Trinta e cinco minutos. A julgar pela rapidez com que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, reconheceu a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de 2022, a relação entre os dois países prometia entusiasmo e entrosamento.
A mensagem pública da Casa Branca ainda na noite do domingo do pleito era também o desfecho da estratégia que os americanos adotaram ao longo dos meses que antecederam a eleição brasileira.
Seja por meio de diplomatas, de autoridades militares, de enviados da Casa Branca ou até mesmo do chefe da CIA (Central Intelligence Agency), eles expressaram apoio às instituições democráticas do Brasil e sinalizaram a militares e civis brasileiros que nenhuma ruptura institucional contaria com o apoio dos EUA. E esperavam que o comportamento geraria conexão, e até mesmo gratidão, do novo governo brasileiro.
Até por isso, os americanos demonstraram confusão e frustração quando, em diferentes ocasiões nos últimos seis meses, foram também confrontados com declarações duras de Lula (veja exemplos abaixo). Onde alguns analistas e diplomatas em Washington ouviram ecos de antiamericanismo, a diplomacia brasileira e outros especialistas argumentam haver independência, busca por multipolaridade e até mesmo resquícios de uma desconfiança histórica.
"É claro que existem ressentimentos históricos e questões ideológicas, mas o que alguns chamariam hoje de 'antiamericanismo' parece mais uma questão de senso de oportunidade no contexto de um mundo com novos líderes (leia-se, China), do que qualquer outra coisa", diz Fernanda Magnotta, professora de Relações Internacionais na FAAP. "Eu resumiria o nosso antiamericanismo como um mix de agir com o cérebro e agir com o fígado. Bastante cérebro e pitadas de fígado", afirma.Já Ryan Berg, diretor do programa Américas do Center for Strategic & International Studies, vê o governo Biden numa armadilha. “Eles (governo Biden) pintaram Lula como um democrata salvador e agora estão presos a isso. Lula está obviamente contrariando interesses americanos, mas não podemos criticá-lo como normalmente faríamos, por todo o endosso que foi dado", disse Berg à BBC News Brasil.
"E era bastante óbvio de saída que Celso Amorim não era o maior fã dos EUA”, segue ele, citando o ex-chanceler e assessor especial de Lula.
Seis intensos meses
Por dizer que os EUA deveriam “parar de incentivar a guerra” na Ucrânia, Lula foi acusado por John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, de “papagaiar” o discurso sino-russo.Ao receber o líder venezuelano Nicolás Maduro em Brasília, o brasileiro argumentou que havia “uma narrativa” sobre as condições não democráticas da Venezuela, declaração recebida pelos americanos como crítica à atuação deles na região.
E ao expressar a intenção de desalojar o dólar da posição de moeda de transações internacionais ("Quem é que decidiu que era o dólar a moeda?"), Lula foi visto como entusiasta da redução do protagonismo global americano.
Embora tenha se alinhado repetidas vezes aos EUA em condenar a invasão russa no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil contrariou os americanos e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ao se recusar a transferir armamentos à Ucrânia, um pedido primeiro feito a Lula pelo chanceler alemão Olaf Scholz em janeiro.
O governo brasileiro também permitiu, no começo do ano, a atracagem de navios militares iranianos sob sanção americana em um porto do Rio de Janeiro, o que levou congressistas mais exaltados a sugerir que a gestão Biden deveria estender ao Brasil as sanções (o que não aconteceu).
A gestão Lula também não endossou o texto final da Cúpula da Democracia de Biden, em março, que trazia uma condenação à invasão da Rússia pela Ucrânia. E aos olhos dos americanos, Lula precisou ser cobrado a enviar um emissário brasileiro à Kiev, após remeter Celso Amorim para um encontro com Vladimir Putin em Moscou — o próprio Amorim acabou indo à Ucrânia depois.
Em abril, o jornal americano Washington Post listou as rusgas em um texto intitulado: “O Ocidente acreditou que Lula seria um parceiro. Mas ele tinha seus próprios planos”.
"A política externa brasileira não é anti-ninguém, é pró Brasil", responde a nova embaixadora brasileira em Washington, Maria Luiza Viotti, ao ser questionada pela BBC News Brasil sobre os que apontam possível antiamericanismo na política externa brasileira. “E o Brasil valoriza as relações com os EUA (...). O presidente Lula deu demonstração clara nesse sentido ao visitar os EUA apenas quarenta dias após ter tomado posse”, completa.
