Um dos pontos mais polêmicos da reforma tributária, que foi aprovada na Câmara dos Deputados e que seguiu para análise no Senado, é a criação de um órgão que vai decidir como será a divisão de recursos entre estados e municípios. Os critérios de composição do Conselho Federativo, responsável por centralizar a arrecadação do futuro Imposto sobre Valor Agregado (IVA), preocupa prefeitos e governadores que temem perder autonomia. O colegiado será a instância máxima responsável por gerir o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). O tributo será criado pela reforma para substituir o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que é um tributo estadual, e o Imposto sobre Serviços (ISS), tributo municipal.
De última hora, a Câmara dos Deputados acabou acatando um pedido do governador paulista, Tarcísio de Freitas (Republicanos), junto a outros governadores das regiões Sul e Sudeste, para incluir a regra que prevê que o grupo de estados vencedores em deliberações precisará representar 60% da população brasileira. O critério, no entanto, não agradou boa parte dos estados que sentem que foram passados para trás. Caso a maioria da população esteja com o grupo perdedor, esse poderá ter poder de veto. Dessa forma, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro teriam sempre a preferência em decisões.
De acordo com o texto aprovado na Câmara, os 27 estados poderão indicar 27 representantes. O conjunto dos 5.568 municípios poderá indicar 27 membros, sendo 14 representantes com base nos votos de cada cidade, com valor igual para todos. E 13 representantes com base nos votos de cada município ponderados pelas respectivas populações.
Na perspectiva de parlamentares, a divisão acabou elevando o poder das regiões Sul e Sudeste. Além do conselho, a Câmara ainda retirou da proposta de emenda à Constituição (PEC) o artigo 19, que indicava a prorrogação de benefícios para indústrias das regiões Norte e Nordeste até 2032. O dispositivo também prorrogava benefícios para fabricantes de veículos das duas regiões e do Centro-Oeste, que demonstrou insatisfação. Esses pontos devem inflamar o conflito entre os estados na disputa no Senado. A expectativa é de que os critérios de composição do conselho sejam revistos, pois diferentemente da Câmara, onde o número de deputados é proporcional à população dos estados, o Senado tem três representantes para cada ente da federação, igualando a tomada de decisão.
Governadores que se sentem prejudicados, como o de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), contam com o Senado para azeitar o texto. Único dos 27 chefes do Executivo nos estados que seguiu com sua posição radical contra a reforma até o fim, Caiado afirmou que os critérios de composição do colegiado são “uma afronta” ao pacto federativo, conjunto de regras criadas para dividir as competências e organizar o funcionamento do Estado brasileiro.
Para o governador goiano, a regra cria uma divisão definitiva do país e ele disse estar disposto a ir contra a determinação até o fim. “O novo texto da reforma prevê que quem vai mandar no Conselho Federativo são os estados de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, que detém o maior número de habitantes. Se isso for aprovado [no Senado também], irei entrar com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para impedir esse completo desatino ao pacto federativo”, declarou.
Caiado enfatizou: “Não podemos admitir que os estados sejam divididos entre alto e baixo clero, onde os ‘melhores’ decidem como será feita a divisão dos recursos destinados aos demais. Isso é uma excrescência, cria uma divisão definitiva do Brasil. Um completo absurdo.”
A expectativa é de que a tramitação no Senado seja mais lenta. O líder do governo no Congresso Nacional, senador Randolfe Rodrigues (AP), estima que a votação ocorra até novembro. Senadores já sinalizaram que pretendem pedir estimativas de impacto da reforma, analisar o saldo para estados e municípios, e imprimir seu próprio ritmo às discussões do texto aprovado pela Câmara. Líderes consideram que a proposta é positiva em linhas gerais, mas avaliam que nem todos os deputados sabiam exatamente o que estava sendo votado depois dos últimos acordos.
O senador Izalci Lucas (PSDB-DF) chegou a mencionar a criação de um grupo de trabalho na Comissão de Assuntos Econômicos, aos moldes do que foi feito na Câmara, mas o martelo não está batido. A própria ministra do Planejamento e Orçamento, a ex-senadora Simone Tebet (MDB), afirmou que o Senado “vai precisar um pouco mais de tempo” e que, conhecendo a Casa, todos os prazos regimentais serão utilizados.
Ao comemorar a aprovação da pauta, Simone Tebet reconheceu que a proposta sempre teve “pedras no caminho”, como o pacto federativo. “Eu estive no Senado por oito anos, sei o que pesa e onde ficam os problemas. Nós discutimos isso por oito anos e não conseguimos avançar em relação a tributária”, contou.
AJUSTES FINOS
Simone Tebet avalia que alguns ajustes finos sobre o pacto ainda deverão ser realizados com os governadores no Senado: “Essa questão do pacto federativo já foi praticamente equacionada, ainda que não na sua inteireza pela Câmara dos Deputados. É até bom que se tenha esse tempo porque é uma reforma tão importante e é preciso que os 27 estados da federação brasileira estejam satisfeitos e seguros de que não terão perdas na sua arrecadação.”
Outros pontos importantes ainda poderão ter regulamentação posterior por meio de lei complementar, como os critérios de divisão dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FDR), que receberá aportes do governo federal para Estados e municípios. O repasse foi motivo de outro grande imbróglio durante as negociações com governadores.
A falta de consenso entre os estados fez com que o critério de repartição não entrasse no texto da PEC. Se houver acordo, a mudança pode ser feita no Senado. Caso contrário, a regulamentação fica para lei complementar. A União se comprometeu a bancar o fundo com aporte de R$ 8 bilhões em 2029 e elevação gradual, até chegar a R$ 40 bilhões a partir de 2033, em valores corrigidos pela inflação.