Em meados de junho de 2013, quando as manifestações chegaram a Belo Horizonte, cerca de uma semana após ganharem corpo em São Paulo e no Rio de Janeiro, Márcio Lacerda estava já em seu segundo mandato como prefeito da capital mineira. Em entrevista ao Estado de Minas, ele recorda como os eventos daquele conturbado mês foram recebidos dentro da administração municipal, como articulou a relação com os governos estadual e federal e também com os manifestantes. A exemplo de outras cidades brasileiras, onde os chefes do Executivo se tornaram alvo dos protestos, Lacerda também teve espaço nos cartazes e palavras de ordem de BH. O ex-prefeito, no entanto, disse que sua rotina não sofreu grandes alterações e que sua gestão tinha respostas às demandas das ruas. Dez anos depois, Lacerda avalia: “Infelizmente, os eventos geraram um tipo de polarização baseado em modelos importados da direita americana que nos levou à situação atual, sem desmerecer a mobilização da direita conservadora, que é justo que se manifeste e tenha espaço no processo político”. O principal ponto negativo em sua avaliação foram as depredações. “Eu, como político e jovem contestador que fui, achei muito interessante, mas o que incomodava mesmo eram as depredações. Era preciso prender aquela minoria de vândalos que não representavam as manifestações”, afirma.
As manifestações chegaram a Belo Horizonte de forma rápida e ganharam grandes proporções. Como o senhor se recorda de estar à frente da prefeitura e ver os eventos escalando na cidade e no país?
Essas manifestações começaram em São Paulo e demoraram uns dias para chegar aqui de forma mais perceptível. O primeiro contato que eu tive com a insatisfação popular foi em Brasília, na abertura da Copa das Confederações, em 15 de junho. Eu participei da cerimônia de abertura e foi um dia de uma histórica vaia à presidente Dilma Rousseff. Voltei no dia seguinte, foi quando aconteceu a primeira grande manifestação em Belo Horizonte. A verdade é que nessa primeira manifestação foram cerca de 8 mil pessoas, foi pacífica, na Região Centro-Sul. Foi organizada pela internet e o foco era muito na tarifa de ônibus e os gastos na Copa do mundo. Os assuntos foram se expandindo, a questão da qualidade dos serviços ficou muito presente, assim como a corrupção
Como a prefeitura se mobilizou para tentar dar alguma resposta às demandas das ruas?
A gente teve uma articulação muito intensa durante todo o tempo, principalmente com a Polícia Militar. Nós também começamos muito rapidamente a avaliar a questão das passagens e, depois de várias tratativas ao longo das duas semanas seguintes, conseguimos reduzir a passagem em R$ 0,15, de R$ 2,80 para R$ 2,65. A prefeitura abriu mão de uma contribuição que as empresas faziam para a gestão do sistema. Foi algo em torno de 40 milhões que a PBH deixou de arrecadar. As manifestações foram se ampliando. Tivemos muitas entrevistas na época, sempre elogiando a juventude no sentido da necessidade de se manifestar, mas sempre criticando as depredações e o vandalismo. Antes, os manifestantes mesmo conseguiam reprimir, mas isso chegou a um nível mais grave com a depredação na Avenida Antônio Carlos. A polícia acabou não intervindo, fechando apenas o acesso ao Mineirão via Avenida Abraão Caram.
Como se deu a relação com os governos estadual e federal? E como era feita a articulação direta com os manifestantes?
Estivemos junto com a presidente em Brasília. Antes disso, em reunião, junto com o Anastasia . Eu disse ao Pimentel que deveria pedir a Dilma Rousseff que convocasse uma constituinte específica para uma reforma política. Ela acatou a ideia, mas a proposta foi muito criticada, inclusive pelo Judiciário, e não caminhou. Sobre os manifestantes, a uma certa altura em BH, um grupo formado especialmente pelos militantes do PT, Psol e sem-terra se intitulam representantes das assembleias horizontais. Fizeram uma ocupação na Câmara Municipal para pedir a redução nas passagens. Eles pediram uma reunião com o prefeito e nós os recebemos na prefeitura. Foi uma reunião muito interessante, muito ideológica e, de fato, eles não representavam todo o movimento, que era muito maior do que eles. A votação independia da ocupação deles. Nós estávamos em negociação com a Câmara. Mas era um movimento legítimo e eu os recebi uma noite na prefeitura.
O senhor se recorda dos dias de trabalho naquele mês de junho? Como era a rotina na prefeitura?
Era uma situação absolutamente nova, não tinha uma experiência recente parecida no país. Eu, como político e jovem contestador que fui, achei muito interessante, mas o que incomodava mesmo eram as depredações. Teve uma depredação na prefeitura que destruiu um vitral da década de 30 no segundo andar. De uma forma geral, as manifestações nos mostraram que a gente precisava corrigir algumas coisas, mas de certa maneira, que estávamos no rumo certo. Nosso governo era bastante disciplinado, tínhamos conseguido financiamento para centenas de obras em andamento, transparência sobre os gastos públicos, aumento do salário dos professores. Então, tínhamos o que mostrar diante das reivindicações.
Então não houve uma mudança no trabalho?
Na realidade, a prefeitura continuou funcionando normalmente, eu inclusive andei nas ruas naqueles dias, fui a pé a reuniões, inspecionei obras. Uma vez, na Avenida Paraná, alguém de longe me chamou de ladrão. Nunca alguém havia me chamado de ladrão, mas naquele momento todo político era ladrão. No momento dos protestos, a gente se mobilizava em um comitê para acompanhar o que acontecia antes, durante e depois, mas os protestos não eram todos os dias, todas as horas. A gestão continuou normalmente. Eu, inclusive, fui muito criticado porque disse em uma entrevista que a PM estava prendendo pouco. Mas era isso mesmo, porque era preciso prender aquela minoria de vândalos que não representavam as manifestações. Tivemos, infelizmente, duas mortes nos viadutos da Antônio Carlos. É o que se lamenta. Houve o prejuízo dos empresários, mas eles seguiram sua vida.
Dez anos depois, como o senhor avalia os impactos das jornadas de junho na política nacional?
Acho que, infelizmente, os eventos geraram um tipo de polarização baseado em modelos importados da direita americana que nos levou à situação atual, sem desmerecer a mobilização da direita conservadora, que é justo que se manifeste e tenha espaço no processo político. Na realidade, ali naquele processo, a direita mais militante participou, se organizou na sequência em vários movimentos energizados depois pela Lava-Jato, que ficou mais forte no ano seguinte. Como eu disse, usando técnicas e táticas copiadas da mobilização de internet da direita norte-americana, nos conduziu ao processo de polarização que vimos nos últimos anos e seguimos vivendo, mas de forma mais amainada.