O registro histórico dos “brancos” tenta apagá-los, mas os gestos de resistência ao direito de existir ressurgem em outros corpos. É assim que, sob a inspiração de Mário Juruna, primeiro indígena da história a ser eleito deputado federal, salta à cena política da Assembleia Nacional Constituinte, em 4 de setembro de 1987, o jovem indígena Ailton Krenak.
Em manifestação histórica em defesa dos direitos indígenas, discursa da tribuna enquanto pinta o rosto com jenipapo, referência ao luto Krenak pelo extermínio de mais de cinco milhões de indígenas no Brasil. “Naquele momento, pensei: ‘Agora sou um totem diante deles’. Então me senti Juruna”, revive Ailton Krenak hoje, aos 69 anos, já membro da Academia Mineira de Letras e considerado um dos mais destacados ativistas do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas.
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As conquistas cravadas na Constituição Federal sucedem vitórias da luta indígena sobre a ditadura militar, que em 1978 tentou baixar o decreto de emancipação, que largaria os povos originários à própria sorte, à semelhança do que fez o estado brasileiro com a população negra escravizada, após a abolição.
“Nós, povos indígenas, escapamos de alguns truques da história. Deveríamos ter desaparecido ao final do século 20. Este era o projeto colonial. Tentaram, à semelhança dos corpos escravizados após a abolição, nos largar no meio da estrada. Então costumo dizer: eles perderam, nós ganhamos”, celebra Ailton Krenak.
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Vitórias de uma longa luta pela existência à parte, seguem e são hoje lembradas, no Dia dos Povos Indígenas, as batalhas dos tempos coloniais, ainda atuais, para arrastar indígenas de suas terras, forçando-os ao modo de vida “civilizado”.
A mais recente, o enfrentamento da tese jurídica do marco temporal, a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), segundo a qual os povos originários só teriam direito a reivindicar determinada terra caso já estivessem nela quando da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. “O estado brasileiro até concebe que os indígenas possam ter um território, mas têm de viver lá dentro como brancos. E vamos continuar a lutar contra isso”, diz Ailton Krenak.
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O que representa para a causa indígena, naquele ano de 1982, a eleição de Mário Juruna para deputado federal?
A história, como tradução de sentido social, tem truques. O fenômeno da insurgência de um sujeito indígena, tutelado pelo estado colonial brasileiro, deve ser percebido como um evento extraordinário. Não deve ser naturalizado.
É isso que chamo de truque da história. Não só no campo indígena, mas sabemos que outras pessoas, outros povos, ao longo da história do Brasil, foram invisibilizados, como as personalidades negras que, desde o final do Império, atuaram ativamente no sentido de afirmar a presença dos povos de matriz africana no contexto brasileiro. Porque tem o truque da história, o de sumir. Quase que o nosso querido Mário Juruna foi lançado no sumidouro da história.
É isso que chamo de truque da história. Não só no campo indígena, mas sabemos que outras pessoas, outros povos, ao longo da história do Brasil, foram invisibilizados, como as personalidades negras que, desde o final do Império, atuaram ativamente no sentido de afirmar a presença dos povos de matriz africana no contexto brasileiro. Porque tem o truque da história, o de sumir. Quase que o nosso querido Mário Juruna foi lançado no sumidouro da história.
O que pretendia o governo militar com o Decreto de Emancipação Indígena?
Quando Juruna aparece na cena brasileira, o governo militar anunciava o Decreto de Emancipação Indígena (1978). Houve grande mobilização social contrária, Mário Juruna participa ativamente da resistência ao decreto, que representava a tentativa de um golpe dentro do golpe.
Com isso, a ditadura iria jogar os indígenas na estrada, no momento em que estavam se organizando, em movimento coordenado por assembleias de chefes indígenas em todo o país. A ditadura pretendia fazer com os indígenas, à semelhança do que o estado brasileiro já havia feito com os corpos escravizados dos negros, com a abolição.
