Jornal Estado de Minas

JORNADAS DE JUNHO

Luiz Eduardo Soares sobre 2013: 'PT tem visão unilateral e simplificadora'

Uma década após a série de protestos que conferiram a junho de 2013 uma marca indelével na história recente do Brasil, ainda é difícil que pesquisadores e estudiosos do tema entrem em consenso sobre os desdobramentos do período para o cenário político e social do país, como bem mostram as reportagens publicadas nesta série especial. A tarefa de compreender os eventos daquele mês era ainda mais complicada no calor do momento. 





No dia 22 de junho de 2013, o Estado de Minas publicava uma entrevista com o antropólogo, cientista político e escritor Luiz Eduardo Soares, intitulada ‘Não vimos esse filme’. Nela, o pesquisador apresentava seu panorama sobre a revolta que tomava as ruas de todas as regiões do país. Agora, dez anos depois, ele voltou a falar com a reportagem para comentar as jornadas de junho com distanciamento histórico.

Na primeira entrevista, Soares faz um panorama sob a ótica da segurança pública, da participação dos jovens nas ruas e da crise da representação política que inflamou milhões pelo país. O pesquisador, contudo, destacou a dificuldade em pintar um retrato definitivo das manifestações que, àquele momento, ainda estavam em curso: “É necessário afirmar com humildade nossa ignorância ante um processo cuja natureza nos desafia intelectualmente”, afirmou. Em outro momento, disse: “O tempo é de imprevisibilidade e sustos, riscos e ameaças, mas também de beleza; o novo insinuando-se pelas frestas de nossa democracia, que sofre de esclerose precoce”.

Soares, que foi secretário nacional de Segurança Pública no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como presidente, recorda em nova entrevista ao Estado de Minas como foi tratar sobre as jornadas de junho em sua rotina acadêmica. Mais do que isso, o pesquisador revisitou as análises feitas na última década e traça a relação dos movimentos de 2013 com o período do PT no Planalto e a subsequente ascensão de nomes da direita na política brasileira.





Entrevista


Em entrevista publicada no EM em 22 de junho de 2013, o senhor manifestou a dificuldade em entender plenamente os movimentos da época, com bandeiras diversas e a participação de públicos muito distintos nas ruas. Como foi o desafio de tentar categorizar e entender o que se passava no Brasil naquele momento?

Luiz Eduardo Soares: No dia 1 de julho de 2013, publiquei um artigo no Los Angeles Review of Books, intitulado “Brasil, a terra treme no país das desigualdades e dos paradoxos”. Cito uma passagem que me parece interessante: “E o futuro? O movimento omnibus tem diante de si os mais variados cenários, e outros a inventar. Seu destino provavelmente dependerá de sua capacidade de diferenciar a crítica política da crítica à política, e de não confundir a rejeição ao atual sistema político-eleitoral, e partidário, com uma recusa da própria democracia, em qualquer formato. Essas distinções provocarão divisões internas profundas e inconciliáveis, que já estão aflorando. Toda essa magnífica energia fluirá para o ralo do ceticismo, abrindo mais um ciclo de apatia? A indignação encontrará traduções autoritárias e ultraconservadoras? Múltiplos afluentes seguirão cursos inauditos, nos surpreendendo com sua criatividade e mudando o país, no âmbito da democracia? As respostas não dependem só do movimento, mas também dos que não têm participado e das lideranças governamentais e parlamentares.” 

Ainda em 2013, anotei: O que está acontecendo nas ruas brasileiras? A entrada em cena de velhos e novos personagens, o ensaio geral de protagonismos originais com nova estética e a inspiração das redes virtuais, a emergência de coletivos que experimentam modelos de organização horizontal, interesses e vontades legítimas se expressando e denunciando o colapso da representação política, militantes de esquerda defendendo mudanças anti-capitalistas, mas também muita gente de direita saindo dos armários, bandeiras neoliberais desfilando, fascistas dispostos a combater a democracia, manipulações midiáticas e transnacionais, a CIA e seus congêneres. Em uma palavra: Babel. 


Como o senhor avalia a participação e composição dos protestos de junho de 2013 e qual sua relação com os eventos que o sucederam?


