Os salgados, principalmente os pastéis, da lanchonete Dois Amigos são famosos, atraindo quem passa pela Avenida Antônio Carlos ou segue em direção ao câmpus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), do outro lado da via. Mas o ambiente convidativo quase foi depredado durante as manifestações de junho de 2013. “Eles tentaram entrar aqui, arrombar, mas não conseguiram. Tenho aqui uma proteção (um tipo de comporta), que funcionou bem”, conta José Carlos Coelho, um dos “dois amigos proprietários”.
Passado o rolo compressor de destruição, os donos instalaram uma segunda porta, com grade, na esperança de assim evitar qualquer novo ataque. “A gente nunca sabe o que pode acontecer”, reflete José Carlos, lembrando dos pneus de carros retirados de uma loja acima e rolados avenida abaixo.
“Foi impressionante! Jogavam tudo nas ruas, até extintor de incêndio. Acho que, se já tivesse o Move naquele tempo, teriam incendiado todos os ônibus. Foram dias de terror em Belo Horizonte. Muitos nem sabiam por que estavam agindo assim. Depois, fiquei me perguntando: ficou resolvido o que, com tanta confusão?”
O dono da lanchonete chegou a perguntar a um manifestante o motivo da baderna. “É a PEC! É a PEC! Só gritava isso”, recorda. O não à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37 na época caiu na boca do povo e surgiu em cartazes carregados durante as manifestações. Com o apelido de PEC da Impunidade, o texto limitava a atuação do Ministério Público estadual e federal ao delegar exclusivamente às polícias Federal e Civil dos estados e do Distrito Federal a apuração de infrações penais.
Com a pressão das ruas, a proposta foi rejeitada com 97% dos votos na Câmara dos Deputados. Mas os motivos das manifestações, e principalmente dos manifestantes, eram muitos mais fluidos, difusos, difíceis de estabelecer e compreender. Entre as reivindicações, que começaram em São Paulo e irradiaram para outros estados, estavam redução da tarifa de ônibus, direito a moradia, fim da corrupção...
“Não dá para esquecer”
Pai de quatro crianças com idades de 2 a 12 anos, Judson Anselmo Silva, de 34, tinha na época apenas a filha Isabela, quando presenciou a onda de depredação. Dono de uma reformada de móveis (que ainda não existia) na Antônio Carlos, na altura do Bairro Liberdade, ele, então com 24 anos, estava na casa de parentes durante os tumultos.
“Não dá para esquecer. Estive, na rua, com amigos, mais para ver aquela multidão”, descreve, enquanto as mãos vão cortando a espuma com a tesoura. “Foi uma confusão, o povo descendo a avenida e quebrando tudo. Não tive medo, pois estava perto de casa. Mas nunca vi tanto gás lacrimogêneo e gás de pimenta.”
A geografia do levante
A Avenida Antônio Carlos, onde está a loja de Judson, foi um dos pontos efervescentes naqueles dias de quebradeira. Conforme a dissertação de mestrado “Junho de 2013: atores, práticas e gramáticas nos protestos em Belo Horizonte”, de Letícia Birchal Domingues, hoje doutoranda em ciência política e integrante do grupo de pesquisa Margem, do Departamento de Ciência Política da UFMG, os protestos ocorreram nas praças da Liberdade, Rui Barbosa (Estação), Sete e da Assembleia Legislativa, e nas avenidas dos Andradas, Antônio Carlos e Abrahão Caram, onde fica o Viaduto José Alencar – marco mais trágico das manifestações.
O primeiro registro foi em 15 de junho, um sábado, com mobilização da Praça da Savassi até a Praça Rui Barbosa (Estação), passando pelas praças da Liberdade e Sete. Na chegada à Praça da Estação, havia uma Fun Fest (festa popular organizada durante a Copa das Confederações), com a presença de 12 mil pessoas.
Dois dias depois, em 17 de junho, uma multidão se deslocou da Praça Sete ao estádio do Mineirão, passando pela Avenida Antônio Carlos. Naquele dia, houve o primeiro encontro com a Polícia Militar, na Avenida Antônio Carlos, e confronto na altura do câmpus da UFMG, na Região da Pampulha. A manifestação foi diurna, durante o jogo Taiti x Nigéria, na Copa das Confederações.