Era um truque bem acomodado da produção de cima para baixo da história brasileira. No caso dos povos indígenas, escapamos desse truque. Os povos indígenas deveriam ter desaparecido ao final do século 20. Este era o projeto colonial. Então costumo dizer: eles perderam, nós ganhamos. A sociedade avançou.
Com isso, a ditadura iria jogar os indígenas na estrada, no momento em que estavam se organizando, em movimento coordenado por assembleias de chefes indígenas em todo o país. A ditadura pretendia fazer com os indígenas, à semelhança do que o estado brasileiro já havia feito com os corpos escravizados dos negros, com a abolição.
Era um truque bem acomodado da produção de cima para baixo da história brasileira. No caso dos povos indígenas, escapamos desse truque. Os povos indígenas deveriam ter desaparecido ao final do século 20. Este era o projeto colonial. Então costumo dizer: eles perderam, nós ganhamos. A sociedade avançou.
Como Mário Juruna conseguiu registrar a sua candidatura em 1982, se indígenas tutelados não tinham direito de votar e nem de serem votados?
Mário Juruna se elegeu pelo Rio de Janeiro, no PDT, levado pelas mãos de Leonel Brizola e de Darcy Ribeiro. A condição do indígena antes da Constituinte era semelhante à da mulher no Código Civil brasileiro: era tutelada pela família, submetida à administração feita pelo marido ou pais, e ela não podia tomar decisões sozinha. Já os indígenas eram submetidos a uma tutela ainda mais absoluta, nem sequer podiam interpor representantes, eram considerados uma espécie de idiota.
O Código Civil brasileiro, que era de 1916, que inclusive só foi revogado em 2002 pela Lei nº 10.406, colocava todo mundo no mesmo patamar, nulo, tutelado. Juruna transgride essa ordem colonial, que atravessou o Império e a República, por ser muito corajoso e inocente, aceitou o convite para assinar a filiação dele a uma legenda, que ele não sabia o que era.
Mas pela fé e confiança no Darcy Ribeiro, ele assinou. Dizem inclusive que o Darcy teria feito o desenho para o Mário Juruna imitar, que era o nome Mário Juruna. Ele não sabia ler nem escrever. Juruna não era do Rio de Janeiro, mas do Mato Grosso. Mas para garantir a candidatura dele, foi indicado o endereço no hotel em que ele ficava no Rio.
O Código Civil brasileiro, que era de 1916, que inclusive só foi revogado em 2002 pela Lei nº 10.406, colocava todo mundo no mesmo patamar, nulo, tutelado. Juruna transgride essa ordem colonial, que atravessou o Império e a República, por ser muito corajoso e inocente, aceitou o convite para assinar a filiação dele a uma legenda, que ele não sabia o que era.
Mas pela fé e confiança no Darcy Ribeiro, ele assinou. Dizem inclusive que o Darcy teria feito o desenho para o Mário Juruna imitar, que era o nome Mário Juruna. Ele não sabia ler nem escrever. Juruna não era do Rio de Janeiro, mas do Mato Grosso. Mas para garantir a candidatura dele, foi indicado o endereço no hotel em que ele ficava no Rio.
O registro de candidatura de Juruna foi questionado pela ditadura militar?
Como nada igual jamais havia acontecido, as autoridades da ditadura não entenderam o que estava se passando. Só vieram a entender quando Juruna foi eleito e diplomado. Houve então uma grita. O primeiro questionamento foi feito à Funai – o presidente era um coronel – que recebeu uma notificação do ministro da Justiça indagando: “Como você deixou escapar um indígena tutelado, se candidatar a deputado federal, se eleger e afrontar a tutela dentro do Congresso? Vamos cassar o mandato desse sujeito”.
Então fizeram todo tipo de tentativa para cassar o mandato do Juruna. Alguns dos grandes juristas brasileiras o defenderam. Enquanto isso, Juruna colocava terno, gravata, assumia o mandato com o corte de cabelo tradicional indígena, com brinco de madeira adornando a orelha, determinado a fazer o discurso de posse na língua Xavante.
