Jornal Estado de Minas

COMPORTAMENTO

É possível decifrar as mensagens dos sonhos?



Para a psicanálise, o sonho é uma das formas de acessar o inconsciente, parte da mente à qual não temos acesso de forma fácil. No livro A interpretação dos sonhos, publicado em 1900, Sigmund Freud, médico neurologista e criador da psicanálise, provou que há um método científico para compreendê-los e a obra mudou a maneira como a humanidade veria os sonhos até hoje, passados 120 anos. José Mól, médico do sono, psiquiatra e sócio-fundador da Associação Brasileira de Neuropsiquiatria (ABNP), destaca que Freud dizia que o sono é o guardião do sonho.




 
Segundo José Mól, sonhamos para evitar que estímulos menores do meio ambiente nos acordem à toa. “O cérebro é capaz de manter uma sintonia auditiva com o ambiente enquanto estamos dormindo e ruídos externos se incorporam a elementos do sonho, para que continuemos a dormir. Freud dizia que, além disso, os sonhos são um meio de realizarmos desejos recalcados na mente, ou seja, realizamos desejos de coisas que não temos consciência de forma simbólica, disfarçada, na maioria das vezes inacessível ao entendimento racional. Os sonhos ocorrem em uma linguagem cifrada, regida por uma censura que nossa própria mente nos impede de enxergar, para evitar que nos angustiemos.”
 
Médico do sono e psiquiatra, José Mól diz que sonhamos para evitar que estímulos menores do meio ambiente nos acordem à toa (foto: Arquivo pessoal)
 José Mól conta que, recentemente, descobriu-se que o sono se divide em sono REM (do inglês: rapid eye movement/movimento rápido dos olhos) e sono NÃO REM. Neste último, as ondas cerebrais ficam lentas, os músculos relaxados, e as pessoas descansam a mente e o corpo e vários hormônios são fabricados pelo organismo (ocupa 75% do tempo do sono). “No sono REM, o cérebro entra num processo de trabalho intenso, as ondas cerebrais ficam mais rápidas do que quando estamos acordados e ocorre uma atonia muscular (mais do que um relaxamento, para que não consigamos nos mexer durante os sonhos), na qual uma parte da mente fica no playground, brincando, sonhando, garantindo que a outra parte possa fazer um intenso trabalho organizando todo o conhecimento e selecionando as coisas mais importantes para ser guardadas na memória e deletando as menos importantes.”
 
O médico do sono e psiquiatra confirma que os sonhos, na maioria das vezes, formam histórias relacionadas aos acontecimentos do dia. Ele explica que o sonho é essencialmente visual e auditivo. Vemos imagens o tempo todo e, por isso, nossos olhos ficam se movimentando durante os sonhos. E eles são desejos inconscientes, inaceitáveis para a mente. “Posso, por exemplo, desejar que meus pais morram para eu receber a herança. Mas como é muito doloroso pensar nisso, minha mente arruma um sonho em que ocorre a morte deles em um acidente, me isentando completamente do fato, e no sonho, em vez de me sentir culpado recebendo a herança, vou sentir tristeza por eles terem morrido no acidente.”




 
Já os pesadelos, José Mól conta que têm a ver com traumas passados. Costumam ser repetitivos e isso pode ser uma maneira de aliviar a lembrança do trauma. “Frequentemente, temos pesadelos relacionados a alguma condição orgânica pela qual estamos passando. Se estou com apneia (sem respiração durante o sono), para não acordar posso sonhar que estou me afogando ou muito cansado, correndo, tentando escapar de um perigo iminente. Existe um transtorno, o chamado transtorno do estresse pós-traumático, que ocorre geralmente após algum evento catastrófico (guerra, desastre natural, assalto, estupro etc.), em que a pessoa passa a ter pesadelos frequentes. Esses sonhos repetitivos são uma maneira que a mente arruma de tentar resolver, aliviar e atenuar essa lembrança traumática até que ela fique resolvida/esquecida (em grande parte dos casos, isso não se resolve sozinho e há necessidade de terapia e tratamento medicamentoso).”
 
José Mól enfatiza que a qualidade do sono prejudica o sonho: “Sonhos agradáveis têm a ver com boa qualidade do sono. Se estamos com calor, dor, dificuldade respiratória ou muito barulho ambiente, a mente vai arrumar sonhos relacionados a esses fatores desagradáveis para podermos continuar a dormir. Nestas situações, o sono e os sonhos são prejudicados”.

Bebês e aposentados


É sempre intrigante as pessoas que não se lembram dos sonhos, já que todos sonham todos os dias. José Mól explica que os sonhos com história ocorrem durante o sono REM (25% do tempo total de sono). A quantidade desse sono tem a ver com a qualidade do sonho e com a idade. Recém-nascidos têm até 80% de sono REM, porque tudo que estão vivendo é novidade, estão aprendendo coisas novas o tempo todo e há necessidade de sono REM e sonhos em grande quantidade para o cérebro poder armazenar esse conhecimento novo.




 
No adulto, o sono REM ocupa 20% a 25% do sono total e é também o momento de organização das memórias e conhecimento. No idoso, principalmente no aposentado e que já não está produzindo, vivendo praticamente no automático, a quantidade de sono REM não passa de 10% do sono total (no idoso que ainda trabalha, produz, ou esteja aprendendo coisas novas, é diferente).

