“Deixei meu sapatinho na janela do quintal/Papai Noel deixou/Meu presente de Natal/Como é que Papai Noel/Não se esquece de ninguém/Seja rico ou seja pobre/O velhinho sempre vem.” A canção natalina embalou a infância da professora Maria Nicolau do Carmo Lima. Ela conta que a tradição de colocar um sapatinho na janela na noite de Natal se fez presente em boa parte da sua juventude.
Para Maria Nicolau, esta época do ano remete às lembranças e momentos marcantes em sua vida, principalmente no âmago religioso. “Minha mãe tinha essa cultura religiosa. Quando dava meia-noite, íamos à missa e acendíamos velas. Era muito simples e simbólico, mas vivenciávamos a data de uma forma diferente e espiritual”, destaca.
Com o passar dos anos, o costume do sapatinho na janela foi se perdendo, mas a magia de estar em família se perpetuou. A fé e a alegria de estar com entes queridos fazem do Natal uma data de renovação para a professora. A oportunidade de reviver esses momentos continua a encher o consciente e a influenciar os hábitos nesta fase especial do ano, fazendo com que a tradição da união familiar se faça presente, com o marido, Sebastião Aluízio de Lima, seis filhos, três noras e quatro netos. “É só o primeiro pisca-pisca natalino começar a acender que o anseio de reunir a família para a ceia se inicia. Comida gostosa, orações e a esperança de um ano novo cheio de bons acontecimentos norteiam o mês de dezembro. Assim é o Natal na nossa família.”
Para Sebastião Aluízio, as celebrações são uma esperança a mais que a família ganha. “Os parentes vêm até a nossa casa e cria-se esse clima de fortalecimento e união entre nós”, frisa o aposentado. E alegria e festa é que não faltam. Na tarde do dia 25, o encontrão é na casa da dona Anita, mãe de Maria Nicolau, em que mais de 100 pessoas (entre irmãos, cunhados, sobrinhos, primos e filhos) se reúnem para comemorar a data.
As lições de amor que dona Anita sempre explorou dentro do seio familiar permitem proximidade cada vez maior entre todos. Maria Nicolau conta que a mãe sempre se vestia de Mamãe Noel, para a alegria de todos. Dentro do seu saco sempre tinha uma lembrancinha para cada um que a visitava, que ela fazia questão de entregar nas mãos de um por um. Agora com a saúde debilitada, a senhora acabou ficando de cama, porém, sua família demonstra o desejo de continuar a manter esse hábito que tanto os alegrava. “Vamos vesti-la de Mamãe Noel, como ela costumava fazer, e compramos algumas lembrancinhas para colocar no seu saco decorativo e entregar os presentes na frente dela, para que ela se sinta bem ao ver que vamos dar sequência à tradição iniciada por ela”, comenta a professora. “Em um mundo muito materializado, vivenciar esses momentos de acolhimento familiar ajuda-nos a viver para que a gente possa renascer”, completa Nicolau.
Sebastião lembra das tradições natalinas no tempo em que morava no interior. O pai criava porcos no fundo do quintal e era comum que, nessa data, se sacrificasse um animal para o preparado da ceia. A confraternização reunia vizinhos, famílias e amigos para comer iguarias vindas do porco, como linguiça, chouriço e a própria carne. “Hoje, mudou um pouco, os valores são diferentes. A TV e a internet transformaram algumas coisas”, lamenta. “Mas aquela alegria e fraternidade presentes na gente desde crianças é passada de geração em geração e continua com a mesma sensação de felicidade. É o mesmo abraço”, retrata o aposentado.
DISTÂNCIAS QUE APROXIMAM
O Natal da estudante e auxiliar administrativa Vitória Rocho é um dos poucos momentos do ano em que a família pode se reunir e estar 100% entregue à experiência natalina. A festividade é celebrada com sua mãe, o pai e a atual esposa. Ela conta que, no dia a dia, não é possível manter uma relação mais próxima, apesar de todos se darem muito bem. “Cada um tem seus compromissos e fica difícil juntar a família.”
