O ciclo de protestos ocorridos no Brasil em junho de 2013 se tornou um marco para o cenário político brasileiro. Enquanto tais cenas foram o ponto de partida para uma série de análises e estudos, a socióloga Angela Alonso procurou entender como o país chegou até ali, em seu livro “Treze: a política de rua de Lula a Dilma”, publicado agora, em 2023, dez anos depois. A autora conversou sobre o tema com o Estado de Minas, que produz, nesta semana, um especial sobre os acontecimentos de junho de 2013 e o que representaram para o país.
“Este livro seguiu um processo político longo e intrincado, do qual nem todos os ângulos e partes foram explorados, focalizou apenas numa das mudanças, a transformação da política de rua. Desde a primeira chegada do PT ao comando da nação, lentamente se construíram tendências, atores e temas que se cristalizaram em junho de 2013, na forma de um ciclo de protestos”, escreveu no capítulo final, “o espólio de junho”.
"Junho de 2013 foi um mosaico de movimentos diferentes que vinham se organizando desde o início do governo Lula em torno de três zonas de conflito - redistribuição, moralidade e violência"
Angela Alonso é professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade
de São Paulo (USP), pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e colunista da Folha de S.Paulo. A autora também publicou os livros “Ideias e Movimentos” (2002), “Joaquim Nabuco” (2007), “Flores, votos e balas” (2015) e “The Last Abolition” (2022).
De acordo com a socióloga, o discurso “desculpe o transtorno, estamos mudando o Brasil”, de junho de 2013, não era um exagero retórico. “O país caiu num furacão político desde então, com dois outros ciclos de protesto, em 2015 e 2016, um impeachment, em 2016, a virada da sequência de governos de esquerda para outro polo do espectro político, em 2018, e o retorno do PT ao poder, com a eleição de 2022. Muita coisa mudou no caminho”, declarou.
Hoje, dez anos depois, o que destacaria como ponto principal daquele mês de junho?
A diversidade de atores e agendas, mas com um foco comum, todos contra o governo do PT. Foi um ciclo de protestos, uma simultaneidade de diferentes. Havia muitos movimentos, que eu analiticamente distingui em três campos, dois à esquerda (o campo autonomista, mais focalizado na agenda dos costumes, e o campo neossocialista, de agenda redistributiva) e o terceiro à direita (o campo patriota, que agregava movimentos muito diferentes, liberais, conservadores e até autoritários, todos sob a mesma simbologia nacional) do governo.
Na sua visão, qual é o ponto menos compreendido pela sociedade sobre os protestos de 2013?
O fato de não ter sido um fenômeno homogêneo. Não foi nem uma revolta de esquerda (como acham os que chamam de “jornadas” e focalizam o MPL, um movimento muito pequeno e sem capacidade de arregimentação), nem o nascimento de uma “nova direita”, como acham outros. Junho de 2013 foi um mosaico de movimentos diferentes que vinham se organizando desde o início do governo Lula em torno de três zonas de conflito – redistribuição, moralidade e violência.
É possível fazer um paralelo entre os dez anos anteriores (2003-2013) e os dez anos posteriores (2013-2023)?
As três zonas de conflito abertas durante o primeiro governo Lula geraram movimentos opostos em cada uma delas: por mais e por menos redistribuição de recursos e oportunidades, por mais e menos controle moral dos corpos e do governo, em torno de revisar ou não a lei da anistia e de deixar as armas sob controle do estado ou nas mãos dos cidadãos. Estas questões todas ainda estão aí na agenda, de uma maneira ou de outra. O terceiro mandato de Lula tem contribuído para manter esses conflitos acesos.
O ponto de fuga do campo patriota presente no ciclo de protestos foi determinante para a construção do Bolsonarismo?
Acho que é preciso distinguir duas coisas. Uma é que 2013 tinha mais do que o campo patriota, não se pode pôr toda a culpa do que veio depois em junho. Outra é que nos governos Lula e Dilma muitos movimentos que compõem o campo patriota cresceram, mas eram bem variados – desde libertários até autoritários. Estiveram todos juntos no ciclo de protestos patriota (em março de 2015) e no do impeachment e boa parte deles no apoio à candidatura Bolsonaro, mas nem todos apoiaram o governo Bolsonaro e sua candidatura à reeleição. Assim, é bom distinguir o campo patriota e o bolsonarismo, são dois círculos que coincidem em parte, mas não se sobrepõem perfeitamente.
Hoje, em 2023, a rua é de quem?
A rua agora lembra um pouco o que Dilma enfrentou em termos de configuração, embora com gradações. O campo autonomista segue pequeno e tem usado menos a tática black bloc, que foi o que capturou a atenção em junho de 2013. Já o campo neossocialista, embora siga com manifestações, tem mais movimentos alinhados com o governo, inclusive líderes deste campo em junho, como o Boulos, agora estão nas instituições. O campo patriota é que mais robusto e vigoroso do que era antes.
Com o retorno de Lula e do PT, nós poderemos ter um novo ciclo? Por quê?
É muito difícil uma configuração como a de junho de 2013 se repetir. Eram movimentos diferentes e até antagônicos se manifestando ao mesmo tempo. Isso é muito raro.
Como surgiu a ideia de escrever o livro “Treze” e como foi esse processo?
Comecei a pesquisa ainda em junho e depois tive que parar porque estava acabando outro livro, sobre o movimento pela abolição da escravidão, e virei presidente do Cebrap. Fui fazendo a pesquisa devagarzinho e só nos últimos anos me dediquei com mais afinco ao livro. Demorou também porque eu comecei, como todo mundo, seguindo o processo político que aconteceu depois de junho, mas me dei conta de que assim o mais importante ficava de fora, que era entender como se chegou a junho. Daí redirecionei a pesquisa e voltei à hora em que a política de rua se alterou drasticamente, com a chegada do partido dos movimentos, o PT, ao poder, em 2003.