Especial para o EM
"Existe uma longa história de revoltas populares no Brasil, mas não existe um acontecimento que se pareça com Junho de 2013. Um governo democrático com razoáveis números na economia, tudo funcionando mais ou menos bem e uma erupção fora da autorização do PT"
Idelber Avelar, Professor, 54 anos, Universidade de Tulane (EUA)
O fim do pacto lulista, capaz de acomodar forças teoricamente antagônicas dentro de uma estrutura de poder foi fundamental para a eclosão dos protestos de Junho de 2013. A avaliação é do crítico mineiro Idelber Avelar, autor do livro "Eles em Nós: retórica e antagonismo político no Brasil do séc. XXI" (2021), e professor de literatura latino-americana da Universidade de Tulane, em Nova Orleans, nos EUA. Para ele, a ruptura interna que ocorreu em 2013 na forma de governar do PT se somou à incapacidade da classe política de avaliar corretamente o que motivou os atos.
A consequência disso foram as decisões equivocadas que provocaram todo o turbilhão que se seguiu na década que passou, do impeachment de Dilma Rousseff à ascensão do ex-presidente Jair Bolsonaro, passando pela prisão e o retorno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao poder – dessa vez, sem condições de repetir o arranjo de forças em que coexistiram a esquerda e a centro-direita dos seus primeiros mandados. "Lula já não tem como administrar esses opostos, porque a sociedade brasileira se esgarçou", afirma Avelar.
Qual o Brasil que chega a junho de 2013?
O Brasil que chega a 2013 era, à primeira vista, um país que tinha resolvido os seus problemas básicos, como a universalização da educação, a fome, a assistência de saúde emergencial e imediata para a população. Era um país que parecia muito feliz, que parecia satisfeito com o que havia realizado. Mas havia alguma coisa ali que cozinhava uma insatisfação tremenda que começou a se desarticular ainda no governo Lula, mas mais acentuadamente no governo Dilma. Os serviços públicos continuavam bastante precários, a ascensão dos pobres via consumo não se dava via cidadania. Ou seja, não havia uma garantia de mecanismo cidadãos que sustentassem aquela ascensão social. O início da crise econômica no governo Dilma traz toda uma geração de formandos do ProUni, por exemplo, para enfrentar uma realidade de mercado de trabalho onde eles não teriam o emprego dos sonhos.
Os indícios econômicos vinham sendo mencionados por vários economistas já em 2011, 2012. E, em 2013, o descontrole dos gastos, a falta de planejamento em programas como ProUni, o desperdício de dinheiro em programas completamente inúteis como Ciência sem Fronteiras, o despejo de dinheiro nas construções de hidrelétricas na Amazônia… tudo isso gerou um caldo econômico que favoreceu. Mas o elemento político também era muito importante. O Lula é um político de talentos incomparáveis e o Brasil saiu disso para a Dilma, que é uma política que não gosta de fazer política. Ela diz isso claramente. Ela não gosta de articulações políticas, ela não gostava de receber deputados para conversar. Essa falta de diálogo com o Parlamento, com os movimentos sociais, com os pares da política também foi decisiva para que aquilo estourasse.
E quando chega junho e isso tudo estoura, como o senhor define os protestos?Junho foi um “acontecimento”. Um “acontecimento” não é um evento qualquer, não é uma trivialidade que possa te passar na vida. Um acontecimento é a erupção de uma força incontrolável, imprevisível na qual você participa exatamente para disputar os rumos que aquela força vai tomar. Isso é perfeito para descrever Junho de 2013, porque as pautas, as consignas e os gritos eram disputados no interior do próprio acontecimento. As pessoas estavam na rua para descobrir porque elas estavam na rua. Não eram manifestações contra o governo federal. Em 2013, o inimigo era muito mais difuso: a precariedade da vida, a repressão policial, a proibição das drogas, o transporte muito precário.
O transporte foi a mola propulsora do momento inicial. Mas nenhum dos sujeitos envolvidos naquilo sintetiza na sua voz a totalidade daquele movimento. A totalidade dele é um mosaico de blocos sociais que convergiram ali naquele momento. Existe uma longa história de revoltas populares no Brasil, mas não existe um acontecimento que se pareça com Junho. Um governo democrático com razoáveis números na economia, tudo funcionando mais ou menos bem dentro do teatro democrático e uma erupção completamente fora da autorização do PT. Então, a estupefação dos líderes petistas tem um pouco a ver com isso. O subtexto era: “como eles usam sair às ruas sem a nossa permissão?”
