Antes de continuar a leitura, faça um exercício: esqueça a imagem propagada em realities de sobrevivência que levam os participantes a comer insetos colhidos na natureza. E a reação típica do lado de cá da tela: “Que nojo!”.
Isso porque a etnomofagia – ou a prática de comer invertebrados – já é pra lá de comum em países do Oriente, no México e até aqui mesmo, no Brasil. Quem nunca ouviu falar da formiga içá, apreciada na Amazônia e estrela em receitas do restaurante D.O.M, de Alex Atala, um dos chefs mais famosos do país?
Apesar do estranhamento e o repúdio que a proposta de comer grilos, larvas, formigas, gafanhotos e baratas possa causar, 3 bilhões de pessoas no mundo consomem os ingredientes na dieta, muitas vezes tidos como iguarias.
E mais: de acordo com estudos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a pecuária ou a criação de insetos voltada para a alimentação humana será cada vez mais comum, além de alternativa sustentável diante do aumento da população e consequente escassez de recursos no planeta.
Quer provar? Aqui, entidades e órgãos certificadores ainda não aprovaram a comercialização dos insetos comestíveis. O que há é uma pequena produção “caipira”, empreendida de forma experimental por criadores como Warley Vinícius. “O público-alvo ainda é formado por pesquisadores e alguns cozinheiros de vanguarda”, conta. “Mas, em breve, acredito na popularização da etnomofagia, principalmente por meio da produção de farinhas, doces, barrinhas e outros alimentos processados, que disfarçam a aparência do ingrediente.”
Também especialista e autor de curso que ensina técnicas de manejo para a criação de insetos comestíveis, Gilberto Schickler aposta na inserção dos insetos na dieta humana do Ocidente. “Acredito que haverá produção certificada e comercializada em até cinco anos”, projeta.
A prática da criação de insetos
Zootecnista, Gilberto Schickler começou a trabalhar com a criação de insetos para consumo animal na virada do milênio. “Nesse início, meu foco era a produção voltada para a alimentação de aves, mas costumava dizer que os tenébrios (larva de besouro), baratas e grilos criados em cativeiro e de acordo com as boas práticas de produção eram tão nutritivos que serviriam também à alimentação humana”, lembra-se.
Assim, Schickler foi descoberto por cozinheiros de vanguarda e passou a viajar pelo país falando mais sobre a etnomofagia. Prova que há interesse do público sobre o assunto veio de uma apresentação e degustação durante uma das edições do Festival Cultura e Gastronomia de Tiradentes, um dos eventos culinários mais conhecidos do país, realizado na cidade mineira do Campo das Vertentes.
Quem esteve presente recebeu uma verdadeira aula sobre o assunto – soube que há mais de 3 mil espécies de insetos comestíveis – e pôde provar que bichinhos como grilo e barata cinérea são, sim, palatáveis. “Na verdade, os insetos são tratados, limpos e desidratados para o consumo humano, então adquirem textura crocante e acabam recebendo o sabor do ingrediente em que são preparados. No caso do grilo com chocolate, o sabor lembra o de Bis”, afirma o produtor e autor de curso on-line sobre o manejo da pecuária voltada para a etnomofagia: www.minirebanhos.com.br/
cursos. O custo é de R$ 600.
O produtor afirma ainda que o assunto não é novidade no mundo. Cita como uma das pioneiras no ramo a empresa norte-americana Hot Lix, que produz pirulitos, snacks e outros produtos comestíveis à base de insetos. E dá exemplos de cozinhas que apostam nos bichinhos como iguaria.
“Em países como a Tailândia já se come ravióli com carne de besouros, molhos com ovos de formigas, larvas com queijo e outras receitas. Na China, o consumo de tenébrio gigante é comum. Na Colômbia, vende-se formiga no supermercado, em saquinhos. E no Canadá, é principalmente o grilo que faz sucesso”, garante.