Por fim, José Mól avisa que, para sonhar durante o sono, é importante ter sonhos na vida real. Independentemente da idade, pessoas que estejam aprendendo coisas novas, que ainda têm metas na vida, vão sonhar mais do que os que não têm. A maior quantidade de sono REM (e sonhos) ocorre mais das 4h às 7h. Normalmente, nos lembramos dos sonhos, mas se não forem anotados, são esquecidos em seguida.
 
(foto: Willgard Krause/Pixabay)
 

Teorias para explicar as funções

 
Fernanda Rocha, neurocientista, psicóloga e professora da Faculdade Pitágoras, destaca que os sonhos são um tema de interesse antigo, sendo interpretados de formas distintas em cada momento da história. “Reis e outros governantes recebiam orientações das pessoas que tinham nos sonhos um dom de revelação. Pelas religiões, eles podem ser considerados um meio de comunicação entre os homens e os deuses. Infelizmente, o método científico tem suas limitações no que se refere à sua aplicação na área da metafísica.”



A neurocientista explica que várias são as teorias científicas e não científicas que almejam explicar os sonhos e suas funções. Essas teorias são por vezes divergentes e por outras convergentes e complementares. O método científico permite aos pesquisadores, a partir de um recorte específico de um tema, colher dados, analisar e elaborar interpretações a respeito, confirmando ou refutando hipó- teses. A psicologia, por exemplo, apresenta teorias explicativas de diversos assuntos, inclusive a respeito dos sonhos, porém nem todas prosseguem no caminho da testagem por meio de pesquisas.

Fernanda Rocha, neurocientista e psicóloga, conta que o campo das neurociências há muito tem se debruçado sobre o tema (foto: Arquivo pessoal)
De maneira mais abrangente, Fernanda Rocha conta que o  campo das neurociências há muito tem se debruçado sobre o tema. “Pesquisas têm mostrado que os sonhos fazem parte do período de sono de todas as pessoas, ou seja, todo mundo sonha. Porém, nem todos se lembram dos sonhos ou até mesmo que sonharam. Descobriu-se que, entre as cinco fases do sono, aquelas pessoas que voltam a acordar a partir da fase do sono chamada REM têm maior probabilidade de se lembrar dos sonhos”, explica. 

A neurocientista ensina que os sonhos são produzidos por alterações neuroquímicas, ativações e desativações de circuitarias cerebrais, estando presentes em todas as fases do sono, diferindo qualitativamente entre elas. Segundo ela, nos estágios iniciais, memórias diversas, sem qualquer ligação aparente, servem de conteúdo para os sonhos, especialmente de fontes visuais como imagens de coisas vividas nos últimos dias. Nesse período, regiões frontais do cérebro relacionadas ao raciocínio lógico estão praticamente desligadas.




 
INSIGHTS E SEM NEXO

(foto: Stefan Keller/Pixabay )

Fernanda Rocha esclarece que, conforme entramos em fases mais profundas do sono, os sonhos se tornam mais sofisticados. “Às imagens iniciais são acrescidas memórias passadas, percepções emocionais e prospecções do futuro. Dessa mistura rica, ainda sem um raciocínio lógico operante, é possível entender quão estranhos e sem nexo alguns de nossos sonhos podem parecer. É então nos períodos finais de um ciclo do sono, na famosa fase do sono REM, que a atividade cerebral volta em níveis similares às de uma pessoa acordada, reativando regiões adormecidas, possibilitando uma busca de sentido, interpretações e conclusões. Não é incomum que as pessoas relatem ter tido insights enquanto dormiam.”
 
A neurocientista enfatiza que estudos mais antigos sobre os sonhos apontam que esses têm papel importante na consolidação de memórias conscientes, de aperfeiçoamento no desempenho de tarefas motoras e de limpeza de memórias consideradas inúteis. Nos estudos mais recentes, os sonhos têm também funções de modulação e formulação de estratégias de ação, ou seja, funcionam como simuladores de situações já ocorridas, em que um indivíduo possa ter apresentado dificuldade, e até situações futuras das quais se está ainda elaborando possíveis soluções.
 
Desse ponto de vista, alerta Fernanda Rocha, o caos dos sonhos seguidos de associações improváveis e posterior ligação de funções cognitivas mais sofisticadas estimula a criatividade na resolução de problemas, sejam eles novos ou antigos. “Além disso, algumas abordagens terapêuticas de orientação psicodinâmica, como a psicanálise de Sigmund Freud, trabalham com a interpretação dos sonhos, considerando-os como um meio de acesso a conteúdos inconscientes, tais como nossos desejos mais profundos. Muitos pacientes relatam ganhos neste processo de autoconhecimento e mudança proporcionados por essas terapias.” 

 
Consciente x inconsciente*


Sonhos sugerem a comunicação entre o inconsciente com 
o consciente. Para que isso ocorra, Freud percebeu que 
era necessário o surgimento de três situações:

  1. Estímulo sensorial: como uma necessidade fisiológica, vontade de beber água antes de dormir.
  2. Restos diurnos: como presenciar um acidente.
  3. Sentimentos e desejos reprimidos: como uma escolha que fizemos no passado.

*Fonte: Portal Psicanálise Clínica

Conheça 10 benefícios de sonhar*


  1. Aprofundar o relacionamento consigo mesmo
  2. Entender melhor os universos externo e interno
  3. Relatar o processo de individuação
  4. Oferecer recursos riquíssimos para uma boa terapia
  5. Compensar e equilibrar a psique
  6. Demonstrar o que fazer
  7. Desgastar acontecimentos traumáticos
  8. Comunicar-se
  9. Prever acontecimentos
  10. Aguçar e promover insights criativos

*Fonte: Thaís Khoury, psicóloga clínica do portal Personare