Viotti relembra que, na tradição diplomática brasileira, a regra foi uma postura independente em relação a superpotências. Getúlio Vargas, por exemplo, mantinha relações aquecidas com a Alemanha, de Adolf Hitler, e a Itália, de Benito Mussolini, logo antes de aderir à Segunda Guerra ao lado dos aliados. Jânio Quadros e João Goulart fizeram fortes aproximações com a China, mesmo contra os interesses americanos.
Nem mesmo o regime militar brasileiro se alinhou por completo aos EUA, salvo no início, sob a batuta de Castelo Branco: manteve relações diplomáticas com a União Soviética — apesar de o golpe de 1964 ter sido patrocinado pelos americanos.
Exceções à trajetória foram o governo Dutra (1946-1951), no pós-guerra imediato, e, mais recentemente, o período Jair Bolsonaro - Donald Trump, em que o Brasil experimentou um alinhamento automático em relação aos americanos. Em 2019, pela primeira vez na história, o Brasil votou contra a condenação ao embargo americano em Cuba, ao lado apenas de EUA e Israel (em um total de 193 países).
"Hoje Brasil e EUA se reconhecem como duas grandes democracias, que compartilham valores e um considerável patrimônio de interesses comuns, de presença recíproca e de cooperação", diz Viotti.
O que querem e o que oferecem os americanos?
Publicamente, a diplomacia americana nega ver sinais de antiamericanismo em Lula e calibra suas declarações entre críticas duras e palavras de apreço ao aliado.Questionado diretamente sobre o assunto pela BBC News Brasil, o secretário adjunto para o Hemisfério Ocidental, Brian Nichols, afirmou que “Lula é um grande aliado em tantas áreas”.
“Nem sempre vamos concordar em tudo, mas o mundo é melhor com o Brasil nele”, disse Nichols à BBC News Brasil em junho.
Posicionamento que alguns analistas, especialmente os americanos, veem com ceticismo.
"Acho que o governo Biden lida bem com a situação, mas há pessoas no governo americano muito desapontadas, sugerindo que Lula seja um falso amigo. Não concordo completamente com isso, mas há elementos de verdade", afirma Brian Winter, editor da revista americana America’s Quarterly.
“Lula e Celso Amorim acreditam em uma ordem multipolar, com vários países poderosos, e que isso seria melhor para o Brasil. E eu entendo e respeito isso. Não acho que Lula odeie os EUA, mas, na prática, ele claramente quer ver os americanos não tão poderosos quanto são hoje”, resume Winter, que conclui: “Todo mundo em Washington percebe que ele torce contra os EUA. Então, é constrangedor”.
Para analisar a equação da relação bilateral, é preciso colocar outro elemento no xadrez: a China. Os EUA assistem ao avanço contínuo da influência de Pequim, sua maior antagonista global, na América Latina na última década, seja por meio do comércio ou por investimento direto, e o Brasil é o principal parceiro chinês em ambos os quesitos.
Já são 21 os países latinos ou caribenhos a assinarem o acordo de desenvolvimento econômico chinês conhecido como Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês). E embora o Brasil não tenha assinado o BRI, tampouco é signatário do Parceria das Américas para a Prosperidade Econômica, a tentativa de resposta dos EUA ao BRI que patina em injetar recursos na região.
O Brasil também tem enviado recados de que não pretende ter de escolher entre China e EUA, em rota de tensão crescente, em temas como a tecnologia de semicondutores.
"Não temos nenhuma preferência por uma fábrica de semicondutores chinesa. Mas se eles (chineses) oferecerem boas condições, não vejo porque a gente recusar. Não temos medo do lobo mau", disse Celso Amorim à Reuters.
Neste contexto, o Brasil é um país com o qual os EUA precisariam aprofundar relações. A visita de Lula à capital americana, em fevereiro, poderia ter servido para avançar, mas organizada em clima de correria, frustrou o presidente brasileiro, que esperava ser recebido para uma visita de Estado, não apenas de trabalho, e ter a oportunidade de falar ao Congresso dos EUA, o que não aconteceu. Em comparação, o líder indiano Narendra Modi, cujo país se abstém de endossar as críticas americanas à invasão da Rússia à Ucrânia na ONU, foi recebido recentemente com a solenidade que Lula não recebeu.
Ainda durante a visita do brasileiro, em fevereiro, os americanos ofereceram seu ingresso ao Fundo Amazônia, algo desejado e celebrado pelo Brasil. Mas o baixo valor do aporte inicialmente disponibilizado, US$50 milhões, causou mal-estar no lado brasileiro a ponto de ser excluído da declaração conjunta dos países. Meses depois, Biden anunciou a intenção de enviar US$ 500 milhões à Amazônia — remessa que o Congresso dos EUA ainda não aprovou.
