Uma nuvem branca engoliu o repórter fotográfico Marcos Michelin. Em um instante, só conseguia distinguir sua silhueta apagada, de pé, depois se abaixando e por fim desabando no asfalto. Tinha acabado de vê-lo apontando sua câmera na direção onde a polícia bloqueava a entrada rumo ao estádio do Mineirão quando a bomba de efeito moral explodiu e um estilhaço o atingiu, ferindo sua perna.
Na mesma hora, em um impulso deixei a posição em que tentava me proteger, abrigado atrás de uma árvore, e corri na direção dele, mais ou menos consciente de que me tornaria um alvo. Entre saraivadas de elastômeros – mais conhecidos como balas de borracha por quem está no seu caminho – e mais explosões de gás lacrimogêneo, consegui alcançar meu companheiro de cobertura. Com dificuldade e a ajuda providencial do fotógrafo da revista Veja BH, Victor Schawnner, o arrastamos para fora da linha de tiro.
Michelin se queixava de dor, enquanto eu tentava conseguir por telefone um carro para levá-lo ao hospital no meio de uma das maiores manifestações que já vi. Era 26 de junho de 2013. Nunca me esqueci daquele dia, o que mais me marcou na cobertura jornalística da revolta que levou milhões para as ruas do país, milhares ocupando as de BH, em uma escalada de protestos que alcançaria um nível inédito de revolta, violência, destruição.
Não é fácil ver colegas sendo atingidos por disparos ou passando mal por causa de gás de pimenta. Para mim, tudo soava surreal. A sensação de adrenalina fazia com que me movesse como se estivesse em um filme, como se segundos fossem tempo de sobra para mil coisas acontecerem, o cansaço não existisse e os reflexos fossem imediatos. Entre as explosões, o coração disparava em meio ao ar denso em que se respirava, a custo, o cheiro de uma mistura indistinta de pólvora queimada, fumaça e gás de pimenta.
Mas não foi assim que começou. Isso foi como terminou. No início, seguindo o que ocorria no restante do país, jovens de várias classes sociais engrossavam protestos pelas ruas de Belo Horizonte, reclamando do aumento de R$ 0,20 da passagem de ônibus. Outras pautas começaram a pipocar, liberando uma onda de revolta represada que só fazia se avolumar. Gente contra a violência policial, a corrupção na política e um dos questionamentos mais presentes: o de que a Copa das Confederações, que ocorria naquele ano no Brasil e tinha BH como uma das sedes, e a Copa do Mundo, programada para o próximo, eram desperdício de verbas em um país com tantas carências.
Do 'Vem pra rua' aos black blocs
O mar de gente que invadia em ondas as ruas de Belo Horizonte naquele junho de 2013 não tinha controle, direção ou liderança. Nos primeiros dias de protestos, multidões passavam diante dos prédios e os participantes conclamavam pessoas que assistiam das janelas a aderir, convocando: “Vem pra rua! Vem pra rua!”. Cheguei a ver, nessas ocasiões, pessoas em cadeiras de rodas apoiando os protestos e idosos descendo de seus apartamentos para fazer o mesmo.
Quando algum grupo político tentava se aproveitar da mobilização, era imediatamente vaiado e escorraçado. Não havia, àquela altura, espaço para brigas ou violência, e a Polícia Militar adotava uma postura de acompanhamento, sem intervenções. Até porque não havia mesmo como negociar, pois não havia líderes.
Recordo que isso tornava também muito difícil saber quando terminaria a cada dia a cobertura jornalística, porque os manifestantes não tinham roteiro. De repente, decidiam sair do Mineirão e ir para a Câmara Municipal; depois decidiam ir até a Assembleia Legislativa; em seguida, marchavam para a prefeitura – esses destinos simplesmente nascendo e sendo adotados sem qualquer planejamento ou motivo claro.
Especialmente partir do último terço de junho, a violência passou a ser uma característica dos protestos. Grupos preparados de ativistas violentos, os chamados black blocs, entraram nas manifestações, iniciando depredações de agências bancárias e outros imóveis, atingindo patrimônio público e privado.
Esses grupos também desafiavam as forças de segurança e depois atacavam a polícia, como se tentassem atrair o fogo da contenção policial para a manifestação. A entrada em ação desses ativistas fez com que muitas pessoas comuns, que antes aderiram ao chamado das ruas, passassem a não mais se sentir seguras para continuar participando dos protestos.
A fúria que afastou ativistas pacíficos
Naquele 24 de junho de 2013, uma segunda-feira, os black blocs haviam tomado a frente dos manifestantes que se deslocavam pela Avenida Antônio Carlos, perto do câmpus da Universidade Federal de Minas Gerais. Pelo caminho, atearam fogo a pontos de ônibus, lixeiras e arrancaram placas para transformar em barricadas.
Entre as palmeiras da avenida, começaram a lançar pedras contra a polícia. Muitas pessoas que estavam na manifestação ficaram sem reação ao verem tanta violência, e literalmente mudaram de lado: buscaram abrigo atrás das forças policiais. Algo que a experiência das ruas me ensinou a não fazer, por se tratar do principal alvo das pedras dos manifestantes.
Na linha de fogo, ônibus e carros então manobravam para escapar por cima dos canteiros e pela contramão. Acionado, o Batalhão de Choque combatia os manifestantes à distância, com disparos de balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. Um helicóptero pairou sobre o caos, até que a noite caiu e os manifestantes desistiram de ir ao Mineirão, preferindo rumar para a Prefeitura de BH.
No dia seguinte ocorreram grandes protestos e mais uma vez um dos destinos foi o Mineirão, desta vez pela Avenida Pedro I. Depois, grupos rumaram para a Prefeitura de BH. Naquela noite, não ocorreriam embates contra a polícia. Muita gente repetia palavras de ordem, na esperança de evitar o que havia ocorrido no dia anterior. Grupos gritavam, em coro: “Sem violência” ou “Sem vandalismo”. Mas, àquela altura, nós, jornalistas, cientes do risco e farejando o que ainda poderia ocorrer, já estávamos nos equipando com capacetes, óculos de proteção e máscaras de gás.
A violência explodiu mesmo no dia seguinte, 26 de junho, dia do jogo entre Brasil e Uruguai. Novamente, black blocs enfrentaram a polícia quando a manifestação se aproximava do Mineirão. E foi ali que vi a silhueta do repórter fotográfico tombar, engolida em meio a uma explosão de fumaça.
BLOQUEIO TÁTICO Naquela altura, os policiais adotaram uma tática de enfrentamento em que, a partir de ruas vizinhas, faziam disparos sem precisar se expor aos manifestantes. Com isso, atingiam quem estava na frente do protesto, conseguindo, mais uma vez, impedir que a turba chegasse ao estádio.
Foi quando a fúria dos black blocs elegeu como alvo as concessionárias de veículos da Avenida Antônio Carlos, onde depredaram carros, móveis, equipamentos e atearam fogo aos imóveis, afastando de vez quem ainda estava nos protestos sem fazer uso de violência. Marcas desses ataques resistem até hoje em lojas ao longo do corredor que dá acesso ao Mineirão, como mostra na próxima reportagem desta série o repórter Gustavo Werneck.