Podemos dizer que a reação do sistema político mostra que não souberam fazer uma leitura correta do que estava ocorrendo?
O primeiro pronunciamento da presidente Dilma Rousseff foi no dia 21, depois que o país estava pegando fogo por 10 dias, e ela propõe uma constituinte parcial para fazer a reforma política. Isso mostra o descolamento do que passava na cabeça das lideranças petistas e o que acontecia nas ruas, porque para eles o problema era a corrupção e a corrupção. E por parte do Congresso, foi a aprovação da Lei das Organizações Criminosas, que regulamenta delação premiada. O sistema político embarcou no discurso anticorrupção, porque era o discurso que se podia fazer de forma genérica. E aquilo poderia de alguma forma acalmar, contemporizar, restabelecer o controle do sistema político sobre aquele turbilhão. Não foi isso que aconteceu.
Mesmo assim, Dilma venceu em 2014. Essa vitória foi apesar de Junho de 2013?
A Dilma venceu em 2014 por uma combinação de vários fatores. Não dá para desprezar a brutalidade da campanha feita contra Marina Silva, foi o processo eleitoral mais sujo que a gente tinha conhecido até então. Mas também tem a memória de vários impactos benéficos dos programas de transferência de renda implantados durante o petismo, que não desapareceram de uma hora para outra. Mas ela ganha com um discurso completamente diferente do que havia ganhado em 2010.
É um discurso raivoso, destrutivo, ressentido, acusatório. Em 2013, o lulismo ainda é um pacto que inclui todas as forças da sociedade, basicamente, até a extrema direita participa do governo. O Bolsonaro participa do governo do Rio de Janeiro. O Crivella é ministro da Dilma até o último dia, praticamente. Então, em 2014 o lulismo continua existindo, evidentemente. Mas ele já existe como uma força que antagoniza outras na sociedade. Ela é um bloco político, não é mais um pacto que incluía a totalidade do sistema político.
O que, exatamente, é esse pacto lulista?
A sociedade é formada de antagonismos inevitáveis. Esses antagonismos não são traduzidos no sistema político em partidos claros, em agendas parlamentares diferentes, em blocos de esquerda, centro-direita, etc. Não é essa a realidade que a gente vive no Brasil. As combinações entre partidos para eleições proporcionais no Brasil acabou há muito pouco tempo. Acabou outro dia.
Ela existia no Brasil e criava esses “monstrengos” em que tem uma chapa com PP, PMDB e PT. Muita gente imaginava que o PT fosse montar uma coalizão política que se chocasse contra esse sistema. Não foi o que aconteceu. O PT é uma ocupação de centro-esquerda do pemedebismo, na qual cabe todo mundo. Cabia o Hélio Costa, o Blairo Maggi, o Collor, o Sarney. Enfim, cabia todo o establishment da política oligárquica brasileira. Essa é a estrutura com a qual o lulismo governou.
É possível ligar o fim desse pacto ao impeachment de Dilma?
A Dilma caiu porque se conjugaram duas condições que sempre têm que se conjugar para que aconteça um impeachment: a combinação explosiva entre uma crise econômica aguda e insatisfação popular. Era a maior recessão da história do Brasil, para quem não se lembra. Foi a maior perda de riqueza da história do Brasil. O Brasil perdeu 10% de tudo que tinha de riqueza em dois anos. Não existia a insatisfação do sistema político com o Temer. O sistema político estava tentando se recompor por meio do Temer.
E como essa movimentação de massas de Junho de 2013 desembocou na ascensão do Bolsonaro?
As ruas brasileiras, entendidas como lugares de manifestação, não haviam sido ocupadas pela direita desde 1964. Algumas semanas antes do golpe militar, aconteceu a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Essa tinha sido a última vez que a direita dominou as ruas brasileiras. Depois do golpe militar, as grandes manifestações de 1968 são de esquerda, as grandes manifestações dos anos 1970 são contra a ditadura militar, as greves do ABC, o movimento das Diretas Já, as manifestações do MST nos anos 1990. São 50 anos em que a esquerda controla as ruas e deixa de controlar em 2015. Naquele momento, Bolsonaro não era uma grande liderança da direita.
