Declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de que as potências ocidentais estariam incentivando a guerra na Ucrânia — nação invadida pela Rússia — provocaram fortes reações negativas por parte de Estados Unidos e União Europeia.
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Juruna: a voz do guerreiro gravada na históriaAilton Krenak: 'Eles perderam, nós ganhamos'Oposição pretende obstruir votações para forçar CPMI do 8 de janeiroPesquisa: para 31% dos brasileiros, principal problema do país é a economiaPesquisa: 40% desaprovam a forma de Lula se comportar como presidente"O Brasil é uma potência média. Não temos força militar nem econômica particularmente relevante. Então, precisamos de um mundo, na medida do possível, multipolar, em que haja mais de uma potência forte, para equilibrar", disse à reportagem uma fonte do Itamaraty, ao explicar a decisão do Brasil de não se alinhar a qualquer lado do conflito.
"Não interessa ao Brasil um mundo unipolar, em que o país fique à mercê do que os Estados Unidos mandem, nem de que ninguém mais mande. Não é uma questão contra os Estados Unidos. É uma questão sistêmica de evitar que só um país no mundo mande nas coisas", acrescentou.
Por outro lado, os especialistas criticam o tom das recentes falas de Lula, consideradas pouco diplomáticas. Parte deles, como o embaixador aposentado Rubens Barbosa, também questiona se o presidente deveria colocar tanta energia em um tema complexo e distante do Brasil, em vez de concentrar esforços em assuntos que o Brasil tem maior potencial de liderança, como a agenda ambiental e da segurança alimentar.
O estremecimento com as potências ocidentais, porém, é visto como "superável" pelos entrevistados. Uma visita de Lula ou do assessor especial do presidente, Celso Amorim, a Kiev, seria um gesto interessante nesse sentido, segundo essa avaliação. O líder brasileiro já foi oficialmente convidado pelo presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky.
Questionado pela BBC News Brasil, o Itamaraty disse que "o melhor momento para atender o convite está sendo avaliado".
As falas da discórdia
A forte reação das potências ocidentais veio depois de Lula afirmar, durante visita à China na semana passada, que Estados Unidos e União Europeia estariam incentivando a guerra ao enviar armas para a Ucrânia. Esses países, porém, argumentam que estão apoiando a defesa ucraniana contra a agressão da Rússia, que invadiu o país no início de 2022.
Um porta-voz do governo americano chegou a dizer na segunda-feira (17/04) que a posição brasileira “é profundamente problemática” e que o país estaria "papagueando (repetindo automaticamente) propaganda russa e chinesa" sobre a guerra.
Após as reações negativas, Celso Amorim afirmou que é "totalmente absurdo" dizer que o Brasil papagueia a posição russa, em entrevista ao canal Globo News nesta terça-feira (18/04).
Lula, porém, parece ter recalibrado o tom. Depois de encontrar em Brasília com o presidente da Romênia, Klaus Werner Iohannis, cujo país faz fronteira com a Ucrânia, voltou a criticar a invasão russa, sem afirmar que o governo ucraniano também teria responsabilidade no conflito, como fez em algumas falas nas últimas semanas.
"Ao mesmo tempo em que meu governo condena a violação da integridade territorial da Ucrânia, defendemos uma solução política negociada para o conflito", disse o presidente.
O presidente também voltou a defender a criação de "um grupo de países que tente sentar-se à mesa tanto com a Ucrânia como com a Rússia para encontrar a paz".
O cientista político Hussein Kalout, pesquisador em Harvard e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), não vê falas recentes de Lula "como um alinhamento automático à China e à Rússia".
"O Brasil não é um país que admite subordinação objetiva de interesses. Nem o Itamaraty admite isso, e nem o governo atual admite isso", disse à reportagem.
No entanto, Kalout considera que algumas declarações podem afetar a "credibilidade e a confiabilidade" das potências ocidentais no Brasil.
"Acho que talvez o Brasil deveria apresentar uma abordagem mais propositiva no sentido de conclamar os parceiros históricos e amigos do Brasil, como europeus e Estados Unidos, a trabalharem juntos pela paz, e não inferir ou aludir a quem está alimentando ou não o conflito", afirmou ainda.
O delicado equilíbrio brasileiro
A invasão russa à Ucrânia começou em 24 de fevereiro de 2022. Um dos argumentos usados pelo lado russo para tentar justificar o ataque seria impedir o que classifica de cerco à sua fronteira com a possível adesão da Ucrânia à Otan — aliança militar de 30 países liderada por potências ocidentais, que se expandiu pelo Leste Europeu, incluindo hoje 14 países do ex-bloco comunista.
