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'Não vamos dizer ao Brasil com quem se associar', diz embaixadora dos EUA na ONU sobre reaproximação com China

Na visita ao Brasil da embaixadora dos EUA na ONU, as crises na Nicarágua, Venezuela, Colômbia e Haiti estarão na pauta do encontro.


02/05/2023 10:22 - atualizado 02/05/2023 11:25


Xi Jinping e Lula em Pequim
Xi Jinping e Lula se encontraram em abril, em Pequim (foto: RICARDO STUCKERT)

A embaixadora dos Estados Unidos na Organização das Nações Unidas (ONU), Linda Thomas-Greenfield, fará a primeira visita de uma autoridade americana de nível ministerial a Brasília após o mal-estar provocado nas relações entre EUA e Brasil por declarações feitas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na China.

Na ocasião, Lula disse que os EUA deveriam “parar de incentivar a Guerra na Ucrânia”, questionou “quem decidiu que era o dólar a moeda (para transações internacionais) depois que desapareceu o ouro como padrão?”, e depois de visitar a gigante de telecomunicações chinesa Huawei, empresa sob sanção dos EUA, disse que o gesto era “demonstração de que nós queremos dizer ao mundo que não temos preconceito na nossa relação como os chineses e que ninguém vai proibir que o Brasil aprimore sua relação com a China".

O pacote de declarações foi visto como um duro ataque aos americanos, que tinham recebido Lula para encontro bilateral na Casa Branca em fevereiro.

Thomas-Greenfield desembarca no país na manhã desta terça, 2/5, com uma série de recados na bagagem. “Não vamos dizer ao Brasil com quem se associar para suas prioridades econômicas”, afirmou Thomas-Greenfield em entrevista exclusiva à BBC News Brasil por vídeo, nesta segunda, 1/5.

Ao retornar de Pequim, Lula afirmou que os acordos comerciais firmados na China atingiam a cifra de R$ 50 bilhões.

Em comparação, ao voltar de Washington, Lula trouxe apenas um compromisso de US$ 50 milhões para o Fundo Amazônia, recurso considerado exíguo pela gestão brasileira.

Há duas semanas, o governo de Joe Biden anunciou que o aporte ao Fundo Amazônia deverá chegar a US$ 500 milhões em 5 anos, mas a doação ainda depende de aprovação do Congresso.

Confrontada com a aparente dificuldade dos EUA de mandarem dinheiro à América Latina, enquanto cresce na região a presença chinesa, Thomas-Greenfield afirmou que os americanos não fazem “anúncios frívolos” ao Brasil, e que seus investimentos no país já geraram 700 mil empregos. Disse ainda que Biden trabalhará com o Congresso para cumprir a promessa que fez para a Amazônia.

Já sobre a Guerra da Ucrânia, o tom da diplomata foi mais duro. Ela admitiu que os EUA ficaram “desapontados” com as declarações de Lula de que os EUA promoviam o conflito, de que a Ucrânia também é responsável pela guerra e de que o país teria eventualmente que ceder a Crimeia para a Rússia para terminar a guerra.

Embora o Brasil tenha repetidas vezes condenado na ONU a invasão russa e a anexação de territórios ucranianos, as falas de Lula, seguidas da visita a Brasília do chanceler russo Sergey Lavrov, recebido por uma hora e meia pelo presidente brasileiro, levaram o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, John Kirby, a dizer que o Brasil “papagueava” propaganda russa e chinesa no assunto.

Questionada se os americanos perderam a confiança no governo brasileiro sobre o assunto, Thomas-Greenfield afirma que “se o Brasil leva a sério a busca pela paz, precisa se envolver com a Ucrânia”.

A afirmação da diplomata é uma crítica ao fato de que, embora Lula tenha recebido Lavrov, e seu assessor internacional Celso Amorim tenha visitado o líder russo Vladimir Putin em Moscou, o contato com a Ucrânia se limitou a uma vídeochamada de Lula com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky.