Antes mesmo do pleito de 2022, no entanto, ao menos um diplomata americano ouvido reservadamente pela BBC News Brasil expressou preocupação com as simpatias de Lula a regimes como o cubano, o venezuelano e o nicaraguense. Embora a relação entre Bolsonaro e Biden fosse, na prática, inexistente, este diplomata dizia que os americanos apreciavam o modo como Bolsonaro alinhou o Brasil em temas ideológicos caros aos americanos e expressava desconfiança ao que seria a relação com Lula.
"Depois de 30 anos do fim da Guerra Fria, pessoas em Washington, republicanos e democratas, ainda acham difícil trabalhar com um país latino-americano que fica a meio caminho entre amigo e inimigo. Querem perguntar: 'Ei, Brasil, você é amigo ou não?' Ninguém pergunta isso à França, por exemplo", afirma Brian Winter.
Recentemente, Washington demonstrou insatisfação diante de iniciativas brasileiras para suavizar um texto crítico a violações de direitos humanos do governo de Daniel Ortega, na Nicarágua, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA).
“Lula tem amizade pessoal com todos os esquerdistas da América Latina. A razão pela qual o Brasil quis diluir a resolução da OEA sobre a Nicarágua é justamente a relação de Lula com Ortega. Eles se conheceram nos anos 80, relacionamentos são importantes e impactam a política, mesmo décadas depois. A outra parte disso é o Brasil tentando se posicionar para uma maior autonomia estratégica e, para isso, precisa manter os EUA a certa distância”, diz Berg, do programa Américas do Center for Strategic & International Studies.
Regionalmente, este não é um ponto isolado de discordância. Embora os americanos tenham dito publicamente que gostariam de ter com o Brasil um diálogo para promover eleições livres na Venezuela no ano que vem, as autoridades dos dois países não têm discutido o assunto. Em vez disso, há poucos dias, Lula se uniu ao presidente francês Emmanuel Macron para tratar o tema em uma reunião com representantes do governo e da oposição venezuelana.
Apesar da grande pressão de americanos para que o Brasil compusesse uma força militar para ser enviada ao Haiti, onde o país liderou por mais de uma década uma missão de paz da ONU, o governo Lula já os fez saber que não embarcará na proposta.
Interesses brasileiros e multipolaridade
Em um artigo para edição de maio/junho da publicação Foreign Affairs, o professor de Relações Internacionais da FGV Matias Spektor afirma que, ao evitar se alinhar com posicionamentos americanos na guerra da Ucrânia, por exemplo, países como o Brasil não estão sendo amorais ou acríticos, estão apenas mantendo necessária flexibilidade de compromissos para se adaptar a possíveis novos cenários geopolíticos.
“Os países do Sul global estão preparados para abrir caminho em meados do século 21. Eles se protegem não apenas para obter concessões materiais, mas também para elevar seu status, e abraçam a multipolaridade como uma oportunidade de subir na ordem internacional. Se quiser permanecer em primeiro lugar entre as grandes potências em um mundo multipolar, os Estados Unidos devem enfrentar o Sul global em seus próprios termos”, conclui Spektor.
É exatamente isso o que dizem três diplomatas brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil sobre o assunto.
Segundo eles, ao retomar a proximidade com a Venezuela em termos que desagradam os americanos, Lula está cuidando do que interessa ao país: manter boas relações com vizinho de fronteira e reaver dinheiro de empréstimo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para o país.
Os próprios americanos, recordam eles, flexibilizaram sanções ao petróleo venezuelano quando isso atendia ao interesse de baixar o preço da commodity, diante da guerra na Ucrânia.
Do mesmo modo, ao advogar por transações em outras moedas que não o dólar, Lula estaria buscando facilitar trocas comerciais com qualquer parceiro, já que o Brasil não está em condição de escolher de quem comprar ou para quem vender.
Com os EUA, interessa aos brasileiros tocar as agendas em comum: democracia, meio ambiente, comércio bilateral.
"Toda política externa tem componente ideológico, tem motivações normativas, morais. Sempre tem uma visão de mundo ali. Mas é preciso olhar para a política externa a partir de indicadores objetivos: atração de investimentos, facilitação de fluxo de pessoas, atração de eventos de porte ao país. Isso é o que interessa", argumenta Dawisson Belém Lopes, professor de Política Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais.
Segundo Belém Lopes, se quer liderar a região e exercer protagonismo global, Lula tem que se comportar de maneira distinta da defendida pelo presidente do Chile, Gabriel Boric, que não refreia críticas às esquerdas na América Latina e expressou forte apoio à Ucrânia. Esta semana, Lula disse que Boric é jovem e apressado em seus posicionamentos.
