Imagine-se numa situação de constrangimento, ao chegar a um consultório médico para avaliação de rotina e encontrar um profissional atencioso e receptivo, mas que tem dificuldade auditiva severa. Como compreender bem o que está sendo explicado e buscar informações adicionais? Logo surge a surpresa e a dificuldade de lidar com um cenário assim, quando o médico é que enfrenta o problema da surdez ou qualquer outra necessidade especial?
 
A questão é apresentada pelo pediatra e cirurgião pediátrico Thiago Lazaroni, professor do curso de medicina da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). “Imaginamos que médicos e os demais profissionais de saúde não enfrentam barreiras físicas para exercer a profissão. Essa premissa surge do que esperamos de um médico, uma pessoa sem limitações ou um 'quase-deus' no quesito de saúde. Deparar-se com um cardiologista surdo, por exemplo, seria um choque. Como esse doutor vai ouvir meu coração? Não é errado se sentir assim inicialmente, mas e se esse médico tiver aprendido outras formas de ouvir?”

Thiago Lazaroni afirma que, no Brasil, até há um sistema de saúde que vem se tornando inclusivo ano após ano “às custas de grandes reivindicações sociais”. E destaca que “cerca de 25% dos brasileiros têm alguma necessidade especial, seja para se comunicar, pensar ou locomover-se”.





Nem todos sabem, mas após um processo de quase três anos de discussões e análises, o Código de Ética Médica (CEM) de 2019 estabeleceu que o profissional médico com deficiência, ou doença crônica, pratique atividades dentro dos limites de sua capacidade e da segurança do paciente. O código se alinha à convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2008, e sua incorporação no Brasil por meio do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015).

No recadastramento digital dos profissionais vinculados ao Conselho Federal de Medicina, no início desse processo, que começou em 2016, dos 450 mil médicos em atividade no Brasil, 554 afirmaram ter algum tipo de deficiência. Grande parte deles atua em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Distrito Federal e Goiás. Entre as deficiências registradas, a auditiva, motora e visual são as mais comuns. O censo também quantificou se os casos eram congênitos ou adquiridos.

Raquel Moret Henrique Campos, de 24 anos, cursa o 7º período de medicina no câmpus da PUC Minas, em Betim, na Grande Belo Horizonte. Ela conta que ingressou na universidade graças à obtenção de bolsa integral pelo Programa Universidade para Todos (ProUni). “Sou portadora de uma perda auditiva neurossensorial bilateral profunda e faço o uso de dois aparelhos auditivos para melhor comunicação e compreensão. Embora o aparelho auditivo seja um facilitador, minha principal forma de compreensão da fala é a leitura labial”, conta Raquel.




 
Caminhar juntos 

Para que a inclusão ocorra da melhor maneira possível, a estudante costuma entrar em contato com os professores, antes do início de cada semestre do curso, para falar das suas necessidades e conversar sobre como ela pode trabalhar junto deles para absorver o conteúdo das disciplinas. “Deixo explícito ao professor que ele deve evitar ao máximo caminhar pela sala, bem como falar olhando para o quadro, pois, como sou dependente de leitura labial, a face dele deve estar sempre virada para a frente ou de perfil em relação a mim”.

"Só de saber que existem pessoas dispostas a ouvir e compreender as dificuldades e necessidades que passamos já fico com a esperança de que o futuro me reserva bons momentos" - Raquel Moret Henrique Campos, estudante do 7º período de medicina, portadora de perda auditiva

(foto: Arquivo Pessoal)
Raquel Moret reconhece que, mesmo com toda a colaboração dos professores, é claro que como a carga de conhecimento ministrado é muito grande e ela precisa fazer anotações, pode haver momentos em que ela desvia sua atenção do professor para o caderno e, com isso, em tese perderia o ritmo de acompanhamento da lição. “Diante disso, tenho que organizar meus horários para estudar e obter o máximo de informação possível. Uma das maiores dificuldades que encontrei foi obter o estetoscópio. O modelo de que eu precisava era encontrado apenas no exterior e só fui obtê-lo quando estava no 5º período do curso.”

