Os Estados Unidos podem ser uma das nações mais ricas do mundo, mas em um quesito importante aparece em último: é o único país rico que não oferece um programa nacional de licença parental remunerada.
Hoje, apenas 21% dos trabalhadores americanos têm acesso à licença familiar remunerada por meio de seus empregadores — embora, de acordo com uma pesquisa do Pew Research Center, de 2015, em quase metade de todas as famílias biparentais o pai e a mãe trabalham em tempo integral.
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Essa falta de provisão contrasta fortemente com as nações europeias, onde a licença parental subsidiada é padrão.
Pesquisas mostram que a licença parental remunerada oferece benefícios indiscutíveis para pais, filhos e as sociedades dos países que a oferecem.
Há também um amplo apoio para isso nos EUA; de acordo com um estudo acadêmico publicado em abril, cerca de 82% dos americanos apoiam o acesso à licença parental remunerada. Percentual que se mantém praticamente o mesmo há anos — e inclui o apoio de todo o espectro político.
Os motivos pelos quais os EUA permanecem um caso isolado no que se refere à licença parental remunerada são complexos, combinando as necessidades do pós-guerra com uma complicada identidade cultural nacional baseada no individualismo e na autodeterminação.
Agora, no entanto, há uma pressão significativa para a mudança.
Em abril, o presidente dos EUA, Joe Biden, propôs um pacote de benefícios de US$ 225 bilhões para fornecer licença médica e familiar paga, que permitiria aos trabalhadores tirar até 12 semanas de licença remunerada para cuidar de um recém-nascido ou membro da família.
Em um país que se encontra mais polarizado do que nunca, dados mostram que a licença parental remunerada é uma das raras questões que pode contar com o apoio de eleitores de todos os tipos.
Então, por que nada foi promulgado a nível nacional até agora — e como o plano de Biden, que precisa ser aprovado pelo Congresso, pode se tornar realidade desta vez?
Dois caminhos diferentes
Globalmente, a base para a licença parental remunerada nacional foi lançada pelo Congresso Internacional de Mulheres Trabalhadoras em 1919, um grupo que incluía muitas mulheres americanas, escreveu Mona Siegel, professora de história na Universidade do Estado da Califórnia, nos EUA, autora de Peace on Our Terms: The Global Battle for Women's Rights After the First World War.
As demandas desse grupo por modelos de trabalho mais justos após a Primeira Guerra Mundial incluíam 12 semanas de licença maternidade remunerada como "uma necessidade médica e um direito social", política adotada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em novembro de 1919.
Nas duas décadas seguintes, países europeus e latino-americanos começaram a consagrar essas políticas em lei, mas foi o fim da Segunda Guerra Mundial que consolidou esse processo, sobretudo na Europa.
"Parte disso tinha a ver com os temores de declínio demográfico — com a perda populacional durante a Segunda Guerra Mundial e o que parecia ser a necessidade de se recuperar daqueles anos e garantir que houvesse uma força de trabalho forte no futuro", explica Siegel.
Resumindo, a Europa precisava de bebês para ajudar a repovoar suas nações devastadas pela guerra — e de uma força de trabalho forte para reconstruir as economias enquanto isso.
Na era do pós-guerra, diz Siegel, os argumentos europeus para a licença maternidade remunerada nacional foram formulados principalmente em termos econômicos, e não em torno dos benefícios sociais em que nos concentramos hoje.
O cenário do pós-guerra parecia um pouco diferente nos EUA, no entanto.
"Não tínhamos o mesmo tipo de medo sobre a necessidade de aumentar a população", explica Joya Misra, professora de sociologia e políticas públicas da Universidade de Massachusetts, nos EUA.
O país não havia sofrido perdas populacionais tão grandes na guerra, a economia estava indo bem e a imigração estava fortalecendo o mercado de trabalho.
Isso significava que as mulheres que eram mães nos Estados Unidos estavam "sendo encorajadas a voltar para casa, a liberar os empregos para os homens que estavam voltando do conflito e a se tornar donas de casa tomando conta da família", afirma Terri Boyer, diretora fundadora do Instituto Anne Welsh McNulty de Liderança Feminina da Universidade Villanova, nos EUA.
Trauma pós-guerra — e estratégias divergentes
As ideologias políticas extremas que surgiram globalmente influenciaram o modo como as nações elaboraram políticas de bem-estar no período pós-guerra.
Tanto os Estados Unidos quanto as nações da Europa Ocidental queriam reforçar as tradições democráticas após o trauma da Segunda Guerra Mundial, mas adotaram abordagens diferentes.