"O Brasil tem que lidar com Maduro e Ortega. O Brasil é metade da América do Sul, tem que lidar com muito mais gente do que o Chile, precisa se relacionar com muitos se quiser liderar a região, o que é a nossa proposta. Para a gente conseguir ter aspirações globais, a gente tem que se cacifar como líder regional", afirma Belém Lopes, que completa: "Tem custos? Tem. A forma como Lula faz é a melhor? Não sei. Mas certamente é melhor do que havia antes".
Há quem, no entanto, veja riscos na estratégia de Lula até agora.
"O grande projeto diplomático de uma nova 'ordem mundial' de Lula vai causar problemas para o Brasil nas suas relações com os países ocidentais, com repercussões sobre interesses militares em equipamento e cooperação", afirma o embaixador aposentado Paulo Roberto de Almeida.
Recentemente a Alemanha bloqueou a exportação para as Filipinas dos tanques Guarani, fabricados pelo Brasil, com componentes alemães. A negativa veio depois que o Brasil se recusou a repassar munições para a Alemanha que chegariam à Ucrânia. A justificativa oficial alemã foi a de que o governo filipino comete violações aos Direitos Humanos. Produtos da Embraer também podem ser afetados nesta dinâmica.
Os americanos têm expressado que, embora defendam uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, pleito histórico do Brasil, não endossarão uma eventual candidatura brasileira. Para o embaixador Rubens Ricupero, as ações de Lula podem reduzir a disposição dos americanos de cooperar em temas centrais para o Brasil, como o meio ambiente e a democracia. Ele não vê vantagens estratégicas no comportamento do presidente.
"Só posso atribuir isso ao ressentimento (alguns dizem que Lula culpa em parte os americanos pela Lava Jato e sua condenação) e, em parte, ao cálculo, com vistas talvez a agradar setores mais radicais do PT e de apoiadores acaso insatisfeitos com a política econômica e outras orientações do governo", diz Ricupero, recordando a aprovação recente do arcabouço fiscal na Câmara, que não contou com o apoio de setores da esquerda que compõem a base do governo Lula.
"Não acho que essa linha vá gerar apoio interno, pois a opinião pública brasileira em geral é simpática aos EUA fora os setores de esquerda e nacionalistas mais radicais", afirma o embaixador.
Desconfianças recentes e históricas
Ricupero não é o único a citar o histórico da Operação Lava Jato para explicar possíveis desconfianças de Lula com os EUA. Houve colaboração formal e informal do Departamento de Justiça dos EUA com investigadores e autoridades brasileiras no caso que levou Lula à prisão e à inelegibilidade em 2018. Os processos contra Lula acabaram anulados pelo Supremo Tribunal Federal.
“Não vejo Lula como antiamericano. Eu acho que o que se percebe por parte dele é uma desconfiança, mas não hostilidade. Isso tem a ver primeiramente com a sensação pessoal do presidente de que Washington — especialmente o Departamento de Justiça — teria contribuído de alguma forma para sua prisão”, diz André Pagliarini, professor de História do Hampden-Sydney College, na Virgínia, e colaborador do Washington Brazil Office, organização que faz a interface entre sociedade civil brasileira e o Congresso americano.
Para ilustrar o que considera um “trauma” de Lula com os americanos, Pagliarini conta uma anedota.
“Há dois anos, conversei com uma pessoa do círculo de Lula que me contou da tentativa de planejar uma viagem aos EUA (ainda antes das eleições brasileiras). Mas parte deles temia que Lula seria preso ao descer do avião. Eu e outros falamos que isso era um absurdo, não aconteceria de jeito nenhum. Eles não confiavam e a visita não rolou. Sempre achei isso emblemático e acho que ajuda a explicar uma certa visão equivocada sobre os EUA hoje”, diz Pagliarini.
Em junho de 2021, a BBC News Brasil revelou que 23 deputados democratas pediram ao governo Biden que tornasse públicas as informações sobre cooperações na investigação. Dois anos mais tarde, o Departamento de Justiça jamais respondeu aos deputados. A demanda tinha sido feita em uma articulação com a sociedade civil brasileira, representada pelo Washington Brasil Office na capital americana.
Se o governo Biden não tem colaborado pra esclarecer o passado recente das relações entre o Departamento de Justiça e as autoridades brasileiras, coube ao próprio Joe Biden, então vice de Obama, realizar uma das maiores aberturas de arquivos americanos sobre o Brasil, em 2014.
