O Supremo Tribunal Federal (STF) pode julgar nesta semana quatro ações com impacto sobre plataformas digitais, como redes sociais e aplicativos de troca de mensagens.
O julgamento foi marcado para quarta-feira (17/05) após o PL das Fake News — um projeto de lei que cria uma nova regulamentação para o setor — empacar na Câmara dos Deputados.
O tema ganhou urgência devido à percepção de parte da sociedade de que é preciso adotar regras mais rígidas sobre esse setor para evitar a circulação de conteúdo criminoso nas redes, como mensagens que incentivem assassinatos em escolas ou ataques contra o sistema democrático.
Mas a questão divide a opinião pública — também há temor de que novas regras adotadas pelo Congresso ou pelo Supremo acabem limitando a liberdade de expressão.
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As ações em análise no STF têm amplitude menor do que o PL das Fake News, que prevê, inclusive, regras de remuneração de conteúdo jornalístico pelas plataformas digitais. Ainda assim, o julgamento pode ter impacto relevante no setor.
Duas ações abordam a possibilidade de aumentar a responsabilidade das empresas sobre moderação de conteúdo, o que pode significar mais remoção de postagens e contas, caso tenham teor criminoso. As outras duas tratam da possibilidade de suspensão de aplicativos de mensagens como WhatsApp e Telegram em todo o país devido ao não cumprimento de decisão judicial.
Embora a análise das quatro esteja prevista para esta quarta-feira, existe a possibilidade de adiamento caso outro processo se alongue. No mesmo dia, o STF retoma uma ação penal que pode resultar na condenação e prisão do ex-presidente Fernando Collor de Mello. O julgamento começou na semana passada e foi suspenso ainda em seu início.
Entenda a seguir em quatro pontos o que está em jogo para as plataformas digitais no STF.
1. O que será julgado sobre moderação de conteúdo?
As quatro ações questionam a constitucionalidade de trechos do Marco Civil da Internet — ou seja, se trechos dessa lei estariam em desacordo com princípios da Constituição e, por isso, devem ter sua aplicação alterada pelo STF.
Duas delas discutem a validade do artigo 19, que estabelece que as plataformas digitais não podem ser responsabilizadas por conteúdos compartilhados pelos usuários, com exceção dos casos de "pornografia de vingança" (divulgação de imagens de nudez sem autorização da pessoa fotografada/filmada).
Ou seja, o artigo 19 significa que as empresas, na maioria dos casos, só são obrigadas a apagar postagens após ordem judicial.
As duas ações em julgamento tratam de casos concretos, mas a decisão terá repercussão geral, ou seja, fixará parâmetros gerais para o funcionamento das plataformas.
Num dos casos julgados, uma professora processou o Google porque a empresa se recusou a apagar uma comunidade contra ela criada por alunos no Orkut, rede social que já não existe mais. A professora chegou a notificar extrajudicialmente a plataforma solicitando a exclusão da página antes de ingressar na Justiça, mas não foi atendida.
No outro caso em análise, uma mulher processou o Facebook (rede social do grupo Meta) por se recusar a apagar um perfil falso criado com seu nome para divulgar conteúdo ofensivo.
As duas empresas argumentaram que não poderiam apagar conteúdos sem decisão judicial, sob risco de ferir a liberdade de expressão.
"Ser obrigação dos provedores de aplicações na internet as tarefas de analisar e excluir conteúdo gerado por terceiros, sem prévia análise pela autoridade judiciária competente, acaba por impor que empresas privadas — como o Facebook Brasil e tantas outras — passem a controlar, censurar e restringir a comunicação de milhares de pessoas, em flagrante contrariedade àquilo estabelecido pela Constituição Federal e pelo Marco Civil da Internet", argumentou o Facebook na ação.
Em argumentação semelhante, a Google sustenta que não tem obrigação de indenizar a professora por não ter removido a comunidade no Orkut antes de uma determinação judicial:
"Não sendo a Google possuidora do poder jurisdicional do Estado e não havendo qualquer conteúdo manifestamente ilícito no perfil objeto da lide, não se poderia esperar outra atitude sua do que aguardar o posicionamento do Poder Judiciário", disse a empresa.