Quando na posse, inaugurou o discurso de posse na língua Xavante, a Mesa da Câmara dos Deputados retirou o som: “Vossa Excelência tem de falar português, que é a língua oficial do Brasil”. O Juruna respondeu: “Não é a minha língua”. Aí ele mostrou que estava ali para incomodar, que não iria fazer concessão. Fez o discurso dele na língua Xavante e o assessor dele distribuiu um texto com a tradução do discurso.
Então fizeram todo tipo de tentativa para cassar o mandato do Juruna. Alguns dos grandes juristas brasileiras o defenderam. Enquanto isso, Juruna colocava terno, gravata, assumia o mandato com o corte de cabelo tradicional indígena, com brinco de madeira adornando a orelha, determinado a fazer o discurso de posse na língua Xavante.
Quando na posse, inaugurou o discurso de posse na língua Xavante, a Mesa da Câmara dos Deputados retirou o som: “Vossa Excelência tem de falar português, que é a língua oficial do Brasil”. O Juruna respondeu: “Não é a minha língua”. Aí ele mostrou que estava ali para incomodar, que não iria fazer concessão. Fez o discurso dele na língua Xavante e o assessor dele distribuiu um texto com a tradução do discurso.
Por quê Juruna se espantava tanto com a cena política brasileira, levando-o a carregar um gravador para registrar e denunciar a mentira de autoridades? Como a cultura indígena aborda a mentira?
Quando Mário Juruna, a partir desses eventos públicos ao final dos anos 70, se dá por uma personalidade conhecida, portando um gravador, gravava falas de ministros e autoridades, desvelando depois essas mentiras gravadas. Cada vez que Juruna ligava o gravador dele era um escândalo.
A mentira que escandalizou o Juruna, escandaliza o pensamento originário nos mitos. Se olhar os mitos, a obra “Mitológicas” do Claude Levi-Strauss, demonstra que a ideia da mentira é condenada de uma maneira tão ampla que não tem lugar nas narrativas, foi banida. Nas narrativas míticas, nas histórias antigas, a escolha pela mentira é irreparável.
Quando Juruna se escandaliza com as mentiras, faz como as crianças que veem uma coisa pela primeira vez, que nunca entendeu, aponta e fala: “Olha isso!” Para Juruna, era algo totalmente sem sentido que pessoas nas quais acreditava, autoridades moralmente reconhecidas, se utilizassem da mentira de maneira tão descarada. É como a criança que diz: “O rei está nu”. Lembrando que, para o indígena, ficar nu é a verdade. O gravador do Juruna virou um ícone. E para alguns virou piada.
A mentira que escandalizou o Juruna, escandaliza o pensamento originário nos mitos. Se olhar os mitos, a obra “Mitológicas” do Claude Levi-Strauss, demonstra que a ideia da mentira é condenada de uma maneira tão ampla que não tem lugar nas narrativas, foi banida. Nas narrativas míticas, nas histórias antigas, a escolha pela mentira é irreparável.
Quando Juruna se escandaliza com as mentiras, faz como as crianças que veem uma coisa pela primeira vez, que nunca entendeu, aponta e fala: “Olha isso!” Para Juruna, era algo totalmente sem sentido que pessoas nas quais acreditava, autoridades moralmente reconhecidas, se utilizassem da mentira de maneira tão descarada. É como a criança que diz: “O rei está nu”. Lembrando que, para o indígena, ficar nu é a verdade. O gravador do Juruna virou um ícone. E para alguns virou piada.
Embora a mentira seja esperada no meio político, o comportamento do Juruna causa estranhamento e mote de piadas. O que Juruna ensinou à sociedade dos “brancos”?
Tom Jobim cunhou a frase: “O Brasil não é para principiantes”. É uma frase terrível, porque na verdade quer dizer que é dominado pela mentira. Vivemos experiências muito traumáticas recentemente na vida brasileira, em que o negacionismo ganhou expressão tão ampla que ficávamos diante de pessoas que diziam: Mas a terra é plana”.
