Jornal Estado de Minas

Comportamento

O desafio da pandemia é uma chance de ascensão espiritual


“O apóstolo Paulo diz em suas cartas aos Coríntios, 4:16, que “ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se renova dia a dia”. Cada experiência nos deixa o valor que nos corresponde e tudo que nos acontece tem uma razão de ser”, fala Juselma Coelho, presidente da Sociedade Espírita Maria Nunes (Seman) e da Sociedade Espírita Joanna de Angelis (SejaBH) e do conselho de administração do Instituto Assistencial Espírita André Luiz (Heal).





De repente, a constatação da fragilidade física, em que a vida de todos se vê ameaçada por um vírus que prenuncia com a interrupção da jornada física, faz pensar, conforme Juselma Coelho, em questões como o que tenho feito da minha vida? Que possibilidade tenho de recuperar o tempo mal utilizado? Como tenho distribuído meu carinho e atenção aos que me cercam? Quais os valores que tenho e podem ser melhor utilizados? “De repente, temos a certeza de que somos peças importantes na vida do universo e sentimos vibrar em nós a vontade de recuperar o tempo perdido. Gravitar para a unidade divina é o grande objetivo da humanidade. E para alcançá-lo, precisamos vivenciar a justiça, o amor e a ciência. E diante dos cataclismas físicos ou morais somos abalados pelo convite à vida, pela vontade de nos elevarmos, pela atenção e solidariedade de nossos semelhantes. Assim, nos tornamos mais suaves, mais ternos, tolerantes e amigos. Estaremos então nos primeiros degraus da ascensão espiritual.”

Juselma Coelho destaca nota de J. Herculano Pires, O céu e o inferno, Alan Kardec, cap. V, item 9: “A Terra está sofrendo uma crise e crescimento para se tornar um mundo maduro e, portanto, melhor. As desordens atuais, que tanto nos assustam, são os prenúncios de uma nova ordem que fará a Terra elevar-se na escala dos mundos”. Para ela, na verdade, a humanidade está aceleradamente distraída, e víamos a vigência do orgulho e do egoísmo em todos os níveis, do individual, do coletivo.

Estávamos assistindo ao desdobrar de males altamente virulentos que corroíam as sociedades. Manifestações cruéis de preconceitos, atitudes de agressividade e desrespeito inenarráveis, posturas de desamor, competições mesquinhas. Desprezo aos princípios de boa convivência, mentiras, tudo isso refletindo na macroestrutura social. “Com a chegada inesperada da pandemia nos assustando, paramos e refletimos. E forçadamente limitados pelas paredes do lar, nos voltamos agora uns para os outros. Nem castigo, nem aviso ou ameaça. Consequência natural da aplicação da lei de causa e efeito, da lei do progresso e outras leis afins.”





Para quem tem fé ou quem afirma não ter, Juselma Coelho enfatiza que a vida não teria sentido se não houvesse a conexão com um ser superior. “Qual a vantagem ou importância teria vivermos uma vida de 30, 60, 70, 90 ou mais anos,  lutar por conquistar recursos intelectuais, financeiros, sociais, para depois morrermos e acabar tudo? Quem teria feito e com qual objetivo, as belezas naturais existentes no universo? E nessa reflexão vamos nos deparar com Jesus, divino jardineiro de nossas almas: 'Vinde a mim todos os que estais cansados, oprimidos e sobrecarregados, que eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve. (Mateus, 11:28-30).'”

Pela lógica da razão, destaca Juselma Coelho, muitos chegam à conclusão de que quem fez tantas coisas belas, úteis, profundas, de inigualável valor, por que deixaria, por simples capricho, um vírus destruir tudo? “A fé de que falamos não é aquela que simplesmente me diz que vou ser salvo, mas aquela que me mostra que, se tudo tem uma razão de ser, se eu tiver que ser útil à vida, aos que dependem de mim, por ora serei poupada.”

Juselma Coelho alerta que a gigantesca tarefa que cabe a cada um neste momento é se reconduzir a Deus, cultivando a fé superior e racional, confiando que as autoridades e os governantes não estão sós, entregues a eles próprios. Eles são assistidos e conduzidos por luminosas forças superiores, que os levarão as soluções da interrupção da pandemia da COVID-19.
 