Por fim, Schickler afirma que, segundo projeções da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em 2050, haverá de 9 a 10 bilhões de pessoas no mundo e a produção de insetos como fonte de alimento representará uma alternativa necessária. “Daí a necessidade de haver mais pesquisas para o desenvolvimento desse tipo de pecuária no país.”
ALTO ÍNDICE PROTÉICO
Em BH, Túlio Montenegro, que comanda o Chef Túlio há mais de 20 anos, já brincou de produzir receitas à base de invertebrados. A inspiração veio de experiências como cozinheiro nos EUA, onde trabalhou em restaurantes de diferentes etnias. “Os mexicanos, por exemplo, adoram gafanhoto e gusano (verme comum nas plantações de agave, planta usada na produção das bebidas tequila, mezcal e pulque). No fim das contas ou na panela, os insetos são uma proteína como a suína, a bovina, a de ave ou de peixe. É um alimento como outro, só que com altos índices proteicos e nutricionais, e já presentes na alimentação humana há muito tempo.”
Em BH, Túlio Montenegro, que comanda o Chef Túlio há mais de 20 anos, já brincou de produzir receitas à base de invertebrados. A inspiração veio de experiências como cozinheiro nos EUA, onde trabalhou em restaurantes de diferentes etnias. “Os mexicanos, por exemplo, adoram gafanhoto e gusano (verme comum nas plantações de agave, planta usada na produção das bebidas tequila, mezcal e pulque). No fim das contas ou na panela, os insetos são uma proteína como a suína, a bovina, a de ave ou de peixe. É um alimento como outro, só que com altos índices proteicos e nutricionais, e já presentes na alimentação humana há muito tempo.”
Proprietários de uma produção de insetos comestíveis em BH, negócio considerado de vanguarda, Warley Vinícius Castro e o pai, José Arsênio Castro, esperam, para breve, conquistar um interesse maior de possíveis investidores em etnomofagia. “Há cerca de 2 anos, percebi que o mercado para alimentação humana vem se abrindo. Trabalhamos o tenébrio gigante e as baratas cinéreas, principalmente. Mas, para comercializar, enfrentamos uma barreira devido à legislação brasileira, que ainda não permite a venda certificada para consumo humano. No entanto, tenho distribuído para pesquisadores, chefs de cozinha e universidades”, diz Vinícius, que desidrata os invertebrados em maquinário próprio.
Otimista, o criador acredita que, no prazo de dois a cinco anos, a venda de insetos comestíveis no Brasil para consumo humano será uma realidade. “Na nossa cultura alimentar, as pessoas enxergam apenas o inseto e não o alimento. Mas estamos construindo a mudança de paradigma em palestras, nas universidades, em feiras e exposições. Trata-se de um alimento rico em proteínas e que vem chamando a atenção de um nicho de mercado formado por pessoas interessadas em hábitos de consumo mais saudáveis e em valores como sustentabilidade e preservação ambiental”, afirma Vinícius.
Giovanna Fischborn*
Silvana Souza*
Diversos estudos mostram que, além de benefícios nutricionais, o consumo de insetos é uma alternativa sustentável e viável, podendo ser a chave para a erradicação da fome, como mostrou estudo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), uma das agências da ONU.
Seja pela associação do consumo de insetos a situações de falta de alimento ou última alternativa para sobreviver, seja porque eles simplesmente não se encaixam na categoria alimento, no Brasil, é comum torcer o nariz para a ideia de comer os bichinhos.
“Quantas pessoas já não pensaram ‘que nojo, eu não comeria um bicho desses nunca’? É cultural, aprendemos desde pequenos que o bicho é sujo e, hoje, associamos insetos a doenças e outras coisas ruins”, aponta a zootecnista Alessandra Gimenez.
Apesar da aversão, os insetos oferecem uma série de ganhos nutricionais e apresentam uma extensa variedade de macronutrientes, como explica o nutricionista Thiago Bronze. “O principal nutriente que pode ser encontrado nesses animais é a proteína. Porém, ela só atinge altas concentrações quando os insetos são criados especificamente para a alimentação humana.”