A professora que processou a rede social, por sua vez, argumentou ao STF que "admitir as razões da Recorrente (Google) seria correr o risco de se fazer da internet uma terra sem lei, onde anonimamente, invocando a liberdade de expressão e o direito de comunicação, praticar-se-á todo tipo de ato e crime sem vigilância, consequência ou punição alguma".
2. O que pode ser decidido sobre moderação de conteúdo?
Alguns ministros do STF já defenderam publicamente a necessidade de maior regulação do meio digital, como Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes.
Juristas especialistas em direito digital ouvidos pela reportagem acreditam que o STF vai ampliar a possibilidade de responsabilização das empresas em caso de conteúdos criminosos compartilhados em suas plataformas.
Se isso ocorrer, a expectativa é que a Corte estabeleça uma nova interpretação do artigo 19 do Marco Civil da Internet "conforme a Constituição" — ou seja, uma nova aplicação da lei que estaria mais adequada à conciliação de preceitos constitucionais como a inviolabilidade da honra e da imagem dos indivíduos e os direitos à liberdade de expressão e de livre comunicação.
Embora concordem que esse parece o caminho mais provável, os juristas ouvidos discordam se ele seria o mais correto.
Para o advogado Francisco Cruz, diretor do InternetLab, o tema deveria ser decidido no Congresso Nacional, com amplo debate e participação da sociedade. Na sua visão, o atraso da votação do PL das Fake News e os apelos de parte da sociedade por uma regulação urgente das plataformas não deveria justificar uma atuação do STF.
"Quem deve se mover por clamor social é o Congresso. Quanto mais a gente transfere para o Supremo, essa responsabilidade, mais a gente vai estar colocando água no moinho da fragilização do Supremo e da sua legitimidade", acredita.
Cruz nota que o Marco Civil da Internet determina que as empresas armazenem informações sobre os perfis que atuam em suas plataformas, permitindo que autores de discursos criminosos sejam identificados e punidos após investigações. Por isso, na sua visão, a atual aplicação do artigo 19 é compatível com os direitos à imagem e à honra e não deveria ser considerado inconstitucional.
Já a advogada Patrícia Peck, membro titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD), não considera que o STF estaria usurpando uma competência do Congresso, caso mude a aplicação atual do artigo 19.
Como o meio digital mudou muito desde que o Marco Civil foi aprovado, em 2014, ela diz que é necessária uma atualização rápida da lei. Nesse sentido, Peck argumenta que a decisão do Supremo é um caminho válido enquanto não é aprovada uma nova legislação no Parlamento.
"É claro que a atualização de lei acontece de forma legislativa. No entanto, enquanto a gente não muda a lei, nós também temos previsão de que o Judiciário deve preencher as lacunas (da legislação). A tecnologia e a relação da sociedade com o uso da tecnologia avançou muito rápido. Já está muito diferente do que era dez anos atrás", argumentou
Outra discussão é até onde o STF poderia ir na "regulamentação" do setor. Para Francisco Cruz, do InternetLab, o Supremo vai criar uma "zona cinzenta" caso estabeleça novas regras para o setor, já que a Corte não tem poder para criar um órgão de fiscalização.
Já Ricardo Campos, professor na Universidade Goethe, em Frankfurt, e diretor do LGPD (Legal Grounds for Privacy Design), instituto voltado à proteção de dados, defende que o STF estabeleça novas regras de funcionamento para as plataformas.
Ele considera que o artigo 19 do Marco Civil da Internet cria uma espécie de "blindagem" das plataformas sociais, já que acionar à Justiça não é um procedimento simples para a maioria da população.
Segundo Campos, a Corte pode "introduzir o que se chama no direito constitucional de obrigações de organização e procedimento", determinando, por exemplo, a criação de canais para receber as solicitações dos usuários.