Então em estado de negação absurda, a pessoa cai num abismo moral. Uma pessoa como Juruna era a inocência diante de um conjunto de forças políticas amoral, que fazem prevalecer a verdade que querem. Então travestem a mentira de verdade. Uma sociedade que convive com a mentira como se fosse verdade está em negação. E no caso do Juruna, nunca foi recebido como a voz indígena no Parlamento.
Houve tentativa de cassação do mandato de Juruna dentro do Parlamento, por ação direta do gabinete do presidente da República, que acusava Juruna de ter ofendido o então ministro Leitão de Abreu. Foi pretexto para o Congresso abrir uma consulta para a cassação do mandato de Juruna, que reagiu bravamente, mobilizou a opinião pública, os povos indígenas.
O grande chefe Raoni Metuktire se fez presente e convocou os povos do Xingu e fizeram pela primeira vez a ocupação do plenário em Brasília, onde denunciaram a trapaça em curso para cassar o mandato do único indígena parlamentar jamais eleito. Mário Juruna não era visto como uma ameaça real. Era visto como um empecilho, um tropeço, uma criança na sala ouvindo segredos de velhos corruptos.
Os velhos olhavam e pensavam: “Tira ele daí”. Então acho que Juruna era considerado inconveniente, até porque falava o que pensava com uma espontaneidade tão grande, que quando da eleição indireta no colégio eleitoral para a Presidência da República, o Paulo Maluf tentou comprá-lo, através de Calim Eid, que botou uma montanha de dinheiro na frente do Juruna, fez uma foto e disse que estava negociando o voto dele.
Juruna reagiu chamando a imprensa e devolvendo a montanha de dinheiro. Foi um escândalo moral na época, que foi abafado. Mas Juruna foi sendo cada vez mais objeto de piadas e chacotas, e foi perdendo o brilho, uma espécie de apagamento daquele vulto que representou no Congresso no início do mandato.
Então em estado de negação absurda, a pessoa cai num abismo moral. Uma pessoa como Juruna era a inocência diante de um conjunto de forças políticas amoral, que fazem prevalecer a verdade que querem. Então travestem a mentira de verdade. Uma sociedade que convive com a mentira como se fosse verdade está em negação. E no caso do Juruna, nunca foi recebido como a voz indígena no Parlamento.
Houve tentativa de cassação do mandato de Juruna dentro do Parlamento, por ação direta do gabinete do presidente da República, que acusava Juruna de ter ofendido o então ministro Leitão de Abreu. Foi pretexto para o Congresso abrir uma consulta para a cassação do mandato de Juruna, que reagiu bravamente, mobilizou a opinião pública, os povos indígenas.
O grande chefe Raoni Metuktire se fez presente e convocou os povos do Xingu e fizeram pela primeira vez a ocupação do plenário em Brasília, onde denunciaram a trapaça em curso para cassar o mandato do único indígena parlamentar jamais eleito. Mário Juruna não era visto como uma ameaça real. Era visto como um empecilho, um tropeço, uma criança na sala ouvindo segredos de velhos corruptos.
Os velhos olhavam e pensavam: “Tira ele daí”. Então acho que Juruna era considerado inconveniente, até porque falava o que pensava com uma espontaneidade tão grande, que quando da eleição indireta no colégio eleitoral para a Presidência da República, o Paulo Maluf tentou comprá-lo, através de Calim Eid, que botou uma montanha de dinheiro na frente do Juruna, fez uma foto e disse que estava negociando o voto dele.
Juruna reagiu chamando a imprensa e devolvendo a montanha de dinheiro. Foi um escândalo moral na época, que foi abafado. Mas Juruna foi sendo cada vez mais objeto de piadas e chacotas, e foi perdendo o brilho, uma espécie de apagamento daquele vulto que representou no Congresso no início do mandato.
