A retomada do julgamento do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quarta-feira (20/9) foi acompanhada por protestos de povos originários em diferentes pontos do país. Onde há a maior prevalência de indígenas no Sudeste do Brasil não foi diferente: os Xakriabá bloquearam a BR-135 entre Itacarambi e São João das Missões, no Norte de Minas, pedindo que os ministros não aprovem a tese que coloca em risco parte dos territórios retomados na região e coloca em risco o avanço pela ocupação de mais terras antes habitadas pelos indígenas.
Com cerca de 54 mil hectares, a reserva Xakriabá fica no município de São João das Missões, onde há a maior concentração de indígenas em relação à população total de todo o Sudeste brasileiro. De acordo com o Censo Indígena divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em agosto, cerca de 80% dos habitantes da cidade são indígenas. São cerca de 10 mil xakriabás vivendo no território.
terra dos Xakriabá foi demarcada em 1987, mas pontos específicos do território foram reavidos pelos indígenas após a Constituição Federal, por isso, há um temor de perda de direitos com uma eventual aprovação do marco temporal. A tese trata sobre uma limitação do direito dos indígenas às terras demarcadas ou disputadas até a promulgação da Constituição de 1988, delimitando que os direitos de demarcação se restrinjam às áreas ocupadas ou rm disputa até essa data.
A Lideranças indígenas ouvidas pelo Estado de Minas durante o protesto classificaram a data como um dos dias mais importantes para os povos originários nas últimas décadas. "Nós sabemos que se o marco temporal for aprovado, perderemos nosso direito da retomada da terra. O povo indígena é dono de toda essa terra, nós não aceitamos o marco temporal. É por isso que nos manifestamos. Não podemos viver sem nossa terra. Índio sem terra não é índio", afirma Alvinho, vice-cacique da aldeia Riacho do Brejo, à reportagem. O ato reuniu centenas de indígenas e fechou a rodovia a partir das 7h. O trecho tem pouco movimento de veículos e não houve engarrafamento.
Embora demarcada em 1987, antes da Constituição, há aldeias localizadas em terras homologadas posteriormente, como o terreno de Rancharia, oficialmente destinado aos Xakriabá em 2003. As aldeias de Morro Vermelho, Dizimeiro e Caraíbas, por exemplo, ainda estão em processo de demarcação, mas foram retomadas pelos indígenas em 2006, 2007 e 2013, respectivamente.
A atual Aldeia Tenda foi reocupada pelos povos originários no fim dos anos 1990. Durante os protestos, o líder da região, cacique Agenor, falou sobre o temor pelo risco sofrido pelas conquistas obtidas por seu povo. "Lidero uma comunidade com 248 famílias, 110 pessoas. A luta pela demarcação foi uma luta com muitas ameaças, ainda existem ameaças porque estamos no limite da terra demarcada. Nesse momento, temos uma preocupação que se essa lei for aprovada, corremos o risco de perder até o que foi demarcado e de não conseguir avançar até o Rio São Francisco".
A conquista da primeira demarcação, em 1987, se deu meses após uma chacina coordenada por um fazendeiro da região. Na ocasião, em ação com 15 homens armados, morreu Rosalino Gomes, em frente aos filhos. O atual cacique geral Xakriabá, Domingos Gomes era um dos que assistiu ao crime brutal.
Santília Gomes é sobrinha de Rosalino, viveu todos seus 58 anos de idade na terra Xakriabá onde criou 14 filhos e 22 netos. Ela conta como a saga pela terra original faz parte do cotidiano dos indígenas."A luta do nosso povo teve muito sangue e até hoje estamos brigando para ter nossa terra de volta para nossos netos, bisnetos, tataranetos. A terra é nossa mãe, por ela que nós lutamos, estamos firmes com nosso Deus Tupã e vamos vencer".
Retomada do Rio
Um dos atuais pleitos dos Xakriabá, a retomada do leito do Rio São Francisco. Conhecidos como "bons de remo", o povo ocupava originariamente o rio que corta o Norte de Minas e parte do Nordeste brasileiro, mas foi afastado por posseiros até onde hoje estão, a cerca de 40 km do curso d'água. Hoje, a maior parte da reserva Xakriabá sofre com a seca e depende de abastecimento por poços artesianos e caminhões-pipa, insuficientes para toda a demanda. O entendimento das lideranças é que a aprovação do marco temporal, além de colocar terras já demarcadas em risco, impede o avanço por mais direitos.
"Aqui estão as crianças, nossos velhos, a juventude, os caciques e as lideranças contra o marco temporal. Entendemos que esse é o marco da morte, querem acabar com nossas terras, nossas casas, nossos rios, nossas florestas. Nós somos o povo da água, mas não temos acesso ao rio, que é nosso pai. Somos hoje um povo órfão de pai, nossos temos a terra, que é nossa mãe, mas não temos um pai", disse à reportagem Wasady Xakriabá, 25, integrante da Articulação da Juventude Xakriabá.
A luta pela retomada do Velho Chico é recorrentemente alicerçada em um documento histórico da Coroa Portuguesa expedido em 1728. Trata-se de uma doação de terra aos Xakriabá feita em deferência ao apoio ao Estado em um conflito contra o povo Kayapó. O texto determinava o terreno dentro dos limites dos rios Itacarambi, Peruaçu e São Francisco. Ao EM, o cacique João, das aldeias de Vargem Grande e Caraíbas, destacou a argumentação histórica.
"O marco temporal quer dizer que o índio só tem direito de 1988 para cá e isso não pode acontecer. Temos direito a terra, o território que temos hoje é menos da metade do que foi doado em 1728", disse.