Na quarta-feira (19), os protestos ecoaram na Assembleia Legislativa, no Bairro Santo Agostinho, na Região Centro-Sul. No dia seguinte, foi a vez da Praça da Liberdade, Avenida dos Andradas até a Câmara Municipal, e depois na Praça Sete.
O clima de tensão se avolumava cada vez mais, assim como as multidões arregimentadas pelos protestos – nos quais se destacavam também manifestantes pacíficos e inclusive pais com filhos. Mas o que deixou cicatrizes na cidade foram os quebra-quebras como o de 22 de junho, um dos dias mais caóticos.
Era um sábado quando uma multidão partiu da Praça Sete em direção ao Mineirão, passando pela Avenida Antônio Carlos, deixando pelo caminho um rastro de confronto, especialmente na altura da Avenida Abrahão Caram, na Pampulha, e de ataques a concessionárias de veículos. Conforme a dissertação de Letícia Birchal Domingues, foi a maior manifestação em BH em números, compreendendo de 100 mil a 150 mil pessoas. Nesse dia, jogavam, no Mineirão às 16h, Japão e México.
Em 26 de junho, uma quarta-feira, houve a última grande manifestação, e também a mais violenta, durante o jogo Brasil x Uruguai, no Mineirão, na semifinal da Copa das Confederações. Os protestos também partiram da Praça Sete rumo ao estádio, passando pela Antônio Carlos. O principal confronto também ocorreu na altura da Avenida Abrahão Caram.
Onda de protestos custou duas vidas
No paredão sob o Viaduto José Alencar, que faz a ligação entre as avenidas Antônio Carlos e Abrahão Caram, na Região da Pampulha, há hoje um grafite com a pintura já um pouco descascada, mas que chama a atenção pela força da imagem. Nela, em um oceano de águas vermelhas, cheio de polvos, um barco naufraga, enquanto, sobre um cofre, um bispo reza, um homem de terno empunha um livro e outro estende a mão, pedindo ajuda.
No mesmo cenário, uma pessoa com uma televisão no lugar do rosto tira a água, ao lado de um soldado com fuzil e de um jogador de futebol levantando uma taça, enquanto outro personagem se afoga. A obra coletiva “Não foi acidente” veio a público em 2015, para homenagear Douglas Henrique Oliveira de Souza e Luiz Felipe Aniceto de Almeida, jovens mortos após queda do mesmo viaduto, no qual, mais tarde, foram colocadas guarda-corpos.
Douglas morreu aos 21 anos, em 26 de junho, data da última grande manifestação em BH. Em entrevista ao EM, três anos após a morte do filho, Neide Maria Caetano de Oliveira lamentou: “A situação do Brasil não muda. A única coisa que muda são nossas vidas, perdendo os filhos. A tendência é só piorar. Mudou alguma coisa? Adiantou fazer manifestação, ir para a rua? O que mudou foi a minha vida. Fiquei sem o sorriso, sem o abraço dele. Minha sensação é de que tudo foi em vão”.
Na entrevista concedida à repórter Junia Oliveira, Neide Maria lembrou dos últimos momentos com Douglas, quando pediu para ele não ir à manifestação. “Menino trabalhador – acordava às 5h para pegar serviço às 6h, ajudava em casa, não tinha vícios nem se envolvia com nada ilícito.” A mãe contou ainda que o filho não tinha ligações com movimentos sociais ou partidos políticos, indo para a rua, com alguns colegas, para protestar contra a situação do país, por acreditar que aquilo era o certo e necessário. “Se eu pedisse com mais energia para ele não ir, porque eu não queria, ele não iria. Por vários dias me cobrei por não ter sido mais enérgica”, disse.
Douglas tentava pular a mureta para alcançar a pista oposta do viaduto, mas não viu o vão entre as duas alças do elevado – um desnível entre elas teria gerado a falsa impressão de que são unidas. Tanto que o jovem Luiz Felipe Aniceto de Almeida, então com 22, perdeu a vida em circunstâncias parecidas. Ele caiu do viaduto em 22 de junho, quatro dias antes do acidente de Douglas. Ficou internado em estado grave no Hospital de Pronto-Socorro João XXIII por 19 dias, mas não resistiu. Cinco outras pessoas ficaram feridas ao cair do mesmo elevado, lugar no qual ficaram gravadas na história, sem dúvida, as cicatrizes mais trágicas daqueles dias inesquecíveis.