O ócio não é aceito de forma natural. A psicóloga e coach de carreira Júlia Ramalho Pinto, da consultoria Estação do Saber, destaca que algumas pessoas parecem se sentir confortáveis com o ato de não fazer nada e conseguem chegar a uma presença de espírito e contemplação. Mas não são muitas. “Vivemos numa sociedade do consumo e do foco na produtividade, muitos acreditam que mesmo o tempo livre tem que ser produtivo. Quando não se produz, as pessoas se sentem culpadas, incompetentes e usam todas as formas duras de julgamento por não agir de acordo com esse sistema. Mas isso pode ser diferente. Não é um processo fácil o de ir silenciando essa voz interna, que olha apenas para a produção.”
Júlia Ramalho Pinto alerta que esse sistema gera agitação, ansiedade e uma necessidade constante de distração. “Aliado a essa necessidade, há todas as redes sociais ao alcance das mãos para simplesmente manter a mente pulando de galho em galho, oferecendo a ideia de que está buscando informações 'produtivas'. Evita-se o encontro com pensamentos acerca da existência, com emoções desagradáveis, como o tédio, por exemplo.”
A psicóloga explica que à medida que se percebe que essa agitação é um mecanismo automático da mente, é possível começar a construir novas formas de estar presente na vida. A terapia ajuda nisso, assim como a meditação e treinamento da mente. “Quando estamos de corpo e alma no que fazemos, olhar um pôr do sol, contemplar uma flor e seus brotos, olhar o movimento das nuvens não se torna um problema, não nos preocupamos se estamos sendo 'produtivos'. Mas, sim, vivemos a experiência explorando sensações e emoções por meio dessa conexão e contemplação”, afirma Júlia Ramalho.
Segundo Júlia Ramalho, aqueles que conseguem se desligar da tomada desenvolvem a capacidade de contemplar, de estar presentes, e podem contribuir para um mundo melhor. “São pessoas que lidam bem e de forma inventiva com sua angústia de vida. Saber pausar é hoje um dos principais itens para a saúde mental. Veja que produzimos a síndrome de Burnout, causada pelo esgotamento do trabalho. O indivíduo não consegue parar de trabalhar e entra em exaustão extrema”, destaca.
CONEXÕES
O equilíbrio surge a partir do entendimento do que é importante para a pessoa e como ela dedica tempo para isso. “Não dá para dizer que filhos e família são importantes se se não consegue estar presente e de fato se conectar com eles. E não dá para se conectar enquanto lê algo no celular ou no computador”, alerta a psicológa.
A sociedade contemporânea inventou que tempo é dinheiro, o que não é a melhor relação que se pode ter com o tempo. "Talvez fosse melhor pensar que tempo é vida. Quem não sabe relaxar, não se permite desacelerar", e, para Júlia Ramalho, se vive um problema dentro de outro problema. “É a sociedade digital dentro da sociedade de consumo e de produção. Dessa forma, surge o uso das redes e jogos como formas de distração e necessidade de estar em movimento, evitando, assim, qualquer contemplação, angústia e tédio. As pessoas se iludem de que podemos apenas 'gozar a vida' e ir pulando de 'prazer em prazer'”, observa.
Antes de tudo, para viver o ócio sem culpa é necessário, enfatiza Júlia Ramalho, entender como você e sua mente funcionam. “Não temos um “pó de pirlim-pim-pim” para isso. Não existem soluções mágicas do tipo: um dia você acorda assim, tranquilo, contemplativo, presente e pronto para saber viver o seu dia e mão está nem aí para o que as pessoas estão pensando. Alcançar essa serenidade, sabedoria e autenticidade é um processo. È preciso querer abraçar esse processo e mudar. Caso contrário, tem o resto da vida para continuar reclamando que não para de correr e que não consegue parar. Inclusive, muitas vezes se colocando como “vítima” por não conseguir fazê-lo.”
Como orientação para quem deseja entrar na onda do niksen, a psicóloga recomenda partir para a prática do abandono à sociedade hiperativa e se despojar de julgamentos. “Então, para estar fora do 'modo produtivo' precisamos silenciar a voz interna crítica e julgadora e desenvolver a capacidade de presença e contemplação”, afirma. Alcançar serenidade, sabedoria e autenticidade é um processo que requer mudança.
De forma geral, Júlia Ramalho acredita que a pandemia do novo coronavírus e seus efeitos revelam situações latentes, “seja o cuidado com nós mesmos e com o outro; seja a neurose e fragilidade de outros. Mas o que ela coloca é a mesma coisa para todos: como sairmos melhor, mesmo com tanta dor, com tantas dificuldades? Como reinventarmos uma vida mais simples, mais leve, mais sustentável e com mais propósito? Isso não é nada simples. Precisamos encontrar esse equilíbrio tênue".
COMO SE LANÇAR AO ÓCIO
- Entenda que vivemos numa sociedade que foca e valoriza a produção e o consumo desenfreado. Há desejos que você tem porque foi levado a isso, mas pode não ser essa, de fato, a sua necessidade ou o seu querer.
- Reconheça como você funciona quando houver problemas. Você se agita? Procura se ocupar com qualquer coisa? Será que você está procurando uma saída compulsiva para seu mal-estar? Você está ficando irritado e cansado após fazer essas coisas de que se ocupa? Esse é um alerta: talvez você possa estar usando esses afazeres como fuga da sua angústia e ansiedade. Se conseguir se perceber assim, pare! Uma atividade que não é apenas agitação e distração pode até cansar, mas você se revigora.
- Que tal começar a experimentar outras atividades para ver se causam esse efeito de revigorar? Que tal a meditação, respirações profundas ou algo em que sua atenção esteja focada, mas não para simplesmente reagir aos estímulos externos? Você consegue estar presente no que está fazendo e deixar as coisas fluírem? Isso pode ser feito por meio de criar ou ler um texto sem compromisso, desenvolver um hobby, fazer artesanato, um desenho para contemplar ou fazer uma receita de culinária nova. Pode, ainda, fazer uma caminhada, esportes ao ar livre funcionar para você.
- Se nada disso está sendo possível, procure um psicólogo e as pessoas mais próximas para compartilhar essa dificuldade que está tendo. Não fique sozinho tentado resolver as coisas e sem sair do lugar. Existem profissionais para isso e as pessoas que são amigas estão aí para ajudá-lo.