Em visita a Brasília, Biden entregou pessoalmente à então presidente Dilma Rousseff 43 documentos produzidos por autoridades americanas entre os anos de 1967 e 1977 sobre censura, tortura e assassinatos cometidos pelo regime militar do Brasil. O material abasteceu a Comissão Nacional da Verdade, estabelecida no governo Dilma.
O gesto dos americanos, no entanto, não era desinteressado. Era, na verdade, uma tentativa de reaquecer relações abaladas depois que se tornou pública a espionagem do país contra Dilma. Vazamentos de documentos diplomáticos americanos pelo site Wikileaks, em 2013, apontavam que a Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) tinha grampeado até mesmo a linha telefônica usada pela presidente no avião presidencial. Como retaliação, Dilma cancelou uma visita de Estado que faria a Barack Obama em Washington D.C.
Em julho, o jornal El País revelou uma nova suposta espionagem levada a cabo por uma agência espanhola a pedido dos EUA, em 2018, e que tinha como alvo reuniões do ex-presidente do Equador Rafael Correa (2007-2017) com os ex-presidentes da Argentina, Brasil e Uruguai, Cristina Fernández de Kirchner , Lula, Dilma e José Mujica, em 2018.
Nos últimos dias, deputados democratas da ala à esquerda do partido tentaram passar uma emenda legislativa para forçar os EUA a abrir supostos arquivos adicionais sobre a ditadura brasileira. A emenda não foi aprovada. Uma fonte do Departamento de Estado dos EUA especializada em América Latina disse à BBC News Brasil que já não há material relevante disponível ainda sob sigilo no arquivo americano.
“O ápice do antiamericanismo no Brasil veio com o golpe militar, que completará 60 anos no ano que vem. Temos que lembrar que os EUA participaram ativamente da derrubada do governo João Goulart, o que gerou uma profunda desconfiança, justificada, nos americanos a partir daí. Os americanos foram nefastos em 1964”, afirma o historiador James Green, da Brown University, um dos maiores especialistas americanos em ditadura militar no Brasil.
O golpe no Brasil foi apenas uma das ações dos americanos na região durante a Guerra Fria que mobilizaram sentimentos contra os EUA não só nas esquerdas, mas nas lideranças políticas latinas em geral.
No período, os americanos tentaram, com maior ou menor sucesso, suprimir revoluções ou governos democráticos socialistas na região, em sua disputa por hegemonia econômica e geopolítica com a socialista União Soviética.
Da Cuba de Fidel Castro ao Chile de Salvador Allende, a interferência política americana em assuntos domésticos na região era palpável no século 20 e os governos americanos também sabiam e acobertaram violações de direitos humanos cometidas sistematicamente pelo regime brasileiro (e também pelos demais) contra seus opositores políticos e chegaram a oferecer treinamento para militares brasileiros com aulas teóricas e práticas de técnicas de tortura e de estratégias de combate a guerrilhas.
Essas informações foram descritas pelos próprios americanos em documentos oficiais tornados públicos nos últimos anos.
“Historicamente, o antiamericanismo passou a ser uma força enorme e capaz de aglutinar a esquerda da América Latina, animar a militância, gerar identidade ideológica. O problema é que ele faz cada vez menos sentido concreta e estrategicamente”, afirma Felipe Krause, professor do Centro de Estudos Latino Americanos da Universidade Cambridge.
Segundo Krause, a partir da década de 1990, progressivamente, os americanos entenderam que a estabilidade da região era mais facilmente atingida se os ritos democráticos fossem respeitados em cada país — o que reduziu o intervencionismo.
Além disso, setores da esquerda latina aumentaram sua interlocução com a sociedade civil americana, que adotou um eficiente sistema de pressão sobre os congressistas e a própria Casa Branca. Em certa medida, foi exatamente isso o que se viu nas repetidas manifestações críticas da gestão Biden e do parlamento americano à política ambiental e indigenista do governo de Jair Bolsonaro, ou na estratégia americana de apoio à democracia do Brasil.
Mas enquanto parte da esquerda latina passou a atuar por dentro da política dos EUA, outra segue recusando iniciativas americanas, mesmo quando os interesses são coincidentes.
“Uma parte da esquerda brasileira não consegue atualizar o quadro geopolítico. Desconfia até mesmo dos supostos reais interesses de Biden ao defender a democracia no Brasil, como se fosse uma fachada para controlar o país, tomar a Amazônia. Quando a explicação é muito simples, os americanos passaram por algo semelhante com Trump e conseguem entender a gravidade da situação e ter empatia”, diz James Green.