Há dez dias, enquanto visitava Portugal e colhia a repercussão negativa de suas falas entre europeus, Lula decidiu que Amorim irá também visitar a Ucrânia e se encontrará com Zelensky, em data ainda não definida.

Perguntada se via no Brasil condições de mediar o conflito, Thomas-Greenfield desconversou: “Vários países apresentaram propostas de paz e saudamos qualquer esforço”.

A embaixadora americana terá encontros com o chanceler brasileiro Mauro Vieira e o assessor da presidência em relações exteriores Celso Amorim. Thomas-Greenfield também tinha a expectativa de se encontrar com Lula, o que não havia sido confirmado até o fim da tarde desta segunda (1/5).


A embaixadora dos EUA na ONU, Linda Thomas-Greenfield
A embaixadora dos EUA na ONU, Linda Thomas-Greenfield, visita o Brasil no começo de maio (foto: Divulgação)

Em Brasília, Thomas-Greenfield ainda deve tratar das crises na Nicarágua, Venezuela e Colômbia, da possibilidade de que o Brasil componha uma força multinacional ao Haiti (que os EUA incentivam e os brasileiros resistem) e do avanço no acordo bilateral entre Brasil e EUA para combate ao racismo, o Japer, que levará a diplomata também a Salvador.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Thomas-Greenfield à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza:

BBC News Brasil - O Brasil já votou contra a anexação territorial de partes da Ucrânia pela Rússia na ONU, mas em recente visita à China, o presidente Lula disse que os EUA deveriam “parar de incentivar a guerra”, acusou mais uma vez os ucranianos de também serem responsáveis pelo conflito e dias depois recebeu o chanceler russo Sergey Lavrov, que disse ao lado do chanceler brasileiro que Brasil e Rússia compartilham perspectivas sobre a guerra. Em resposta, John Kirby acusou Lula de papaguear a propaganda russa e chinesa sobre o assunto. Os EUA perderam a confiança no Brasil no tema?

Linda Thomas-Greenfield - Somos um parceiro de longa data do Brasil e nos envolvemos com o Brasil em um grande número de questões. E como você notou, o Brasil votou para condenar o ataque da Rússia à Ucrânia, a anexação do território ucraniano pela Rússia, e, recentemente, votaram que quaisquer decisões relacionadas a isso devem estar estar embasadas na carta de princípios da ONU. Portanto, esperamos que o Brasil continue a apoiar esses esforços.

E direi que ficamos desapontados com os comentários e as declarações que foram feitas durante a viagem (de Lula à China). Mas acho que, à medida que continuamos nossas discussões com o Brasil, incentivamos que eles também se envolvam com a Ucrânia.

O presidente Biden deixou claro que nada sobre a Ucrânia (deve ser decidido) sem a Ucrânia. Então, se o Brasil leva a sério a busca pela paz, precisa se envolver com a Ucrânia, além de apoiar a resolução da ONU que não reconhece a anexação do território ucraniano pela Rússia. Espero ter mais discussões in loco com autoridades brasileiras enquanto eu estiver lá para falar sobre a Ucrânia, mas há outras questões que também discutiremos, como a situação na Venezuela, a situação no Haiti, a Colômbia.

E olharemos para as áreas onde temos valores fortes e duradouros. Somos as duas maiores democracias deste continente, nós temos isso em comum, e acho que essa semelhança definirá como nosso relacionamento avançará.

BBC News Brasil - Considerando as declarações recentes, os EUA veem o Brasil em posição para mediar o fim da guerra da Ucrânia?

Thomas-Greenfield - Vários países apresentaram propostas de paz e saudamos qualquer esforço para encontrar uma solução pacífica para esta situação desde que embasada na carta da ONU, que reconheça a integridade territorial da Ucrânia e que traga paz ao povo da Ucrânia.


