto dele. Fotografado com a pilha de dinheiro à sua frente, Juruna admitiu ter recebido para votar em Maluf, mas devolveu o suborno. Ele não se reelegeria no pleito seguinte.
Desligou-se do PDT e deixou a Câmara dos Deputados em janeiro de 1987. Contratado pelo Projeto Rondon, foi colocado à disposição da Assembleia Constituinte como assessor técnico.
A realização da representação indígena, com a presença de Juruna na Câmara dos Deputados, estimulou a ascensão de novas lideranças dos povos originários e abriu caminho para que na Assembleia Nacional Constituinte ocorressem mudanças importantes, como o reconhecimento da organização social indígena, dos costumes, línguas, crenças e tradições, e os seus direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens.
Gravador, arco e flecha urbano
O líder Xavante Mário Juruna começou a se destacar nacionalmente ao longo da década de 70, em que a luta social e étnica dos povos originários por direitos e cidadania fora marcada por sua organização em assembleias de chefes indígenas. Inicialmente idealizadas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), mas com a participação direta das lideranças, entre 1974 e 1980, 15 dessas assembleias reuniram diferentes etnias, propiciando a emergência do protagonismo indígena em um movimento social propositivo.
Em 1978, Juruna também participaria da mobilização nacional contrária ao Decreto de Emancipação Indígena de 1978, proposto pela ditadura militar, que mirava as terras indígenas, que também seriam emancipadas, tornando-se passíveis de exploração em projetos tidos por desenvolvimentistas. Amplos espectros da sociedade civil aderiram ao movimento de resistência ao decreto, que foi vitorioso em derrubar a proposta do governo militar.
Mário Juruna, que por essa época estava amplamente engajado no movimento nacional pela conquista de direitos indígenas, inaugurou uma nova abordagem para denunciar a omissão e promessas não cumpridas aos indígenas feitas pelas autoridades do governo militar. Depois de enganado por políticos e autoridades reiteradas vezes, passou a carregar um gravador a tiracolo pelos meandros de Brasília, registrando tudo o que lhe era dito, sempre que tentava se fazer ouvir pelas autoridades do então governo Ernesto Geisel (1974-1979).
“Eu comprei gravador porque branco faz muita promessa. Depois esquece tudo”, costumava explicar Juruna. Ao cobrar coerência entre as palavras e as ações das autoridades, exibindo as gravações, Juruna ganharia notoriedade. Ao mesmo tempo, era ridicularizado por segmentos que pretendiam desqualificar a sua liderança e explorar o seu “exotismo”.
Em 1980, com a presença na cena política nacional consolidada, Mário Juruna foi convidado, junto com Darcy Ribeiro, para participar na Holanda como jurado no IV Tribunal Bertrand Russel em Roterdam, que julgava crimes contra indígenas do mundo inteiro. A Funai tentou impedi-lo e a disputa foi para a justiça, ganhando grande visibilidade nas páginas dos principais jornais. Questionava-se, assim, pela primeira vez, a tutela do estado brasileiro sobre os povos originários.
Em 1978, Juruna também participaria da mobilização nacional contrária ao Decreto de Emancipação Indígena de 1978, proposto pela ditadura militar, que mirava as terras indígenas, que também seriam emancipadas, tornando-se passíveis de exploração em projetos tidos por desenvolvimentistas. Amplos espectros da sociedade civil aderiram ao movimento de resistência ao decreto, que foi vitorioso em derrubar a proposta do governo militar.
Mário Juruna, que por essa época estava amplamente engajado no movimento nacional pela conquista de direitos indígenas, inaugurou uma nova abordagem para denunciar a omissão e promessas não cumpridas aos indígenas feitas pelas autoridades do governo militar. Depois de enganado por políticos e autoridades reiteradas vezes, passou a carregar um gravador a tiracolo pelos meandros de Brasília, registrando tudo o que lhe era dito, sempre que tentava se fazer ouvir pelas autoridades do então governo Ernesto Geisel (1974-1979).
“Eu comprei gravador porque branco faz muita promessa. Depois esquece tudo”, costumava explicar Juruna. Ao cobrar coerência entre as palavras e as ações das autoridades, exibindo as gravações, Juruna ganharia notoriedade. Ao mesmo tempo, era ridicularizado por segmentos que pretendiam desqualificar a sua liderança e explorar o seu “exotismo”.
Em 1980, com a presença na cena política nacional consolidada, Mário Juruna foi convidado, junto com Darcy Ribeiro, para participar na Holanda como jurado no IV Tribunal Bertrand Russel em Roterdam, que julgava crimes contra indígenas do mundo inteiro. A Funai tentou impedi-lo e a disputa foi para a justiça, ganhando grande visibilidade nas páginas dos principais jornais. Questionava-se, assim, pela primeira vez, a tutela do estado brasileiro sobre os povos originários.
Vida na selva até os 17 anos
A demarcação das terras indígenas sempre esteve no centro das preocupações de Mário Juruna. No século 18, o povo Xavante vivia na cabeceira do Rio Xingu, mas depois de uma série de conflitos com posseiros, atravessaram o corredor do Tocantins-Araguaia, descendo para a região do Rio Roncador e Rio das Mortes, onde, nos anos 40, foram localizados pela expedição dos irmãos Villas-Bôas e pelo sertanista Francisco Meirelles, que os teria convencido a permanecer na Serra do Roncador.
Os xavantes viveram ali protegendo a margem do Rio das Mortes, que não deixavam ser atravessado, longe do contato com os colonos, até por volta dos anos 50. Mário Juruna, que nasceu em Couto Magalhães (MT) em 3 de setembro de 1943, filho dos índios xavantes Isaías Butsé e Mercedes Ro Otsitsina, viveu na selva, sem contato com a civilização, até os 17 anos. Adulto, tornou-se líder guerreiro da aldeia Vavante Namunjurá, localizada na reserva indígena de São Marcos, no município de Barra do Garça (MT).
Vítima de diabete crônica, o ex-cacique xavante morreu em 17 de julho de 2002. Debilitado pela doença, preso a uma cadeira de rodas, Juruna, que publicou em 1983 “O gravador de Juruna”, fora esquecido pelos políticos. Mas sua atuação foi um marco histórico. E os seus gestos em defesa ao direito da existência indígena, nas palavras de Ailton Krenak, seguem ressurgindo em outros corpos.
Os xavantes viveram ali protegendo a margem do Rio das Mortes, que não deixavam ser atravessado, longe do contato com os colonos, até por volta dos anos 50. Mário Juruna, que nasceu em Couto Magalhães (MT) em 3 de setembro de 1943, filho dos índios xavantes Isaías Butsé e Mercedes Ro Otsitsina, viveu na selva, sem contato com a civilização, até os 17 anos. Adulto, tornou-se líder guerreiro da aldeia Vavante Namunjurá, localizada na reserva indígena de São Marcos, no município de Barra do Garça (MT).
Vítima de diabete crônica, o ex-cacique xavante morreu em 17 de julho de 2002. Debilitado pela doença, preso a uma cadeira de rodas, Juruna, que publicou em 1983 “O gravador de Juruna”, fora esquecido pelos políticos. Mas sua atuação foi um marco histórico. E os seus gestos em defesa ao direito da existência indígena, nas palavras de Ailton Krenak, seguem ressurgindo em outros corpos.