No ensino remoto, Raquel Moret revela que teve um pouco mais de dificuldade. “Antecipadamente, entrei em contato com os professores e combinei em manter a webcam sempre ligada e que tanto o áudio quanto o vídeo estejam na melhor qualidade possível. Eles também se disponibilizaram em me responder pelo telefone sempre que possível.”





A estudante enfatiza também que o curso não seria tão proveitoso não fosse, além da colaboração e compreensão dos professores, a ajuda dos amigos e colegas de classe. “Todos se colocam à disposição para me ajudar. Juntos, compartilhamos várias anotações e experiências. Além disso, os monitores têm tido um papel muito importante na construção da minha formação como médica.”

A futura médica não sabe o que virá pela frente. No entanto, a paixão e o comprometimento contagiam e inspiram. “Ainda não sei qual é o destino que a medicina me reserva. A graduação tem sido uma experiência maravilhosa e, cada dia que passa, descubro uma coisa dentro da medicina pela qual me apaixono. Porém, só de saber que existem pessoas dispostas a ouvir e compreender as dificuldades e necessidades que passamos já fico com a esperança de que o futuro me reserva bons momentos.”

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Cirurgião pediátrico, o professor Thiago Lazaroni comprovou que é possível ao profissional com perda auditiva aprender a ouvir os sons dos órgãos humanos

(foto: Arquivo pessoal)
A sociedade convencionou que a pessoa com necessidade especial é sempre o paciente, jamais o médico, mas há profissionais cadeirantes, alguns surdos, outros com sequelas neurológicas. E é ainda mais difícil pensar em ensinar como essa pessoa com necessidade especial deve repetir e praticar a medicina dentro das suas possibilidades. A constatação é do médico Thiago Lazaroni, pediatra, cirurgião pediátrico e professor do curso de medicina da PUC Minas. “Por que essas pessoas não poderiam ter acesso ao sistema superior de ensino e praticar o exercício de profissões da saúde?”

No início do semestre, ano passado, ao ser comunicado sobre a existência de um aluno com necessidade especial, Thiago Lazaroni pensou em como poderia abordá-lo, modificar toda uma estrutura visando à acessibilidade maior dele. “Não fiquei assustado, me motivou muito e fiquei realmente estimulado a ensinar de uma forma diferente.”




 
Ele observa que a medicina tem rotinas rígidas e intensas de estudos. “São aulas teóricas com grande carga horária, além da carga prática maior ainda. Após o término de seis anos de universidade, o médico recém-formado, para se especializar, ainda enfrenta uma nova seleção de provas (que podem ser práticas) e faz, no mínimo, mais dois anos de residência médica. Toda essa rotina pode ser mais difícil se falamos de um estudante surdo, mudo ou com dificuldades locomotoras. Imagine como o futuro médico vai aprender o tique-taque do coração e o chiar do peito? Como ele será capaz de ouvir uma história detalhada, cheia de casos de uma senhora no interior do estado? E como esse médico poderá explicar sobre o tratamento?”

No entanto, em 2019, Thiago Lazaroni se deparou, no terceiro ano do curso, com Raquel Moret Henrique Campos, de 24 anos, uma estudante com grave perda auditiva. “Minha disciplina, de semiologia médica, ensina os primeiros passos de como o médico deve ouvir, interpretar, tocar, sentir e orientar seus pacientes. Ensinamos o exame do coração, das juntas, da garganta e etc. Uma grande parte do exame é o ouvir dos sons que nossos órgãos produzem naturalmente ou quando são afetados por alguma doença. Uma disciplina secular e bastante tradicional. E agora? Como vou ensinar a ela o barulho correto dos intestinos ou o crepitar de uma pneumonia?”

Ele enfatiza que os médicos discutem muito como incluir o paciente em todas suas formas. “Como um médico deve se portar e agir frente a vida real, mas nessa situação invertemos totalmente o jogo. Aprendemos a ensinar um som para um estudante que ouve 100% ou perto disso. Mas, se não reformularmos a forma de ensinar e praticar que todos podem ser bons médicos, como incluir aqueles surdos que saem do ensino médio e gostariam de se enveredar pela área da saúde?”

