Com apenas 15 meses de vida, o bebê João (nome fictício) já sofria os efeitos de não comer direito: seu peso estava acima do normal para a idade, indicando que seu corpo vinha acumulando gordura demais. Mas, ao mesmo tempo, ele estava anêmico, em níveis preocupantes.
João vinha sendo alimentado só à base de leite, farinha láctea e outros engrossantes. Nenhuma fruta ou alimento rico em ferro - que pudesse prevenir a anemia - fazia parte do cardápio da criança, cuja família mora na periferia de São Paulo.
"Esse bebê me chamou muito a atenção. É um caso que indica a desassistência dessas famílias vulneráveis (na pandemia de covid-19)", diz à BBC News Brasil a pediatra Maria Paula de Albuquerque, que atendeu a criança no Centro de Recuperação e Educação Nutricional (Cren), entidade sem fins lucrativos conveniada à prefeitura de São Paulo.
"Ele pode sofrer de atrasos no desenvolvimento por causa da anemia e está mais exposto a infecções. Também está tendo seu corpo programado para ter diabetes, pressão alta e obesidade na vida adulta. É um exemplo clássico da dupla carga da má nutrição."
Essa dupla carga, de quadros de desnutrição com excesso de peso (ainda na infância ou posteriormente, na vida adulta), parece estar piorando na pandemia, quando mais famílias vulneráveis estão tendo dificuldades em obter comida - principalmente alimentos in natura, capazes de prover os nutrientes, vitaminas e minerais necessários para uma infância e uma vida adulta saudáveis.
Muitas têm dependido de doações, que, embora sempre necessárias e bem intencionadas, nem sempre chegam na quantidade e na qualidade necessárias para garantir a boa alimentação da família.
Apesar de os dados detalhados sobre o quadro nutricional de crianças estarem mais escassos, por causa da redução de atendimentos e consultas presenciais na pandemia, pesquisas recentes retratam um cenário preocupante.
Cerca de 116 milhões de brasileiros conviviam com algum grau de insegurança alimentar em dezembro de 2020, aponta a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Desse total, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente, e 19 milhões passavam fome.
Piorou, também, a qualidade da comida ingerida: nos lares em situação de insegurança alimentar, o consumo de alimentos saudáveis caiu 85% na pandemia, aponta uma pesquisa do grupo Food For Justice lançada em abril.
Segundo o Unicef (braço da ONU para a infância), 29% das famílias brasileiras estão comendo mais alimentos industrializados, 22% estão consumindo mais bebidas açucaradas, e 18% estão ingerindo mais fast food, conforme mostra o levantamento Impactos Primários e Secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes.
Esses alimentos ultraprocessados costumam ser relativamente baratos e agradam o paladar. Mas também são repletos de sódio, gorduras e açúcares, e pobres em nutrientes.
"Como são baratos, o acesso a eles é facilitado. Não por acaso a gente encontra na mesma casa crianças sofrendo com sobrepeso e deficiência de vitaminas A e D ou anemia", diz à BBC News Brasil Islandia Bezerra da Costa, professora de nutrição em saúde pública da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e membro da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia).
Nosso corpo depende de vitaminas, proteínas e minerais para crescer, lembra Costa. E a fonte principal desses nutrientes são as frutas, vegetais, leguminosas e demais alimentos in natura ou minimamente processados.
"Por mais que a indústria alimentícia traga a ideia de que o biscoito recheado 'é rico em vitamina D', isso é uma falácia. Sua essência, na maioria das vezes, é de calorias, açúcar, sódio e gorduras."
Obesidade crescendo junto com a desnutrição
Na entidade beneficente Pastoral da Criança, desde 2019 tem causado alarme o aumento no número de crianças desnutridas, algumas em estado grave - algo que tinha se tornado uma raridade no país nas últimas décadas.
Só que crescem também os casos de obesidade entre as crianças atendidas, segundo os dados de IMC (índice de massa corporal) obtidos em consultas na rede pública de saúde. A entidade, por enquanto, vê esse aumento com cautela: como tem sido analisado um universo menor de crianças por conta da dificuldade de acesso a elas durante a pandemia, pode haver vieses estatísticos nos dados.
Mas existe uma preocupação com a piora na oferta de comida das famílias pobres.
"Muitas famílias estão vivendo de doação, e por isso têm de comer o que vem na cesta básica - e às vezes são ultraprocessados. A família deixa de ter poder de escolha", explica Caroline Dalabona, nutricionista da Pastoral da Criança. "Por isso a necessidade de uma política pública, para que essas pessoas tenham amparo e renda."
O temor de Dalabona é o impacto futuro na vida das crianças, caso a má alimentação não seja corrigida. "Seu desenvolvimento motor, emocional e cognitivo é afetado. Ela vai ter dificuldades físicas e intelectuais."
Esse impacto às vezes começa no útero, no caso de fetos cujas mães não se alimentaram bem, agrega Rosana Salles-Costa, que coordenou o estudo da Rede Penssan: "O organismo do bebê entende que passou por uma privação e que por isso precisa guardar uma reserva (calórica). Essa alteração metabólica explica por que a má alimentação na infância aumenta o risco de obesidade na vida adulta."