Parede de estádio de futebol na Ucrânia parcialmente destruído por ataque russo
Parede de estádio de futebol na Ucrânia parcialmente destruído por ataque russo (foto: Getty Images)

BBC News Brasil - Na semana passada, a BBC Brasil revelou que os EUA pediram a extradição de um homem acusado de ser espião ilegal russo e de ter atuado nos EUA sob identidade brasileira. É o terceiro caso do tipo em poucos meses. Os EUA temem que o Brasil tenha se convertido em um berçário de espiões russos?

Thomas-Greenfield - O governo brasileiro indiciou esta pessoa pelos atos que ela cometeu (no Brasil) e ela foi também acusada nos Estados Unidos. Não posso comentar mais sobre isso. Mas, para responder à sua pergunta, esperamos continuar a cooperar com o Brasil nesta questão.

BBC News Brasil - Há duas semanas, pouco depois da visita de Lula à China, os EUA anunciaram uma promessa de US$ 500 milhões para o fundo Amazônia. Mas a chance de o recurso ser aprovado no Congresso é baixa. Como o governo Biden pretende viabilizar essa doação?

Thomas-Greenfield - O presidente assumiu o compromisso (para o Fundo Amazônia) e também se comprometeu a quadruplicar nosso financiamento climático internacional, para US$ 11 bilhões. E ele trabalhará com membros do Congresso para honrar esse compromisso.

BBC News Brasil - Biden também trabalhou para levar Lula ao encontro do G7 em Hiroshima. Deve haver algum outro anúncio durante o evento no Japão?

Thomas-Greenfield - Já fizemos uma promessa de 500 milhões e estamos empenhados em apoiar os compromissos climáticos do Brasil, comprometidos em honrar nossas próprias metas climáticas e apoiar todos os esforços para lidar com o que o secretário-geral (da ONU, António Guterres) chamou de ameaça existencial ao nosso futuro. Portanto, continuaremos a trabalhar nesse esforço. Não posso dar uma prévia de quais anúncios podemos fazer lá (em Hiroshima), mas nossos anúncios anteriores mostram como nossos compromissos são fortes.

BBC News Brasil - Eu lhe pergunto isso porque enquanto os EUA parecem estar tendo certa dificuldade para enviar dinheiro para a América Latina, vemos a China cada vez mais aumentando sua presença na região. Na última visita de Lula a Pequim, China e Brasil concordaram em começar a fazer negócios sem o dólar, usando o RMB (yuan). O governo Biden está preocupado com isso?

Thomas-Greenfield - Nossa parceria é nossa maior preocupação, e nossa parceria é forte. Temos grandes investimentos no Brasil. E nossos investimentos mostram resultados concretos para o povo brasileiro, já geraram mais de 700 mil empregos no Brasil.

Eles não são apenas anúncios frívolos, mas são anúncios concretos que impactam a vida das pessoas. Não vamos dizer ao Brasil com quem deve se associar para suas prioridades econômicas. Mas o que vamos falar é do nosso compromisso, das nossas relações, dos nossos investimentos neste país, que foram extraordinariamente fortes e tiveram um impacto incrível na vida das pessoas comuns.


Biden e Lula em reunião com seus ministros na Casa Branca
Biden e Lula em reunião com seus ministros na Casa Branca, em fevereiro (foto: Ricardo Stuckert)

BBC News Brasil - O Brasil é atualmente membro temporário do Conselho de Segurança da ONU e tem uma antiga demanda por um assento permanente no colegiado. Os EUA apoiarão oficialmente a inclusão do Brasil no Conselho? Como isso seria feito?

Thomas-Greenfield - O presidente Biden já disse que apoiamos a expansão do Conselho de Segurança para membros permanentes e não permanentes. Não cabe aos EUA selecionar esses membros.