Os países europeus, explica Siegel, sentiram os efeitos do fascismo diretamente, e desse trauma veio a sensação de que a filosofia social de "cada um por si" era "alienante demais e deixava as pessoas vulneráveis %u200B%u200Ba ideologias extremistas".
Isso levou a um amplo apoio político a um estado de bem-estar social como uma ferramenta para gerar estabilidade social e econômica — e a solidariedade necessária para respaldar a democracia.
A licença-maternidade no Reino Unido, por exemplo, surgiu junto com as reformas voltadas para saúde pública e aposentadoria dos trabalhadores.
Os Estados Unidos, no entanto, reforçaram sua mentalidade cultural individualista, particularmente à medida que seu relacionamento com a então União Soviética se deteriorou depois da guerra.
Na esteira disso, uma "forte antipatia" por qualquer coisa que pudesse ser rotulada de socialista, ou pior, comunista, tornava muito mais difícil angariar apoio para criar políticas de bem-estar social de benefício universal, diz Siegel.
Ela observa que "qualquer tipo de assistência médica para mães ou bebês que frequentemente acompanham a licença-maternidade remunerada era considerada medicina social".
Qual trabalho — e de quem — é valorizado?
O individualismo americano alimentou as percepções do valor social e econômico da licença-maternidade.
Na Europa, a licença parental remunerada costumava andar de mãos dadas com a saúde pública e a educação infantil patrocinada pelo estado — uma trinca por meio da qual os pais podiam formar um vínculo com os filhos e depois voltar ao mercado de trabalho enquanto seus filhos recebiam uma sólida formação educacional.
O imposto a pagar por esses programas universais plantava as sementes para uma futura força de trabalho forte e uma sociedade educada e saudável, o pensamento era esse.
Mas nos Estados Unidos, a licença parental paga foi vista com mais desconfiança; em vez de uma maneira de manter as pessoas na força de trabalho, muitos viam como "um direito do qual as pessoas vão tirar vantagem para obter dinheiro do governo financiado por empresas e contribuintes", diz Boyer.
Essa visão estava enraizada na maneira como os diferentes tipos de trabalho e, na verdade, as pessoas foram valorizadas nos anos pós-guerra, e na ideia de que a licença parental universal remunerada poderia encorajar as famílias "erradas" a se reproduzir.
Houve, segundo Siegel, uma "forte pressão" para estabelecer que as mulheres afro-americanas que realizavam trabalho doméstico ou agrícola estavam de alguma forma "fora do reino do trabalho" e excluí-las.
"Havia um medo real de que, se você aprovasse qualquer tipo de política federal abrangente de licença maternidade, isso incluiria mulheres afro-americanas e, mais recentemente, mulheres imigrantes."
Parte do mercado de trabalho dos EUA ainda segue fortemente as linhas raciais, com muito mais serviços de baixa remuneração e empregos agrícolas sendo realizados por minorias.
Apenas 8% dos trabalhadores no quartil salarial inferior (que geralmente ganham menos de US$ 14 por hora) tiveram acesso à licença parental remunerada em 2020, em comparação com cargos administrativos que são preenchidos com mais frequência por candidatos brancos mais abastados e oferecem benefícios mais abrangentes.
Hoje, não é incomum ouvir comentários sobre a ideia de que as famílias pobres não deveriam receber apoio do governo porque "é culpa delas mesmo serem pobres".
Isso "remete a um certo nível de percepção racista de que se você está ajudando a todos, significa que está ajudando pessoas que não merecem", diz Misra.
"E aquelas pessoas que são definidas como não merecedoras tendem a ser pessoas de cor."
"O racismo desempenhou um papel fundamental na forma como estruturamos isso", ela acrescenta.
"E uma vez estruturado, é muito difícil de desconstruir."
Deixar nas mãos do mercado
Esses fatores ajudam a explicar por que em grande parte foi deixado nas mãos das empresas privadas determinar a licença parental para os funcionários, reforçando um sistema que privilegia alguns acima de outros e deixa 80% da população ativa para trás.
Parte da razão pela qual nenhum avanço foi feito na política a nível federal é que os legisladores estão divididos sobre como ela deve ser financiada.
"Os formuladores de políticas públicas discordam sobre como estruturá-la e como pagar por isso", diz Angela Rachidi, pesquisadora em estudos da pobreza do American Enterprise Institute.
"As pesquisas de opinião pública mostram que o povo americano não quer que o governo federal financie um programa de licença remunerada, preferindo que os empregadores paguem por isso. Mas as licenças pagas aumentariam os custos para os empregadores e reduziriam o emprego em geral."
Os americanos são realmente hesitantes quando se trata de um programa de financiamento público.
