A voz das ruas subiu o tom, ecoou por praças, ruas e avenidas, formou um gigantesco grito de milhares de pessoas – embora longe de ser coordenado ou de ter harmonia – e provocou uma onda ensurdecedora de protestos, que avançou para atos de vandalismo e destruição. Há 10 anos, as manifestações de junho de 2013 abalavam Belo Horizonte, dividindo a sociedade entre os olhos de revolta e os de espanto e registrando seu lugar na história, com marcas que ainda são visíveis em vários cantos da cidade e persistem no coração dos que perderam familiares.
“Foram dias de terror”, resume João Viotti, gerente de vendas de uma concessionária de veículos nas imediações da Avenida Antônio Carlos. Uma década depois, ainda é possível ver vestígios deixados pelas pedras arremessadas por uma multidão em fúria contra a loja, cuja fachada de vidro restou estilhaçada.
Marcas que ficaram também no íntimo de muitas pessoas, a exemplo do comerciante José Carlos Coelho.
Com medo de novas manifestações depois de ter sua lanchonete quase invadida, ele mandou instalar mais uma porta, com grade, na esperança de evitar surpresas. Em BH, as manifestações sociais que sacudiam outras partes do país ocorreram de 15 a 26 de junho, quando o Brasil sediava jogos da Copa das Confederações. Durante partidas no estádio do Mineirão, o caldo de revolta descoordenada que já borbulhava por fim entornou. Em seu rastro, além da destruição, a onda de convulsão social avançou deixando vítimas especialmente no último dia, quando o Brasil enfrentava o Uruguai.Em campo, a Seleção Canarinho venceu por 2x1; mas, fora dos cordões de isolamento que garantiam a alegria e as aparências do multimilionário evento internacional de preparação para a Copa do Mundo de 2014, o que se via era um mar de revolta, confrontos, dor, fogo e muita, muita depredação.
Fogo, pedradas e vidros em cacos
Olhos atentos observam que ainda há marcas por todos os lados: nas paredes amassadas pelas pedradas, no piso de granito, quebrado em uma das pontas, no balcão de atendimento aos clientes, no revestimento externo. Apontando cada vestígio das manifestações de junho de 2013, o gerente de vendas da Mila Concessionária Volkswagen, João Viotti, volta no tempo, trazendo na memória, bem nítidas, as imagens da destruição da loja localizada na Rua Professor Magalhães Penido, no Bairro São Luiz.
Naqueles dias, a localização privilegiada a caminho da Pampulha e do Mineirão se transformaria em sentença. A poucos metros da autorizada da marca de origem alemã fica o Viaduto José Alencar, elo entre as avenidas Antônio Carlos, por onde se deslocava uma turba enfurecida, e Abrahão Caram, ligação com o estádio, objetivo dos manifestantes e palco de parte dos acontecimentos assustadores e trágicos, a exemplo da morte de dois jovens que morreram após cair do elevado.
“Foram dias de terror. Por duas vezes, os manifestantes atacaram a loja, sem invadi-la. Na primeira, um sábado, quebraram vidraças atirando pedras. Notamos que eram pedras portuguesas limpas, novas, e não retiradas de passeios. Era como se tivessem sido compradas para essa finalidade”, conta Viotti.
Caminhando pela loja enquanto vai mostrando riscos nas paredes e partes amassadas, o gerente observa que até hoje são localizados danos que exigem conserto. “A fachada envidraçada foi toda quebrada, com prejuízos, na época, de cerca de R$ 1 milhão.”
A direção da empresa tomou medidas urgentes diante do recrudescimento dos protestos. Contratou 40 seguranças, retirou os carros expostos e instalou uma cerca concertina para tentar evitar a aproximação dos manifestantes. “Mesmo assim, lançaram aqui dentro um colchão incendiado, que foi imediatamente retirado pelos seguranças”, diz Viotti, lembrando que o cenário era tão aterrorizante, que um dos vigilantes contratados resolveu bater em retirada pelos fundos, pulando um muro para fugir dos ataques.
INCÊNDIO O cenário de convulsão se completava do lado de fora, com rojões disparados contra carros de polícia, nuvens de gás lacrimogêneo se espalhando por todo canto, misturadas à fumaça de vários focos de incêndio e uma multidão dominando a Avenida Antônio Carlos e o Viaduto José Alencar.
O resultado dessa onda de revolta que destroçou patrimônio público e privado também está bem claro na memória de Fernando Vargas Freitas, gerente da Osaka Pampulha, concessionária da Toyota.
“Entraram na nossa loja, que havia sido inaugurada seis meses antes, quebrando as vidraças laterais. Incendiaram a administração, incluindo computadores, livros e todo tipo de material. O meu laptop, para se ter uma ideia, foi encontrado, quebrado, na rua.”
Os manifestantes foram ainda ao subsolo, onde depredaram veículos. “Não roubaram nenhum carro, estavam mesmo interessados na destruição”, conta.
“Posso dizer que 70% das vidraças foram quebradas. Devido à situação, a loja ficou fechada por um mês e meio. Passamos a usar a unidade anexa, que tem o showroom de veículos novos. Felizmente, aqui ninguém ficou ferido.” O ataque a que Fernando se refere ocorreu em um domingo, quando a loja estava fechada. Mas o gerente, que mora na rua de trás da concessionária, viu toda a movimentação, que deixou as piores lembranças e uma marca que teima em não desaparecer, como uma sombra. Na entrada principal, ficou a palavra “Libertas”, pichada por manifestantes.
Comerciantes da região lembram ainda da ameaça de explosão de um posto de combustíveis, localizado bem perto das concessionárias. O estabelecimento manteve a bandeira, mas trocou de mãos, e hoje os novos funcionários sabem pouco da história.
Na época, conforme registrou o EM, gerente e frentistas se trancaram na loja de conveniência, pois a multidão queria invadir o lugar para tentar se proteger do gás lacrimogêneo. Na sequência, vieram os vândalos, obrigando a polícia a fazer uma barreira para impedir que quebrassem os vidros e entrassem.
Na manifestação seguinte, o posto já estava cercado por tapumes – assim como várias lojas no caminho. Mas nem isso conseguiu impedir os estragos. Equipamentos foram danificados, e houve inclusive tentativa de atear fogo às bombas de combustível, o que foi impedido por participantes da própria manifestação.
O preço do vandalismo
Os danos causados ao comércio pelos protestos de junho de 2013 foram superlativos, conforme levantamento feito na época pela Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL/BH). Uma pesquisa com 36 lojistas da Avenida Antônio Carlos, registrou prejuízo individual médio de R$ 40 mil. Em nota, a entidade informa que mais de 11% tiveram prejuízos acima de R$ 1 milhão, com a maioria dos estabelecimentos atingidos mais de uma vez, mesmo após adoção de medidas para tentar evitar o vandalismo. Os danos incluíram depredação de fachadas, saques, depredação interna e incêndio.
Em um dos dias mais conturbados, a polícia fez uma barreira na Avenida Abrahão Caram para impedir o acesso de mais de 60 mil pessoas ao estádio do Mineirão, palco das disputas de jogos da Copa das Confederações. Ali perto, na Avenida Antônio Carlos, no Bairro São José, há hoje um laboratório de análises clínicas. Na época dos protestos, funcionava no endereço uma concessionária da marca coreana Hyundai, que foi totalmente destruída, a exemplo da loja da Kia AutoMark. A lista das atingidas incluiu ainda Forlan, Nissan, Honda Minas Moto, Peugeot Vernon, Plaza Antônio Carlos e Brasvel.