Putin acusa ainda, sem provas, o governo ucraniano de genocídio contra ucranianos de origem étnica russa que vivem nas regiões separatistas de Donetsk e Luhansk. Ele alega que a invasão tenta "desmilitarizar e desnazificar" a Ucrânia.
Por outro lado, a Ucrânia e outros observadores veem na guerra uma tentativa da Rússia restabelecer a zona de controle e influência da antiga União Soviética, algo visto como desrespeito à soberania da Ucrânia, que deveria ter o direito de decidir seu destino e suas alianças.
Passado mais de um ano do conflito, o governo russo é acusado de ter cometido crimes de guerra, incluindo a deportação ilegal de crianças da Ucrânia para a Rússia. Por causa disso, o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu em 17 de março um mandado de prisão contra o presidente da Rússia, Vladimir Putin.
Em meio a esse delicado conflito, que divide grandes potências, o Itamaraty tem mantido equilíbrio em suas posições na ONU. O Brasil apoiou, por exemplo, duas resoluções das Nações Unidas contra a ação russa. A mais recente, de fevereiro, condenava a invasão territorial ucraniana e exigia a imediata retirada das tropas russas.
Essa resolução obteve 141 votos a favor, sete contra e 32 abstenções entre os 193 Estados-membros da ONU. Os países que votaram contra o texto foram Rússia, Belarus, Síria, Coreia do Norte, Eritreia, Mali e Nicarágua. Entre os que se abstiveram estavam China, Índia, Moçambique, Angola e Cuba.
Segundo os especialistas ouvidos, a posição brasileira foi coerente com sua tradição de seguir os princípios previstos na Carta da ONU, de respeito à integridade territorial dos países, de promoção à paz e de evitar agressões entre as nações. O documento, assinado pelo Brasil em 1945, é o tratado que estabeleceu as Nações Unidas.
Por outro lado, o respeito à Carta também explica a decisão do Brasil de não apoiar as sanções impostas pelas potências ocidentais à Rússia. Segundo a interpretação do Itamaraty sobre esse documento, sanções internacionais só são legais se aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU.
Países desenvolvidos, porém, discordam dessa interpretação e lembram que não seria possível aprovar sanções no Conselho de Segurança contra a Rússia porque o país é membro permanente e tem poder de veto.
"Ao Brasil interessa que sanções sejam limitadas ao mecanismo de segurança coletiva porque não tem capacidade de aplicar sanções unilaterais e teme ser alvo desse tipo de medida. Já os países poderosos não temem ser alvos e são capazes de aplicar sanções dolorosas aos demais", nota um diplomata ouvido pela reportagem.
'Falas de Lula destoam da posição oficial'
Para o diplomata aposentado Rubens Barbosa, ex-embaixador em Londres e Washington, "a posição de equidistância (no conflito) é a única possível para o Brasil".
"Levando em conta que o Brasil é um país ocidental, com relação muito estreita com os Estados Unidos, mas que hoje tem grande interesse na Ásia. Levando em conta também a dependência que nós temos de importação de fertilizantes da Rússia, a exportação de produtos agrícolas para a China", ressaltou.
Na sua visão, o problema de algumas falas de Lula é que elas estão destoando da neutralidade oficial brasileira.
"Quer dizer, você tem uma posição do Itamaraty, que define a posição do governo brasileiro na votação da ONU condenando a Rússia por causa da invasão, e agora você tem umas frases do presidente que estão sendo interpretadas como uma mudança de posição, como fazia (o ex-presidente Jair) Bolsonaro", comparou.
"Ele (Bolsonaro) falava uma coisa e o Itamaraty fazia outra. No meio ambiente, na (relação com a) Rússia, na (relação com) China. Então o Lula está repetindo o Bolsonaro", disse ainda.
'Estremecimento é superável'
Apesar de considerar as falas negativas, Rubens Barbosa não acredita que as declarações feitas até o momento sejam suficientes para causar algum dano relevante na relação com Estados Unidos e União Europeia, tendo em vista a boa relação histórica do Brasil com esses países e o fato de a posição oficial do país na ONU não ter mudado.
Outro fator que pode contribuir para superar o episódio é o desejo das potências ocidentais de reforçar essa boa relação histórica com o Brasil, após algumas tensões durante o governo de Jair Bolsonaro, nota Hussein Kalout.
Na sua visão, Lula tem a seu favor o fato de ser visto internacionalmente como um democrata, em contraste com seu antecessor.
"Esse momento de aparente estremecimento é absolutamente superável porque há uma convergência maior de agenda e complementaridade mais aguda de interesses entre Lula e Europa e o governo (americano de Joe) Biden", disse.