A estudante pondera que família não é exatamente como se vê em comerciais de margarina e, muitas vezes, os efeitos de estar próximos dos parentes podem ser mais negativos do que positivos. “Mas quando se tem uma estrutura familiar amorosa, em que nos apoiamos uns nos outros, nos momentos em que pais e filhos estão juntos, por mais simples que sejam acabam marcando a memória”, afirma Vitória.
De acordo com ela, a perspectiva das festas e presentes faz da comemoração uma ‘folga’ da realidade cotidiana. “Quando o ano está acabando, a aura emocional faz com que acreditemos que deixamos os problemas para trás, confiando em uma perspectiva melhor dali pra frente”, pontua. O Natal acaba se transformando em algo mais especial pela reunião da família. “É como reforçar os laços que a distância, às vezes, enfraquece. Reunimo-nos, festejamos, trocamos histórias e passamos mais tempo juntos do que no resto do ano”, conta a estudante.
Assim, na noite de Natal, não podem faltar as comidas típicas e a troca de lembrancinhas para manter o simbolismo. “É uma celebração bem simples e breve, mas que aquece o coraçãozinho de todo mundo”, finaliza.
cinco perguntas para...
Edson Lago
psicólogo e professor de pós-graduação em medicina da faculdade Ipemed
Qual a importância do Natal para criar laços familiares?
O Natal de forma universal simboliza o nascimento de Jesus. Simboliza também o renascimento de uma nova vida. Vida em família é cientificamente comprovado como uma das bases de alegria e comunhão. O “inconsciente coletivo” das pessoas se volta para o sentido do amor e da fraternidade e, por isso, os laços familiares se reforçam nesta época do ano.
Em um mundo cheio de estresse e ansiedade, as tradições natalinas podem ser um alento para situações difíceis durante o ano e evocar sentimentos mais profundos? Pode ser uma forma de o indivíduo se reconectar com o eu interior e com a família?
Embora com a cultura da “preguiça digital “, os sentimentos mais profundos podem ser “ativados” com o apelo da religião, amor e comunhão entre as pessoas. Como somos seres com desejos e necessidades, influenciados pelo mundo, a tendência é agir com mais sensibilidade e respeito aos sentimentos humanos. Assim sendo, as tradições e os comportamentos são de certa forma, passivos e introspectivos na sociedade. Mesmo com o advento da era digital e da preguiça em ver o outro e a si mesmo de forma mais profunda, a chance de pelo menos pensar no sentido da vida é muito comum entre as pessoas.
Por que as tradições são importantes para as crianças? E para os adultos? O Natal contribui para reforçar o sentimento de identidade dentro de uma família?
As tradições reforçam a cultura, a fé, o sentido de família, a ética e o respeito com o próximo. Sem tradições, a sociedade se torna pobre e sem estrutura. E isso vale para a família. O Natal é essencialmente um chamado para as práticas de amor, compaixão e possíveis perdões que podemos desenvolver. Por isso, a família é um excelente “laboratório” para se praticar. A busca do sentido da vida, da existência, de mim mesmo e do meu próximo, sugere pensar quem sou eu neste núcleo familiar.
Qual a relevância de manter tradições do passado no presente? Como a memória afetiva pode ressignificar valores atuais?
Lembro-me de que, antes da era digital, as pessoas eram muito emotivas. Tão emocionais que até em casos extremos havia excesso de alcoolismo e brigas em família. Por outro lado, havia um extremo sentimento de gentileza, carinho, amor e compaixão em diversos ambientes familiares, empresariais e sociais. As pessoas eram muito “dadas” aos outros. Hoje, o mundo mudou e a lembrança dessa época é sentida como uma preocupação. Onde vamos parar se trocarmos as práticas de relações presenciais por digitais, cada vez mais superficiais?
Qual a importância do imaginário e os valores natalinos para as crianças? Como valores como solidariedade, união e família podem contribuir para a formação cidadã e identitária da criança?
As fantasias e os sonhos enriquecem as crianças em prol de construções simbólicas e realísticas de qualidade. Os sentimentos de benevolência, respeito e alegria são melhor desenvolvidos quando temos sonhos e esperança na vida. As tradições que se baseiam em Deus são fundamentais para o desenvolvimento ético e de compaixão entre as pessoas. Por isso, vejo como imprescindível o incentivo às práticas de tradições natalinas e presenciais entre as pessoas.