Continuo convicto, uma década depois: todos os lados se envolveram nas manifestações. Entretanto, o que predomina, hoje, nas esquerdas, mais especificamente no PT, é uma visão unilateral e simplificadora. Segundo essa leitura, as ruas teriam sido tomadas, em 2013, por fascistas e despolitizados, liderados por interesses internacionais, que visavam à derrocada do governo Dilma e à estigmatização do PT. Afirmar que 2013 revelaria suas verdadeiras intenções no golpe parlamentar do impeachment é mais ou menos como afirmar que a Santa Inquisição teria desvelado as intenções verdadeiras do cristianismo primitivo, ou que o stalinismo teria desnudado a verdadeira essência do marxismo. Essa visão teleológica da história é primária, mas serve muito bem para resolver problemas complicados e classificar os fenômenos, conjurando sua multidimensionalidade. 

Os governos do PT fizeram muito, apesar dos erros, mas justamente por causa do melhor que fizeram, a vitalidade social reanimada queria mais, desejava ser ouvida, ansiava por participação, se recusava a aceitar a baixa qualidade das políticas públicas. A militância não cabia mais nos moldes tradicionais. Já não era possível disfarçar: o vocabulário democrático-liberal envelhecera, até porque sua incompatibilidade com a experiência popular denunciava a hipocrisia que continha. 





Conforme registrei em meu livro "O Brasil e seu duplo" (Todavia, 2019), o futuro foi sendo definido pelo que se fez com aquela precipitação extraordinária de energias. Não foi a irrupção de 2013 que moldou os anos seguintes; o que determinou o destino futuro foi o que se fez com 2013, para onde e como se canalizaram aquelas energias - e o descaso com que se tratou seu potencial transformador positivo. 

Os verdadeiros vândalos vestiam terno e gravata e evocaram a sagrada família quando encenaram a farsa do impeachment. Não foi 2013 que deu o golpe parlamentar, o golpe foi dado por quem negara 2013 e pressionara o governo a endossar a repressão. Tanto é verdade que Temer concluiu seu mandato nas cordas com 5% de apoio. Seu governo era impopular e anti-popular. A opinião pública estava farta dos minuetos da Corte. E quem o sucedeu foi quem se ligou às ruas, mesmo que exclusivamente ao lado sombrio das ruas, ao que havia nelas de regressivo e brutal. 


Passados dez anos e, diante dos rumos tomados na política brasileira, é comum ver relações entre as jornadas de junho e a queda de Dilma em 2016 ou a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Como junho de 2013 incide sobre os desdobramentos políticos seguintes?

A Lava-Jato visou à liquidação das esquerdas para a implantação de um projeto neoliberal extremado. Ela acendeu a fogueira na qual arderam os últimos vestígios de credibilidade daquilo que, até 2013, entronizava-se como “representação política” ou “política democrática”. Se a democracia estava em ruínas, concluíram os fascistas, aquele era o momento de dar-lhe o tranco fatal. 





Bolsonaro foi o único ator político de ampla visibilidade -além de Marina (mas ela não conseguiu catalisá-las)- sintonizado com o fato (que ele leu pelo avesso) de que as energias precipitadas em 2013 haviam sido produzidas pelo dinamismo conflagrado e agonístico da sociedade brasileira, quando confrontada com a expansão da cidadania, a elevação de expectativas e a concretização de algo próximo ao que se denominava democracia. As ruas, como vimos, haviam sido medo, ressentimento mas também esperança e gregarismo. Ele sabia que 2013 fora um fenômeno chave, um divisor de águas, e que o futuro se decidiria na disputa pelo direcionamento daquelas energias disruptivas e refratárias ao confinamento anterior. 

Sua candidatura nasceu como uma proposta de metabolização pela ultradireita fascista das energias precipitadas no deslocamento de placas tectônicas. A democracia reduzira-se a rituais vazios, as instituições estavam ocas, as liturgias do poder simulavam uma coreografia farsesca: era esta, em suma, a percepção dominante nos meios populares. Os conflitos sociais de uma sociedade tão brutalmente racista e patriarcal, e tão despudoradamente desigual, não cabiam nos arranjos mal ajambrados que salvaram o país das garras da ditadura, é verdade, mas não serviam a uma sociedade ávida por mudanças de verdade. 

Por tudo isso, 2013 continua sendo uma referência estratégica para a compreensão do enraizamento popular do bolsonarismo. Se o PT continuar negando a dimensão positiva das manifestações que marcaram o país há uma década, dificilmente compreenderá a magnitude do desafio que está à sua frente e que vai lhe exigir mais coragem para produzir mudanças profundas do que habilidades para se equilibrar no poder.






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