Como a atuação de Mário Juruna influencia a sua atuação na Assembleia Nacional Constituinte e o movimento indígena que se consolida depois?
Juruna influencia passando aquela mensagem para mim e jovens indígenas que aparecem mobilizados em torno da Constituinte, dizendo: “Cuidado, a política é terreno escorregadio. Não jogue pelas regras deles”.
Quando chegamos no debate da Constituinte, toda a fúria contra indígenas se traduz na tentativa de não permitir que se inserisse um capítulo dos direitos indígenas. Foi por isso que tive de fazer aquela manifestação, pintando meu rosto de preto, com jenipapo. Por isso entendi que estava num lugar em que não podia fazer discurso, a regra do Parlamento.
Eu pensei: “Não vão me ouvir, assim como não ouviram Juruna. Tenho de fazer algo que surpreenda esse Congresso”. Quando comecei a pintar o meu rosto ficaram paralisados, não sabiam o que fazer comigo. Alguns gritaram: “O que esse sujeito está fazendo? Tira ele daí!”. Pensei: “Agora sou um totem diante deles”. Então me senti Juruna. E fiz breve discurso, porque estavam paralisados e não tinham como me impedir. E mais ainda, estavam loucos para entender o que eu estava falando.
Acho que as pessoas dão pouca atenção, até hoje, para o texto que falei, que foi objeto de análise pelo professor da Universidade Federal de Brasília, Pedro Mandagara, considerando que a estrutura da fala parece ter sido construída longamente para aquele lugar, aquela ocasião. Mas aquela fala saiu do meu coração, inspirada em todos que me antecederam nesta luta para ser ouvido, ser escutado.
E o efeito disso é que está cravado na Constituição de 1988, que os povos têm o direito de falar, inclusive em suas línguas maternas. Isso vai continuar sendo negado, vai continuar sendo disputado, porque essa disputa nunca para. Mas aprendi isso também com Juruna: mesmo quando se é esquecido, apagado, o seu gesto vai ressurgir em outros corpos.
Assim é com as mulheres indígenas, que assumem hoje um protagonismo que nenhum homem indígena alcançou, ocupando lugar de fala do próprio estado brasileiro, como presidente da Funai, a Joenia Wapichana, como outras mulheres se destacam em lugares que, há 30 anos, seria impensável imaginar que uma indígena pudesse falar e pudesse estar.
Quando chegamos no debate da Constituinte, toda a fúria contra indígenas se traduz na tentativa de não permitir que se inserisse um capítulo dos direitos indígenas. Foi por isso que tive de fazer aquela manifestação, pintando meu rosto de preto, com jenipapo. Por isso entendi que estava num lugar em que não podia fazer discurso, a regra do Parlamento.
Eu pensei: “Não vão me ouvir, assim como não ouviram Juruna. Tenho de fazer algo que surpreenda esse Congresso”. Quando comecei a pintar o meu rosto ficaram paralisados, não sabiam o que fazer comigo. Alguns gritaram: “O que esse sujeito está fazendo? Tira ele daí!”. Pensei: “Agora sou um totem diante deles”. Então me senti Juruna. E fiz breve discurso, porque estavam paralisados e não tinham como me impedir. E mais ainda, estavam loucos para entender o que eu estava falando.
Acho que as pessoas dão pouca atenção, até hoje, para o texto que falei, que foi objeto de análise pelo professor da Universidade Federal de Brasília, Pedro Mandagara, considerando que a estrutura da fala parece ter sido construída longamente para aquele lugar, aquela ocasião. Mas aquela fala saiu do meu coração, inspirada em todos que me antecederam nesta luta para ser ouvido, ser escutado.
E o efeito disso é que está cravado na Constituição de 1988, que os povos têm o direito de falar, inclusive em suas línguas maternas. Isso vai continuar sendo negado, vai continuar sendo disputado, porque essa disputa nunca para. Mas aprendi isso também com Juruna: mesmo quando se é esquecido, apagado, o seu gesto vai ressurgir em outros corpos.
