Jornal Estado de Minas

ALIMENTAÇÃO

Açúcar: o risco e a delícia de adoçar a vida



Em tempos amargos, é humano buscar uma saída que adoce a vida. Diante das incertezas da pandemia causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2) e do isolamento social, a alimentação é um meio de prazer e satisfação. E doses de alegria, sempre tão necessárias, estão presentes nos alimentos que têm o açúcar como ingrediente responsável por energia e deleite do paladar. Para os que se regozijam com o sabor doce, neste momento é fácil perder o controle, errar na medida. O que é um grande risco à saúde, ainda que este carboidrato seja também fonte de minerais necessários para o bom funcionamento do corpo.




 
A palavra açúcar tem origem no termo sânscrito çarkara (em prácrito, shakkar), que significa “grãos de areia”. Da Nova Guiné, passando pela Índia, pelo Império Árabe até chegar ao Ocidente, a produção e o comércio de açúcar fazem parte da história do homem. Em tempos modernos, influenciou o colonialismo, a escravidão, as migrações domésticas e internacionais, as guerras e sempre foi um dos motores da economia. O consumo em massa ocorreu a partir do século 17, com a produção em larga escala, já que até então era acessível somente aos ricos.
 
Hoje, é impossível imaginar a vida sem o açúcar. No entanto, muitos perderam o controle do quanto ingerir, sem falar que ele ganhou inúmeras formas e apresentações, fontes de origem, o que dificulta demais o autocontrole. Cristal, refinado, mascavo, demerara, sacarose, maltose, xarope de milho, néctar de agave, maltodextrina, dextrina, açúcar de beterraba, xarope de sorgo, frutose... Tudo isso é açúcar e muitos não têm ideia. E tem ainda aquelas pessoas que tendem a comer mais alimentos com açúcar do que outras por fatores genéticos, como alerta o médico aconselhador genético Ricardo di Lazzaro Filho, sócio-fundador da Genera, laboratório brasileiro especializado em genômica pessoal. “Inclusive, já existem hoje testes genéticos capazes de analisar esse gene específico e medir a predisposição de cada indivíduo em consumir mais ou menos açúcar no dia a dia.” Esse teste é uma possível explicação para a compulsão por açúcar, sem desconsiderar fatores psicológicos, também importantes.
 
A lista de nomes para o açúcar é extensa. Muitos deles se apresentam de forma camuflada nos alimentos, sem conhecimento da população leiga. Assim, o que poderia ser uma fonte de prazer, até aliado da alimentação saudável, veste o papel de vilão. O açúcar é apontado por médicos, cientistas e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) não como o único responsável, mas um dos desencadeadores de doenças como obesidade e diabetes, já que também tem a ver com o hábito alimentar. Entre tantos estudos, a revista científica British Medical Journal afirma que o consumo de bebidas açucaradas, como refrigerantes e sucos adoçados artificialmente, alimentos ultraprocessados, está associado a um risco maior de desenvolvimento de certos tipos de câncer, como o de mama, próstata e intestino.




 
Já no site da plataforma da National Geographic, no artigo “Life is sweet: the sugar story” (“A vida é doce: a história do açúcar”), Jon Heggie, autor do artigo, explica que o homem está programado para amar o açúcar e que os instintos evolutivos de sobrevivência desencadeiam desejos por alimentos que o corpo precisa, como sal, gordura e açúcar. Para nossos ancestrais, o alto conteúdo de energia do açúcar era um salva-vidas quando a comida era escassa e havia competição com animais e insetos por frutas e outros alimentos.
 
Evite o açúcar branco, será um ganho para sua saúde (foto: Mathilde Langevin/Unsplash)
No mundo atual, o risco é a dependência, como destaca o artigo: “Quando comemos açúcar, o cérebro libera dopamina e serotonina, hormônios do humor que estimulam a área do cérebro associada à recompensa. Em um processo semelhante ao vício em drogas, temos desejos de açúcar. No entanto, a corrida em busca de doces libera insulina e cria um ambiente no organismo que provoca mais desejos e um ciclo vicioso”.

Segundo a OMS, o Brasil é o quarto maior consumidor de açúcar no mundo (12 milhões de toneladas/ano), atrás apenas da Índia, da União Europeia e da China. Ainda segundo a entidade, os brasileiros consomem 50% a mais de açúcar do que o recomendado. Isso significa que, por dia, eles ingerem, em média, 18 colheres de chá do produto (o que corresponde a 80g de açúcar/dia), quando o recomendado pela instituição seria até 12 colheres. O ideal, como indica a OMS, é reduzir o consumo de açúcares livres em menos de 10% da ingestão calórica total.