Na Pastoral da Criança em Pirapozinho, interior de São Paulo, a líder comunitária Eliane Cardoso visita as casas das famílias atendidas para acompanhar sua situação nutricional.
Ao mesmo tempo em que tem observado crescer o excesso de peso entre as crianças, "com certeza tem deficiência nutricional também. Vamos ver isso direitinho quando pudermos voltar a pesar e medir as crianças", explica.
"É algo que a gente já via antes nas férias escolares (quando as crianças estão sem a merenda): crianças com obesidade por causa de biscoito."
As famílias carentes de Pirapozinho têm recebido das escolas municipais as frutas e legumes que comporiam a merenda escolar, mas para algumas isso não tem sido suficiente. "Na escola, o prato vinha pronto para a criança comer, e em casa nem sempre é assim. Nesta semana, visitei uma casa em que a mãe não conseguia cozinhar para os filhos porque não tinha (como comprar) gás."
Para a professora Islandia Bezerra da Costa, esses problemas podem ser amenizados com o fomento a pequenos produtores agrícolas e suas redes, em vez da priorização de "um modelo de produção industrial que destrói florestas".
"Com a pandemia, várias feiras orgânicas que haviam sido criadas com muito suor foram fechadas, ao mesmo tempo em que houve um 'boom' para as redes de supermercados", critica. "A resposta para a má alimentação é a produção de alimentos saudáveis."
Comida 'de verdade'
No Recife, Sarah Marques do Nascimento comemora os primeiros brotos de melancias, melões e feijões que estão nascendo na horta comunitária da comunidade Caranguejo Tabaiares.
É uma região "com muitas casas de palafita e muitas famílias chefiadas por mulheres negras, que dependiam de subempregos, da pesca, de restaurantes ou que são autônomas", explica Marques, que preside a associação comunitária local.
Por conta dessa vulnerabilidade, muitas famílias viram sua renda despencar durante a pandemia.
"Ontem, fui dormir aperreada quando uma mãe me contou: 'botei meus filhos para dormir com fome e não sei o que vou dar pra eles quando acordarem'. Fomos atrás e conseguimos quentinhas, café da manhã e almoço pra eles", conta Marques.
Mas, muitas vezes, resta comer "o que aparece, o básico do básico. Até quando consegue doação de bolacha, vejo que o povo fica bem feliz".
Daí a aposta de Marques na horta comunitária e em articulações para obter doações de frutas, vegetais e peixes locais. Uma dessas articulações foi com o projeto Agroecologia contra a Fome, da ONG Greenpeace, que doou 200 cestas de alimentos, incluindo desde hortaliças até arroz, feijão, café e produtos da cultura alimentar local. Uma segunda leva será doada neste mês de julho.
O Greenpeace informa ter distribuído pelo projeto, até agora, um pouco mais de 14 toneladas de alimentos, em nove Estados do Norte e Nordeste.
Em São Paulo, a organização Cren, citada no início da reportagem, também ajudou famílias vulneráveis com a doação de alimentos orgânicos vindos de pequenos produtores locais, que até então vendiam sua produção para merendas escolares (o que foi interrompido na pandemia).
"Tiramos das cestas as doações de bolachas recheadas, achocolatados e macarrão instantâneo, que se são prejudiciais para uma pessoa saudável, imagina para as crianças desnutridas", explica a médica Maria Paula de Albuquerque.
Além dos legumes e verduras tradicionais, foram incluídas nas cestas algumas "plantas alimentícias não convencionais" (pancs) de baixo custo, como peixinho, ora-pro-nóbis e capuchinha, junto a vídeos instruindo as famílias sobre como incorporá-las ao cardápio.
"A aceitação dessas pancs foi boa, mostrando que é possível incorporar bons hábitos alimentares em momentos emergenciais", prossegue Albuquerque.
Uma preocupação adicional da médica, porém, é com o que chama de "colapso" na rede de atendimento de saúde a grávidas, mães e crianças pequenas, seja por medo das pessoas de irem às consultas ou pela sobrecarga do sistema por conta da covid-19.
"Não podemos deixar que as famílias parem de frequentar as UBS (unidades básicas de saúde), de fazerem as suplementações nutricionais das crianças", diz ela.
A anemia do bebê citado no início deste texto, por exemplo, poderia ter sido prevenida "se uma consulta de rotina tivesse identificado a deficiência em ferro e receitado um suplemento. É muito triste".
Para Rosana Salles-Costa, da pesquisa Penssan, será necessário observar os efeitos de longo prazo que a alimentação e a desestruturação familiar (emocional e de renda) terão nas crianças brasileiras.
"Com o desemprego recorde, as famílias não têm nem renda para aquisição de alimentos nem segurança no trabalho", diz. "Se as crianças têm mais mecanismos de proteção contra (formas graves da) covid-19 do que os adultos, e é bom que os tenham, elas também estão inseridas em famílias cada vez mais destroçadas."
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