O que estamos fazendo é ter uma discussão muito aberta e ampla em todas as regiões do mundo para falar sobre como podemos avançar de maneira concreta para alcançar a reforma do Conselho de Segurança. Portanto, apoiamos a (aspiração da) América Latina, apoiamos a África para (contar com) novos membros no Conselho de Segurança, mas faremos parte do que será um processo democrático para selecionar quaisquer novos membros.

E o que compreendemos ao fazer esta escuta ao longo dos últimos meses é que temos que ser flexíveis para chegar a um processo crível, que seja aceito por todos os que manifestaram o desejo de se tornar um membro permanente.

BBC News Brasil - Ainda no ano passado, os EUA demonstraram interesse de que o Brasil mandasse novamente uma força militar ao Haiti, que vive uma situação de colapso do Estado e de violência generalizada. Isso é algo que os EUA ainda gostariam que acontecesse? Por que?

Thomas-Greenfield - Temos no Conselho de Segurança trabalhado para apoiar uma força multinacional, que não seja da ONU, para ir ao terreno e apoiar a situação de segurança no Haiti. E damos as boas-vindas à participação de qualquer país nesse processo.

Estamos todos muito preocupados com a situação, especialmente porque as gangues continuam a aterrorizar os cidadãos comuns, bloqueando a assistência humanitária, obrigando os hospitais a fechar. Então a situação de segurança é muito preocupante, é muito ameaçadora.

E gostaríamos da participação ativa do Brasil nessa força multinacional. Esta será, obviamente, uma das questões que discutirei quando estiver em Brasília.

Todos nós queremos que isso (envio da força multinacional) aconteça o mais rapidamente possível. O Conselho de Segurança ainda está discutindo como isso vai avançar e que tipo de resolução precisaremos para poder colocar isso em prática. Mas estamos trabalhando em um cronograma muito, muito rápido.

BBC News Brasil - Pensando em América Latina, a senhora citou a situação da Venezuela, por exemplo. Que papel os EUA esperam que o governo Lula tenha em crises como Venezuela e Nicarágua?

Thomas-Greenfield - O Brasil é um líder na região e a voz do seu presidente, a liderança do país, é fundamental para trabalhar com os países da região para encontrar soluções.

Vou estar no modo de escuta quando estiver em Brasília. Quero ouvir das autoridades brasileiras o que pensam sobre como devemos lidar com a situação na Venezuela daqui para frente.

Quero ouvir como devemos olhar para a situação na Colômbia e na Nicarágua. A voz do Brasil é importante para nos ajudar a encontrar soluções para todas essas situações.

E eu quero agradecer ao Brasil por ser um anfitrião tão hospitaleiro para tantos refugiados e migrantes. Há mais de 250 mil venezuelanos lá, há afegãos lá. Tem gente de toda parte do mundo que foi bem recebida pelo povo brasileiro, e isso realmente merece ser elogiado.

BBC News Brasil - A senhora irá a Salvador para reativar o único acordo bilateral de combate ao racismo que os EUA possuem (assinado nos anos 2000 mas nunca posto em prática). Como esse acordo deve funcionar e que semelhanças vê entre o racismo no Brasil e nos EUA?

Thomas-Greenfield - Esta é uma verdadeira parceria e estou muito orgulhosa de ser a primeira autoridade americana com nível ministerial a ir a Salvador em 15 anos. É um sinal que realmente ressalta os compromissos de nossos países com a equidade racial e a inclusão. E acho que o governo Lula fez disso uma prioridade fundamental, assim como o presidente Biden. E eles falaram sobre isso durante a visita (em Washington, em fevereiro).

Revitalizaremos o acordo realmente procurando maneiras de promover a equidade e a justiça racial e proteger as comunidades raciais e indígenas marginalizadas no Brasil e nos Estados Unidos. Temos muitas coisas em comum: o fato de os EUA e o Brasil terem as maiores populações afro fora da África é definitivamente algo que merece a atenção de nossos dois presidentes.


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