"O Supremo introduziria a necessidade dos serviços digitais receberem denúncias diretamente do usuário e estabelecerem procedimentos dentro da organização para que a própria plataforma responda em tempo hábil a essas queixas privadas, não mais (o usuário) precisando ir, então, ao Judiciário", exemplificou.
"E, além disso, (a Corte pode) criar uma obrigação, por exemplo, de relatórios de transparência (sobre as denúncias recebidas e as providências tomadas)", acrescentou.
Campos reconhece que o STF não poderia criar um órgão para fiscalizar a aplicação dessas novas regras, mas acredita que uma decisão da Corte nesse tema daria novo impulso ao Congresso para aprovar a medida.
Enquanto isso, avalia, o descumprimento de eventual decisão do Supremo para as plataformas criarem novos procedimentos poderia levar a processos de responsabilização civil contra as empresas no Judiciário, com aplicação de multas, por exemplo.
3. O que será julgado sobre aplicativos de mensagens?
As outras duas ações foram movidas por partidos políticos (Cidadania e Republicanos) após juízes determinarem em 2015 e 2016 a suspensão do funcionamento do WhatsApp em todo o país porque a empresa não cumpriu decisão judicial para quebra de sigilo de conversas de usuários investigados criminalmente.
Os partidos que apresentaram as ações pedem que o STF proíba esse tipo de decisão, sob o argumento de que a suspensão desses aplicativos é desproporcional e viola o direito de livre comunicação de todos os cidadãos, previsto no artigo 5º da Constituição Federal.
O WhatsApp sustenta que é tecnicamente impossível disponibilizar acesso às mensagens trocadas no aplicativo porque as conversas são protegidas por criptografia de ponta-a-ponta. Isso significa que, em conversas privadas, as mensagens são transmitidas codificadas e apenas o emissor e o receptor da mensagem têm chaves próprias, geradas pelo aplicativo nos seus celulares, capazes de decodificar esse conteúdo.
Nesse sistema, o WhatsApp alega que a própria empresa é incapaz de acessar o conteúdo. E argumentou ainda ao STF que criar algum mecanismo que permita à empresa quebrar a criptografia em casos específicos traria risco para a segurança da comunicação de todos os usuários.
"Na segurança digital, os dados ou são seguros de todo mundo ou seguros de ninguém. Qualquer ferramenta que nos permitisse ter acesso às mensagens das pessoas poderia ser voltada contra os nossos usuários por partes hostis, como criminosos e hackers", disse um dos fundadores do WhatsApp, Brian Acton, ao participar de uma audiência pública sobre o tema no Supremo, em 2017.
"A privacidade e a segurança são partes essenciais do serviço oferecido pelo WhatsApp. Os médicos usam o WhatsApp para compartilhar informação de saúde confidencial com seus pacientes, os tribunais se comunicam com juízes, as empresas usam o aplicativo para falar com seus clientes e compartilhar informações sensíveis e os cidadãos usam para relatar crimes", disse ainda Acton, ao defender a importância da criptografia.
A Polícia Federal e o Ministério Público Federal, por sua vez, ressaltaram que aplicativos de mensagens são usados não só para comunicações legítimas entre cidadãos, mas para crimes diversos como "tráfico de drogas, de armas e de pessoas, troca de pornografia infantil, preparação de sequestro, de homicídios e de atentados terroristas, dentre outros".
Embora os órgãos de investigação consigam acessar mensagens trocadas em aplicativos como o WhatsApp quando há apreensão de aparelho celular de investigados ou acesso a mensagens armazenadas em sistema de nuvem (iCloud ou Google Drive, por exemplo), os investigadores gostariam de poder acessar essas mensagens mesmo sem a apreensão do aparelho ou realizar um monitoramento em tempo real, como é feito em caso de interceptação telefônica autorizada judicialmente.
Os órgãos de investigação também argumentaram que deve ser obrigação da empresa viabilizar tecnicamente o acesso a essas mensagens e defenderam a legitimidade da suspensão do serviço em algumas situações.