A mesma pesquisa que mostrou que 82% dos americanos apoiam a licença parental remunerada também revelou que apenas 47% apoiam o financiamento do governo para a mesma.
Os autores do estudo escrevem que essa relutância reflete "uma ideologia dominante do fundamentalismo de mercado", que envolve "uma preferência por mercados autorregulados e livres de interferência governamental".
Essa hesitação levou alguns líderes empresariais a presumir que teriam de arcar com os encargos financeiros de qualquer programa de licença parental obrigatório em âmbito nacional — algo que alguns relutam em fazer.
Em 2016, um número significativo de grandes empresas nos Estados Unidos ainda não oferecia licença parental remunerada para trabalhadores não assalariados, pais não biológicos ou pais adotivos.
Quanto às pequenas empresas, muitas simplesmente não têm fluxo de caixa para viabilizar o investimento de longo prazo em seus funcionários.
De acordo com a proposta de Biden, no entanto, o financiamento não virá dos empregadores, mas dos que ganham mais.
O plano dele prevê aumentar a alíquota de imposto de renda para o 1% dos americanos mais ricos de 37% para 39,6%, além de aumentar os tributos sobre ganhos de capital e dividendos para aqueles que ganham mais de US$ 1 milhão por ano.
Pode ajudar a ele o fato de já existirem precedentes de sucesso dentro do país — e que estão funcionando.
Vários estados já promulgaram sua própria legislação — um padrão que costuma preceder a política nacional nos EUA.
Califórnia, Nova Jersey, Rhode Island, Nova York, Washington e Massachusetts, assim como Washington DC, estabeleceram licença parental remunerada por meio de um imposto sobre a folha de pagamento, e logo se juntarão a eles Connecticut (2022), Oregon (2023) e Colorado (2024).
(Até o próprio governo federal concede 12 semanas de licença parental remunerada.)
"Vemos que os estados que adotaram foram realmente bem-sucedidos, que os donos de empresas disseram: 'Ei, isso está, na verdade, ajudando meu negócio; não estou perdendo tantos trabalhadores; estou meio que arrecadando sobre o investimento que fiz'" na força de trabalho, diz Misra.
Mudança à vista?
No momento, diz Misra, os EUA têm uma "janela política" para efetuar mudanças devido à forma como a pandemia de covid-19 expôs implacavelmente as desigualdades relacionadas ao gênero, segurança no trabalho e cuidado infantil.
Desde a pandemia, mais de 3 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho americano.
Como resultado, as pessoas estão acordando para os benefícios econômicos da assistência social em larga escala para as famílias. A saúde mental também está sob os holofotes mais do que nunca.
Antes da covid-19, a incapacidade de "conciliar tudo" pode ter sido vista como um fracasso pessoal pelas mães, em vez de um problema estrutural que deveria ser abordado pela política.
Mas há uma compreensão crescente — especialmente entre os profissionais mais jovens — de que é necessário mais apoio para ajudar os pais com uma carga impossível de gerir.
A obrigatoriedade nacional da licença parental remunerada teria vários benefícios.
"Quanto mais pessoas temos na força de trabalho assalariada, que também são capazes de ser produtivas (ou seja, não ter que se preocupar com responsabilidades concorrentes de tomar conta de crianças etc.), quanto maior nossa produção econômica, mais rápido nosso crescimento e melhor nossos resultados sociais", diz Boyer.
Se as mulheres não retornarem ao mercado de trabalho, ela acrescenta, isso forçará os formuladores de políticas públicas a encarar o fato de que as empresas não conseguem encontrar pessoas para preencher as vagas, e oferecer melhores benefícios para se manterem competitivas.
Mas isso não é um argumento para deixar o mercado seguir seu curso:
"A única maneira de fazer isso é ter algum tipo de assistência a nível federal ou público."
Resta saber se as iniciativas de Biden podem ser aprovadas — mas mesmo proponentes como Misra não estão confiantes.
"Acho que minha hesitação tem a ver com a maneira partidária como a política acontece", diz ela, citando o uso do obstrucionismo como último recurso, mas uma ferramenta eficaz para impedir a aprovação da legislação.
Há maneiras de contornar isso — mas poderia levar à aprovação do projeto de lei sem garantias vitais para os trabalhadores de que seus empregos seriam protegidos.
"A pandemia tem sido enormemente destrutiva de várias maneiras, mas com a destruição sempre vem a construção — porque você tem que descobrir como vamos recompor o sistema", ela acrescenta.
"E oferece, portanto, a oportunidade de repensarmos como estamos fazendo as coisas e considerar como estamos fazendo as coisas — eu só queria estar mais confiante de que isso realmente vai acontecer."
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Work Life.
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