As roupas usadas pela primeira-dama, a socióloga Janja Lula da Silva, 57 anos, são sempre alvo de críticas, para o bem e para o mal, da sociedade, um crivo pelo qual não passa o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou qualquer outro homem que ocupa cargos no poder. Econômica nas entrevistas concedidas à imprensa, Janja parece não se importar com as cobranças e segue usando a moda para marcar posição e não meramente como uma indumentária funcional.
Caso, por exemplo, do vestido vermelho, feito sob medida para ela pela estilista brasiliense Letícia Gonzaga, usado no desfile de Sete de Setembro e que teve repercussão nacional, um contraponto ao verde e amarelo das cores da bandeira nacional, apropriadas pela direita como símbolo, com a chegada, em 2019, ao poder do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
todo na cor laranja, na posse do rei Charles III, da Inglaterra, país onde a sobriedade prevalece nas vestimentas. A cor, de acordo com explicação dada por ela mesmo em suas redes sociais, foi uma referência à campanha “Faça Bonito”, contra a exploração sexual de crianças e adolescentes. “E que vocês sabem que esse é um tema que eu trabalho muito”, explicou a socióloga.
Janja também “causou” ao aparecer com um vestido longo, da marca mineira Printing, No desembarque, em Joanesburgo, na África do Sul, em agosto passado, Janja usava um blazer com estampa afro, feito pela marca baiana Menino Rei, que tem como proposta enaltecer a “cultural ancestral” e celebrar a valorização da raça negra.
Em junho, na data da estreia nacional do filme “Barbie”, que despertou a fúria conservadora, que o acusou de tentar destruir o papel da mulher na família, Janja, assumidamente feminista, apareceu ao lado da ministra da Saúde, Nísia Trindade, usando uma camisa rosa choque.
Janja tem usado com frequência saias feitas com tecidos recicláveis, camisetas de movimentos feministas, como a Marcha das Margaridas, ou pró-vacinação, e tênis em eventos internacionais e solenidades tidas como mais formais. Em entrevista a revista Vogue, Janja chegou a decretar “instaurada a democracia do tênis”.
A primeira-dama também é vista com frequência com uma camisa de seda que homenageia Maria Bonita, da marca paulista Misci, a primeira mulher a ingressar no principal bando de cangaceiros do Nordeste, em meados de 1930, ícone feminista no Nordeste. Essa camisa desapareceu das araras após ser usada por ela pela primeira vez em público. “Fiz questão de usá-la porque carregava um simbolismo, tanto da história de vida do estilista como da cultura popular, da produção da seda nacional, que é usada na França e a gente nem sabe", afirmou Janja nessa mesma entrevista a Vogue.
Mas o auge das críticas às suas roupas foi a posse, em 1º de janeiro, quando Janja, quebrando todos os padrões de vestimenta impostos às mulheres que a antecederam no cargo de primeira-dama, subiu a rampa do Planalto usando calça e terno estilizados. Nunca antes na história do país, uma primeira-dama usou um traje tido como tipicamente masculino, em uma ocasião como essa. Além de descartar um recatado vestido, seu terninho foi tingido naturalmente com caju e bordado em palhas por mulheres do semiárido nordestino, região que teve participação decisiva na vitória de Lula nas eleições passadas.
Moda nacional valorizada
Para o estilista mineiro Ronaldo Fraga, um dos precursores do uso da roupa no país como forma de expressão político-cultural, a moda é um dos documentos mais eficientes do nosso tempo do registro da passagem do homem pela terra. É também, segundo ele, suporte para a mídia principal que é nosso corpo, “que ninguém manda”. “O que você põe sobre esse corpo, você comunica, você seduz, você se coloca como você se vê e deseja o mundo”, diz Ronaldo Fraga.
“A Janja sabe seu papel e ocupa esse espaço muito bem, sabe que os olhos estão sob suas escolhas, então acho perfeito ela usar estilistas brasileiros, e marcas e roupas de alguma forma alinhadas com a visão de mundo dela”, analisa. Em sua avaliação, a roupa mais impactante usada até hoje por Janja foi seu vestido de casamento, bordado também pelas bordadeiras de Seridó, as mesmas que participaram da confecção do terno da posse.
“O que não falta no Brasil são saberes e fazeres que precisam ser aplicados à moda para que pessoas afirmem sua cultura, gerem renda, para que esse saber não morra nas mãos delas e passe de pais para filhos e que cada vez mais novos designers saibam da importância econômica, cultural e política de uma moda feita por mãos brasileiras”, defende o estilista.
Janja ainda não usou uma roupa de Fraga, mas ele gostaria que ela vestisse alguma peça bordada pelas mulheres atingidas pelo rompimento da barragem de Mariana, um dos maiores crimes ambientais do país, ou pelas rendeiras da renda renascença da Paraíba.
Para a jornalista, professora universitária e pesquisadora em moda, arte e política Valéria Said Tótaro, a moda ultrapassa sua dimensão funcional como roupa para muitas vezes expressar identidade, comportamento, afetividade e ideologias. “Por isso o ato de se vestir também é político”, afirma a pesquisadora em moda. Segundo ela, o protagonismo de Janja na moda torna mais visíveis temas relacionados às expressões culturais brasileiras de diferentes regiões, povos originários, afrodescendentes e estrangeiros.
Na avaliação de Valéria Said, Janja também tem mostrado interesse em valorizar a moda nacional, o que é importante para o setor, principalmente em eventos internacionais. “Quando Janja se veste de marcas brasileiras, principalmente em eventos oficiais no exterior, há um movimento político com foco na promoção da imagem da moda nacional”, defende.
Para ela, a decisão de usar vermelho no Sete de Setembro, em um país polarizado até pelas cores, pode ser interpretada como a volta da esquerda ao poder com suas pautas sociais, em oposição à agenda do governo anterior, “que se apropriou do verde e do amarelo como elementos de uma ideologia patriótica”.
Já a calça, analisa Said, “transcende a crítica puramente estética, ao romper com o protocolo de não usar saia ou vestido, nos termos de um dress-code para primeiras-damas, seguido à risca pelas antecessoras”.
O uso que a primeira-dama tem feito da moda, avalia Said, pode ser interpretado como uma “provocação político-simbólica” de que seu papel, no governo, como, de fato, tem acontecido, será ativo e não meramente decorativo.
A primeira-dama também é vista com frequência com uma camisa de seda que homenageia Maria Bonita (da marca paulista Misci), a primeira mulher a ingressar no principal bando de cangaceiros do Nordeste, em meados de 1930, um ícone feminista na região