Quando explodem as manifestações contra a Dilma, o Bolsonaro ainda é uma figura irrelevante. Quem era relevante em Brasília do ponto de vista da extrema direita era o Marco Feliciano e o Malafaia, por exemplo. Esses eram os chefes da extrema direita em Brasília entre 2014 e 2015. O Bolsonaro foi o cara que ficou na porta batendo boca com os militantes do PSOL no dia da posse do Marco Feliciano na Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Esse é o nível. E aquelas massas verde-amarelas estavam zanzando em busca de um líder a quem elas pudessem abraçar. Eles não queriam mais o PSDB. Essa busca dura mais de 18 meses. Enquanto está acontecendo aquilo nas ruas, o Bolsonaro vai gestando com seus filhos e aqueles ex-alunos de Olavo de Carvalho o seu discurso.
Em 2016, ele deu uma entrevista para um youtuber chamado Nando Moura, que era um cara que estava falando para 3 milhões de pessoas. A esquerda não tinha a menor noção de que aquele ecossistema estava se formando na internet, porque a internet de esquerda navegava em outros espaços, no Twitter, no Tumblr etc. E o único parlamentar a quem aquelas massas estavam dispostos abraçar era esse figura irrelevante, corporativista, há 28 anos no parlamento sem aprovar nada e que tinha um histórico de declarações misóginas e homofóbicas em particular. Esse caldo de uma linguagem agressiva, rápida, jovem e muito contagiosa era uma realidade muito pouco conhecida pelas ciências humanas sociais brasileiras e pela esquerda. E, em 2016, é o Bolsonaro que de repente rompe como a cara desse fenômeno.
O Bolsonaro surge como o antissistema, correto?
O Bolsonaro entra na eleição de 2018 em uma posição privilegiada, porque ele passa a representar a possibilidade de antagonizar, ele passa a representar a possibilidade de ser contra, ser contra qualquer coisa. Ele passa a representar o discurso anti sistema. O que, no fundo, é uma grande manipulação, porque o Bolsonaro é parte desse sistema, ele se enriqueceu com esse sistema, ele representa os piores vícios desse sistema. Ele não é anti sistema. Mas por uma conjunção particular de fatores, ele chega em 2018 com essa condição de ser contra tudo do que está aí. E aí naquele momento, com a quebra do sistema de administração de antagonismos, o desgaste do PT depois da Lava Jato, ele capitalizou com méritos uma circunstância que não foi ele que criou, na qual ele não tinha mérito nenhum.
Como a prisão do Lula se encaixa nesse processo pós Junho de 2013?
O que é curioso no processo todo que levou à prisão do Lula é que o petismo se viu em condições muito precárias discursivamente, porque o argumento jurídico nunca foi muito protagônico durante o governo do PT. A resposta da coalizão governante quando enfrentada a críticas como a construção da usina de Belo Monte, por exemplo, era a de que eles tinham ganhado a eleição, de que o problema era político, de que formalismo jurídico não importava, que aquilo era legalismo.
O PT passa a recorrer ao discurso jurídico no momento que começa a perder o jogo político Ou seja, a Dilma não cometeu crime de responsabilidade, a culpabilidade do Lula não foi provada. Todas essas coisas são verdadeiras, mas elas não importam como explicação do que aconteceu no jogo político. O que aconteceu no jogo político foi um tombo para o qual a coalizão petista deu a sua própria contribuição. Por exemplo, fomentando a autonomia e o muito bom financiamento do Ministério Público e da Polícia Federal.
Então, a prisão do Lula combina isso, mas ela combina também uma espécie de xeque-mate da coalizão lavajatista. Ela chega ao ponto máximo e, a partir daquele momento, ela tem que se justificar. Ela tem que justificar a prisão do Lula, tem que justificar sua existência, esse discurso meio quixotesco de combate à corrupção.
Dez anos depois do turbilhão de Junho de 2013, como o senhor vê o retorno de Lula ao poder?
É um retorno diferente, porque é um Lula diferente. É um Lula que já não tem como administrar esses opostos, porque a sociedade brasileira se esgarçou de tal maneira que ele não tem mais como trazer esses dois discursos para o interior da sua colisão. Mas o Lula e o Bolsonaro se retroalimentam de maneira indiscutível. Por exemplo, é sabido que o PT é o único partido brasileiro com as taxas de identificação partidária altas acima de 20%. No final do governo Bolsonaro, em novembro de 2022, essa taxa era 28%, que é o seu cume histórico. Então o PT não cometeu o erro de insuflar a candidatura do Bolsonaro e não agredi-lo no primeiro turno de 2018. Ele acertou. Eles sabiam que o governo Bolsonaro seria péssimo para o Brasil, mas seria excelente para o PT. E não existe nada que a coalizão bolsonarista queira mais do que enfrentar uma coalizão petista puro sangue na eleição de 2026.