Padre Marcelo Carlos da Silva, do Santuário Arquidiocesano de Adoração Perpétua Nossa Senhora da Boa Viagem, diz que a espiritualidade é o combustível que nos faz mover dentro desta crise de saúde (foto: Patrícia Ribas/Divulgação)
 

SUPERMERCADO DA FÉ 

Para Padre Marcelo Carlos da Silva, do Santuário Arquidiocesano de Adoração Perpétua Nossa Senhora da Boa Viagem, a fé e a espiritualidade estão na base das respostas, modos de ver, sentir, pensar e agir de cada um diante dos desafios, angústias, medos e ansiedades que o mundo passa. “A espiritualidade é o combustível que nos faz mover dentro desta crise de saúde – que por consequência torna-se social, econômica, ecológica e até espiritual. É a espiritualidade de cada um nesta hora e a sua forma de se relacionar com Deus, de crer nele, que podem ajudar ou atrapalhar os aspectos humanos da enfermidade pandêmica.”

Padre Marcelo alerta que muitos discursos e igrejas da contemporaneidade, antes da grande peste do COVID-19, apostavam numa vida religiosa e, portanto numa espiritualidade, centrada no discurso da prosperidade de bens e riquezas econômicas deste mundo: “Mundanizaram”, isto é, reduziram os seus valores às promessas essencialmente deste plano de vida. “E a vida eterna, pós-morte, a transcendência, que sustenta a maior parte das religiões e igrejas perdeu o sentido, preocupados demais em olhar para o sucesso material. A espiritualidade e a fé ganharam status de 'produtos engarrafados' (às vezes literalmente), uma espécie de 'supermercado da fé”, afirma.

Assim, neste tempo da via-dolorosa da humanidade exposta como Cristo ferido de morte na vida das pessoas, “aos que desenvolveram uma espiritualidade e uma crença religiosa (fé) na prosperidade, nos ganhos deste mundo, agora se veem em crise de sentido, pois a espiritualidade e a fé vistas como uma via de prosperidade não podem dar segurança pela via dos bens que cada um tem. Ao contrário, aqueles que têm uma espiritualidade e uma fé, sejam de que religião forem, transcendente, imaterial, centrada na graça de Deus e não na prosperidade, devem conseguir experimentar uma vida espiritual mais fundamentada no consolo, na fortaleza, na esperança e na paz. Na certeza da presença de um Deus que se revela frágil para nos acompanhar em nossas fragilidades; ferido para mostrar-se solidário conosco”.





ILUSÃO E DESAPEGO 

Mokugen Roshi, abade que dirige o Templo Zen das Alterosas, diz que os monges enxergam o isolamento como natural – afinal eles vivem contexto bem mais severo do que o que todos estão enfrentando com a pandemia agora – e explica que o momento obriga o olhar para dentro de si, quando surge no interior de nós o que é mais premente, o nosso estado de espírito, de maneira forte e com questões absolutas. O que não é ruim, porque é a oportunidade de trabalhar o que precisamos.

“Na visão budista, não devemos nos assustar, já que o que aflora dentro da consciência é o que cada um tem a evoluir, sabendo que tudo é ilusão, que não devemos nos apegar. A espiritualidade do budismo está na prática da meditação em que expressamos a nossa natureza original desapegando. É a meditação que nos ensina olhar para dentro, esvaziar a mente e nos emergir sabendo que tudo é impermanente, tudo muda.”

Conforme Mokugen Roshi, a prática do zazen (meditação profunda) é viver o aqui e agora, o que surge a cada instante num eterno presente e que se esvai a cada momento: “O estado zazen é a concentração do nosso espírito”, quando se dá a consciência visceral, o sentir e vivenciar. “Concentrar em nós mesmos é um remédio que será digerido e transmutado com grande efeito. Tudo pode ser transcendido e superado porque todas as coisas são ilusórias. O budismo diz que o mundo fenomenal tem aparência de ilusão, tudo passa e muda constantemente. Assim, as ilusões devem ser transcendidas para encontrar o vazio. O saber abrir mão é o treinamento zen”.