Artigo científico

Thiago Lazaroni se deparou com um momento de desafio e inclusão. “No ensino superior, não há obrigatoriedade de aulas ministradas em libras. Tivemos que nos reinventar. Falar mais devagar, sempre de frente para a aluna, explicar os sons. E não houve diferença entre o aproveitamento dela em relação aos demais colegas. Tivemos, inclusive, que adaptar avaliações. É fácil saber quando alguém não entende o que é perguntado porque não sabe ou porque está com alguma limitação de entendimento/percepção. Essa é a arte de ser professor.”

Comprometido com a formação da estudante, Thiago Lazaroni revela que, médico formado há uma década, “poucos momentos me marejaram as vistas. Um deles foi quando, lá no meio do semestre, essa aluna colocou um estetoscópio especial que aumenta os sons. Ela chorou. Confesso, todos nós choramos.”

Dessa vivência, o pediatra e professor conta que surgiu a ideia de estudar melhor essa experiência. Assim nasceu, com a participação de outras alunas, que são monitoras, e mais duas professoras, Gabriela e Erika, um estudo. “Decidimos relatar para outros professores, alunos e universidades que é possível ensinar medicina a um surdo ou a qualquer outra pessoa que tenha limitações físicas. A forma de ensinar medicina é que tem que se atualizar, ultrapassar limites e criar alternativas para os desafios propostos pela vida”, enfatiza Lazaroni.





O trabalho resultou em um artigo científico recém-saído do forno e prestes a ser publicado. “Mas muito mais que isso, nos fez explorar potencialidades mais do que limitações. No meu caso, ensinar um mundo cheio de sons para uma futura médica cheia de sonhos.”
 
Preconceito e sabotagem

(foto: Gerd Altmann/Pixabay )

Na literatura sobre a medicina pediátrica, o professor da PUC Minas Thiago Larazoni se deparou com dados absurdos sobre as dificuldades enfrentadas por médicos residentes portadores de necessidades especiais. “Residentes surdos são encorajados a desistir da especialização. Os hospitais se adaptam à realidade do paciente, mas não à de um profissional de saúde com necessidades especiais. Alguns relatam que foram sabotados em prontos-socorros ou ambulatórios.”

Para o pediatra, a sociedade não está preparada. “Mas isso é porque muitos deficientes físicos desistiram de ser médicos. Então, há um preconceito com relação ao padrão de médico. Somente após conhecer e presenciar uma consulta com pessoas nessa condição especial é que vão entender que não há diferenças. É um padrão a ser melhorado, trabalhado.”





Para Thiago Lazaroni, o médico surdo pode ser sim ativo e exercer sua profissão com autonomia. “Ela (a sua aluna) pode atuar em todas as áreas que desejar. Não precisa ser uma médica especialista em exames, por exemplo. Ela pode ser cardiologista, pneumologista ou o que quiser. Temos tecnologias que permitem ampliar os sentidos ou codificá-los para que sejam percebidos por quem tem deficiência total.”

De tudo que tem experimentado, percebido, aprendido e vivido dentro de sala de aula, Thiago Lazaroni confessa que tem se transformado: “Incrível. Eu me senti triste há 15, 16 anos atrás, quando me disseram que alguma limitação minha poderia influenciar na minha carreira, ou quando eu era criança e acharam que por ser de família humilde o sonho estava muito distante. Acredito que podemos todos sonhar e temos que valorizar o sonho do jovem médico. É uma profissão movida a sonhos.”

(foto: Sathish kumar Periyasamy/Pixabay)
Regulamentação

Quando se trata de deficiências físicas, não cabe ao Conselho Federal de Medicina (CFM) designar quem está ou não apto ao exercício da medicina. O órgão, além de elaborar o Código de Ética Médica (CEM), apenas comprova o diploma e registra os médicos. Cabe às instituições de ensino a avaliação caso a caso, acompanhando o desenvolvimento acadêmico e social de cada aluno. Comprovando-se que o futuro médico terá plenas condições de transpor as dificuldades que possam surgir devido à sua limitação física ou de saúde, o CFM tem a obrigação de validar o diploma e registrar o médico.

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