De acordo com o nutricionista, é possível encontrar ainda fibras, sais minerais, cálcio e fósforo. “Caso fosse incorporado às dietas ocidentais, esse tipo de alimento poderia ser facilmente o substituto da nossa tradicional farinha ou de algum alimento que se assemelhe ao leite.”
A rejeição em comer insetos se dá por uma questão de costume. Alessandra Gimenez explica que, devido às grandes diferenças geográficas e climáticas no planeta, há uma discrepância em relação ao que se pode e se consegue cultivar e produzir em cada canto do mundo. “Isso cria na população um hábito. Alimentos que normalmente não se comem em partes do mundo podem ser de consumo corriqueiro e habitual por outros povos”, esclarece.
DIETA SAUDÁVEL
Mas isso não quer dizer que o brasileiro não coma insetos. Eles já estão presentes em alimentos industriais há muito tempo, sem que a maioria dos consumidores saiba disso. Um exemplo é o corante de carmim de cochonilha, feito a partir do inseto mexicano Dactylopius coccus, muito presente em sorvetes, pudins, bebidas, bolachas, bolos, geleias, gomas de mascar, sucos, licores e outras guloseimas industrializadas de cor rosa ou vermelha.
Já no Nordeste brasileiro, a tradicional farofa de içá – formiga popularmente conhecida como tanajura – é uma iguaria bastante consumida por moradores e turistas.
Incorporar os insetos na dieta não é complicado. Diversas espécies, como larvas, grilos, gafanhotos e formigas, podem ser consumidas e encontradas no Brasil em feiras orientais. O médico-veterinário Regis Kamimura, de 57 anos, come insetos eventualmente. Ele afirma que mais do que excelente fonte calórica e proteica, os bichinhos compõem, sim, refeições deliciosas.
Um dos pratos preferidos de Regis é o omelete com larvas de Tenebrio molitor — um besouro preto considerado praga típica de farináceos. Não por acaso, essa larva recebe o nome popular de larva-de-farinha. O ingrediente, rico em nutrientes, é bastante utilizado na alimentação animal, como em várias espécies de pássaros.
Segundo Regis, que tem como hobby cozinhar, a larva pura desidratada tem um gosto muito suave. O sabor final depende dos demais ingredientes. Para agregar sabor, os insetos são temperados como qualquer outro alimento. “Gosto de usar cheiro-verde ou couve, que é uma fonte de fibra, nos preparos desse tipo”, conta.
Na hora de escolher o inseto para consumo, Regis alerta para os cuidados com os criatórios e com a higiene nos processos de preparo e cozimento. “Esse ainda é um dos maiores desafios para a popularização dos pratos com insetos: achar um fornecedor consistente em relação ao fornecimento e à qualidade”, pondera.
REGULAMENTAÇÃO
O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ainda não têm regulamentações para criação, venda e processamento dos insetos comestíveis, o que atrapalha a disseminação do hábito. Entre 6 de novembro e 8 de dezembro, a utilização de insetos como fonte nutricional será discutida entre entusiastas desse mercado no Insetec, o 1º Congresso Brasileiro de Insetos Alimentícios e Tecnologias, em Montes Claros, Minas Gerais.
* Estagiárias sob a supervisão da subeditora Sibele Negromonte
Por que comer insetos
Saúde: com alto poder nutritivo, os insetos são ricos em proteínas e gorduras boas, além de cálcio, ferro e zinco. São uma alternativa saudável aos alimentos tradicionais, como frango, carne e peixes.
Sustentabilidade: as criações de insetos emitem menos gases de efeito estufa (GEEs) que as de outros animais. Além disso, necessitam de quatro vezes menos insumos que as criações de gado. Por não ser uma atividade necessariamente terrestre, não se faz necessário o manejo do solo.
Fatores econômicos e sociais: a criação de insetos é uma opção que requer baixo investimento em capital e tecnologia, sendo uma alternativa viável em setores mais carentes da sociedade, oferecendo meios e oportunidades de subsistência para populações urbanas e rurais.