Assim é com as mulheres indígenas, que assumem hoje um protagonismo que nenhum homem indígena alcançou, ocupando lugar de fala do próprio estado brasileiro, como presidente da Funai, a Joenia Wapichana, como outras mulheres se destacam em lugares que, há 30 anos, seria impensável imaginar que uma indígena pudesse falar e pudesse estar.
As conquistas indígenas da Constituição de 1988 convergiram para direitos e reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Essas conquistas estão consolidadas?
O que a Constituinte introduz radicalmente é um basta naquela conduta de empurrar os indígenas para fora de suas terras, ela coloca um limite, invoca a imagem daquele poema do Carlos Drummond de Andrade: “Stop, a vida que parou ou foi o automóvel?” Meu amigo Nego Bispo, um sábio mestre quilombola, faz a diferença entre convergências e confluências.
As confluências têm natureza sutil, porque a convergência supõe um conjunto de propósitos alinhados, enquanto as confluências têm uma certa dose de simultaneidade de propósitos. Aquilo não vai ficar o tempo todo, mas por um instante, é o que fica valendo. Assim como o texto da Constituição, por um instante ficou valendo, apesar de todas as novas tentativas do marco temporal, golpes legislativos, a tentativa constante de negar o direito aos povos indígenas em seus territórios, em seu modo de viver dentro de seu território. Porque o estado brasileiro até concebe que os indígenas possam ter um território, mas têm de viver lá dentro como brancos. E vamos continuar a lutar contra isso.
As confluências têm natureza sutil, porque a convergência supõe um conjunto de propósitos alinhados, enquanto as confluências têm uma certa dose de simultaneidade de propósitos. Aquilo não vai ficar o tempo todo, mas por um instante, é o que fica valendo. Assim como o texto da Constituição, por um instante ficou valendo, apesar de todas as novas tentativas do marco temporal, golpes legislativos, a tentativa constante de negar o direito aos povos indígenas em seus territórios, em seu modo de viver dentro de seu território. Porque o estado brasileiro até concebe que os indígenas possam ter um território, mas têm de viver lá dentro como brancos. E vamos continuar a lutar contra isso.
O que representa o território para a identidade indígena?
Nós podemos entender que o território é como o corpo, e o modo de estar lá dentro é o espírito. Se não houver o território, esse espírito vai estar sujeito a todo tipo de abuso, violência e negatividades, porque a sua alteridade não será realizada. Esse caminho que a cultura de um povo permite que ele se realize, sonhando, cantando, dançando, se expressando, vai ficar chapado de mensagens acusatórias, criticando o modo de viver indígena.
Tivemos um sujeito à frente do governo brasileiro que disse que os indígenas são preguiçosos, que ficam em seus territórios imensos e não fazem nada. Um discurso sugerindo que os indígenas tenham que sair de dentro da mata. Todo esse discurso arcaico, atrasado, sendo repetido por autoridades do governo no século 21 dá a impressão que estamos no século 17. Essas frases caberiam na boca de um colonizador do século 17, 18.
Tivemos um sujeito à frente do governo brasileiro que disse que os indígenas são preguiçosos, que ficam em seus territórios imensos e não fazem nada. Um discurso sugerindo que os indígenas tenham que sair de dentro da mata. Todo esse discurso arcaico, atrasado, sendo repetido por autoridades do governo no século 21 dá a impressão que estamos no século 17. Essas frases caberiam na boca de um colonizador do século 17, 18.
Durante a campanha presidencial, circulou um vídeo do ex-presidente Jair Bolsonaro, em que ele declara em entrevista ao jornal New York Times em 2016, que ele só não comeu carne de um indígena, em Surucucu, porque “ninguém quis ir com ele”. Como recebeu essa declaração?
Eu não recebi. Fiz o que um mestre do budismo, que não é da nossa cultura mas diz coisas importantes para mim, que você só recepciona o que quer. Eu não recebi isso.