Segundo a PF, a suspensão do serviço não fere o direito à livre comunicação "pois nenhum direito individual é absoluto, devendo sempre ser interpretado dentro do princípio da razoabilidade, de forma a garantir o reconhecimento da supremacia do interesse público sobre o particular, dotando as autoridades encarregadas da persecução criminal de meios necessários para dar cabal cumprimento aos seus deveres no interesse da sociedade".
4. O que pode ser decidido sobre aplicativos de mensagens?
As duas ações começaram a ser julgadas em maio de 2020, mas a análise foi interrompida por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.
Por enquanto, votaram apenas os ministros Rosa Weber e Edson Fachin, relatores das ações. Ambos decidiram que serviços de mensagens como o WhatsApp não podem ser suspensos por descumprimento de decisão judicial.
A única hipótese que poderia levar à suspensão, ressaltaram os ministros, seria por descumprimento das regras de proteção de dados dos usuários, conforme está previsto no artigo 12 do Marco Civil da Internet. Fachin destacou ainda que cabe à Autoridade Nacional de Proteção de Dados decidir sobre eventual interrupção do serviço.
"Em síntese, é inconstitucional proibir as pessoas de utilizarem a criptografia ponta-a-ponta, pois uma ordem como essa impacta desproporcionalmente as pessoas mais vulneráveis", disse Fachin em seu voto, ao defender a criptografia como forma legítima de proteção da privacidade dos indivíduos.
O ministro ressaltou, porém, “que o reconhecimento de um direito constitucional à criptografia forte não diminui nem isenta as empresas que produzem os aplicativos de se conformarem com a legislação brasileira, nem a descumprirem as ordens judiciais que, na medida da estrita proporcionalidade, exijam a entrega de dados que não dependam da quebra de criptografia”.
"Nada do que aqui se assentou exime as empresas de adotarem medidas que visem reduzir a prática de ilícitos, especialmente os que ocorrem por meio de seus canais de comunicação. A criptografia não autoriza o desvirtuamento deliberado de campanhas eleitorais, a disseminação de discurso de ódio e o envio indiscriminado de materiais ofensivos", acrescentou.
As ações em julgamento discutem o não cumprimento de decisões judiciais para acesso do conteúdo criptografado. No entanto, caso a maioria dos ministros acompanhe a posição de Weber e Fachin, a decisão da Corte tem potencial de impedir a suspensão de serviços de mensagens também no caso de outras decisões da Justiça, avalia o advogado Christian Perrone, chefe das áreas de Direito & Tecnologia e GovTech no Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio).
Isso poderia impactar, por exemplo, decisões semelhantes à tomada por Alexandre de Moraes na semana passada contra o Telegram. O ministro determinou que o serviço seria suspenso se a empresa não apagasse uma mensagem "distorcida" contra o PL das Fake News enviada a seus usuários.
O Telegram apagou a mensagem e enviou outra, de retratação, cumprindo determinação de Moraes.
"A conduta do Telegram configura, em tese, não só abuso de poder econômico às vésperas da votação do Projeto de Lei, por tentar impactar de maneira ilegal e imoral a opinião pública e o voto dos parlamentares — mas também flagrante induzimento e instigação à manutenção de diversas condutas criminosas praticadas pelas milícias digitais investigadas no INQ 4.874, com agravamento dos riscos à segurança dos parlamentares, dos membros do Supremo Tribunal Federal e do próprio Estado Democrático de Direito, cuja proteção é a causa da instauração do INQ. 4.781", justificou Moraes na decisão.
Para Christian Perrone, há outras formas de forçar uma empresa a cumprir decisões judiciais, como a imposição de multa.
"Imagina se, na hipótese de uma empresa se recusar a entregar seu livro caixa para uma investigação, a Justiça diz que vai fechar a empresa, não deixar que ela possa mais vender. Com essa analogia você consegue entender o quanto é uma medida extrema, de fato, você determinar a suspensão do Telegram ou do WhatsApp", defende Perrone.