 

Para maiores benefícios à saúde, a OMS recomenda que a redução do consumo diário seja de 5% de açúcares livres. Entenda como açúcares livres, de acordo com a Organização Pan-Amaricana de Saúde e a OMS, os monossacarídios e os dissacarídeos adicionados aos alimentos e às bebidas pelo fabricante, cozinheiro ou consumidor, além dos açúcares naturalmente presentes no mel, nos xaropes, nos sucos de frutas e nos concentrados de sucos de frutas.

MÉTODO DE RECOMPENSA


A professora de língua portuguesa Graziele Lacerda, da Escola Estadual Helena Guerra, em Contagem, e graduanda em educação física pela Faculdade Estácio-BH, revela que durante muito tempo o paladar dela era extremamente infantil. Só me sentia bem após comer um docinho pós-refeições salgadas, como almoço ou jantar. Enfrentava problemas para abdicar dos doces, achava impossível viver sem ou reduzir o consumo. Sempre os encarava como fonte de energia e método de recompensa. “Estou muito feliz, vou comer um doce, estou triste preciso de um docinho. E assim sucessivamente.”
 
(foto: Arquivo Pessoal)
Graziele conta que bolo, sorvete, biscoitos recheados e o famoso chocotone já foram seus pontos fracos. Em período de TPM, o biscoito recheado de chocolate era como um remédio para o alívio dos sintomas pré-menstruais. No entanto, Graziele percebeu que tinha de mudar sua relação com o açúcar: “Minha mãe é diabética, o que me torna uma pessoa propícia à doença, principalmente da forma como eu consumia doces. Ou seja, o risco de me tornar diabética é real. Isso me deixava preocupada, mas em uma zona de conforto. Porém, ao ingressar em uma faculdade da área de saúde, percebi que os risco ao consumir o açúcar em excesso eram maiores e mais danosos do que pensava.”





SONO, MEMÓRIA E PELE

 
Graziele enfatiza que o primeiro passo para controlar a ingestão de açúcar é se conscientizar, sair da zona de conforto. “Não adianta saber que está consumindo de maneira equivocada e manter os hábitos. Elaborei uma estratégia para diminuir o consumo. Não cortei nada de forma radical, pois isso pode proporcionar um efeito rebote e gerar uma compulsão. Dessa forma, estou optando pelo equilíbrio. Iniciei diminuindo o açúcar do cafezinho. No começo foi difícil, mas hoje tomo café com zero açúcar. Assim, posso comer um pedaço de bolo com menos culpa. Faz parte da minha estratégia não ter um dia para ‘pisar na jaca’, acredito que assim me mantenho no controle e equilibro melhor a ingestão dos alimentos mais açucarados.”
 
Graziele não ilude ninguém. Reconhece que no início foi bem difícil. A professora conta que ficava brava, irritada e chegou a desistir algumas vezes, mas logo depois pensava na saúde a longo prazo e voltava para o foco: “Vencer o período menstrual sem uma overdose de doces foi complicadíssimo, mas com planejamento e equilíbrio foi possível. Sempre que eu começava com sintomas de abstinência, comia uma fruta ou tomava maior quantidade de água. Para mim funcionou bastante, é uma maneira de 'enganar o cérebro'. Diminuir o consumo de açúcar foi a decisão mais acertada que tive. Como benefícios, é notável a melhora na pele, peso dentro do ideal, disposição, qualidade do sono e memória mais ativa. Agora estou em um processo de diminuir o consumo de alimentos industrializados, quero aumentar a presença dos naturais em minha dieta. Com isso, vejo mais benefícios vindo por aí”.
 
Vale registrar que o Ministério da Saúde (MS) fez acordo com a indústria de alimentos e assumiu a meta de reduzir 144 mil toneladas de açúcar até 2022, em cinco categorias: mistura para bolos, produtos lácteos, achocolatados, bebidas açucaradas e biscoito recheados. Agora, a Fundação Ezequiel Dias (Funed), por meio de seu Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen), apresentou os primeiros resultados do trabalho feito em conjunto com o MS e a OPAS para reduzir os níveis de açúcares em alimentos. 




 
Análises preliminares dos rótulos dos produtos mostram que, em alguns alimentos, há composições nutricionais variadas dentro de uma mesma categoria alimentar. Na categoria bebida láctea não fermentada, por exemplo, é possível encontrar, para uma mesma porção, valores que variam até 400% do conteúdo de açúcares. No waffer, os valores variaram até 300%. “Isso significa que um fabricante utiliza, de maneira geral, cerca de três ou quatro vezes mais açúcar do que outro”, explica Cristiane Goddard, uma das coordenadoras do trabalho na Funed.