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Estado de Minas COMPORTAMENTO

Indivíduos transgêneros enfrentam barreiras em meio à pandemia

Pacientes com disforia de gênero precisam buscar apoio no âmbito familiar


01/08/2021 04:00 - atualizado 01/08/2021 08:12
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Os indivíduos transgêneros se depararam com barreiras imensas e desafios diários
Os indivíduos transgêneros se depararam com barreiras imensas e desafios diários (foto: Gerd Altmann/Pixabay )

 
Imersos no caos da pandemia de COVID-19, os indivíduos transgêneros se depararam com barreiras imensas. Isso porque, para além dos desafios diários, o acolhimento multidisciplinar e, também, a paralisação de tratamento hormonal em razão da suspensão de medidas eletivas impactaram fortemente a vida das pessoas portadoras de disforia de gênero. Nesse cenário, se o acolhimento familiar já era fundamental, agora ela é tudo o que essas pessoas têm.

Para Clécio Lucena, mastologista e professor do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da UFMG, em um contexto “normal”, ou seja, sem levar em conta a catastrófica pandemia, o acolhimento familiar e social por parte de todos que convivem com esses indivíduos já é extremamente relevante. E isso tem a ver com o fato de que o principal ponto de apoio de qualquer pessoa é no âmbito familiar.

“Essa é uma condição que já é estigmatizante e frustrante pela dificuldade de inserção e de toda abordagem traumática que é o caminhar e o processo que esses pacientes vão ter em sua readequação de gênero. Então, o seio familiar é extremamente relevante. Além de diminuir a frustração, a receptividade faz uma diferença grande na superação dos traumas e acima de tudo do estigma que essa população constantemente vivencia”, comenta.
  
A família de Manuela Santarelli, de 14 anos, acolheu e fez do lar o porto seguro para a jovem
A família de Manuela Santarelli, de 14 anos, acolheu e fez do lar o porto seguro para a jovem (foto: Arquivo Pessoal/Divulgação)
Porém, em meio à pandemia e o necessário isolamento social, esse acolhimento se tornou essencial, já que muitos pacientes precisaram paralisar ou adiar seus tratamentos, o que interfere, e muito, na saúde mental do indivíduo. Clécio Lucena, no entanto, observa que, a princípio, é preciso entender a dificuldade dos pais em se adaptar, muitas vezes em razão da falta de conhecimento acerca do tema.

“Estamos vivendo um momento peculiar por causa da pandemia. Tudo foi afetado. A questão da saúde teve um impacto maior, principalmente porque todo o setor foi remanejado para tratar a COVID-19. E, obviamente, a emergência se impôs. Nesse caso, as situações eletivas foram adiadas em razão da priorização da urgência. Esses pacientes acabam se frustrando, porque havia um planejamento para realizar determinado procedimento ou tratamento. Isso foi impactado pela pandemia, com a suspensão ou adiamento. Do ponto de vista do bem-estar psíquico, eles acabaram ficando comprometidos.”

É um trabalho que passa em todo esse processo psicológico de acolhimento na saúde pelo seio familiar, pela questão do ambiente social e profissional desses pacientes, destaca. A fashionista Priscila de Melo Santarelli Raposo, de 41 anos, entende bem isso. Ela conta que sempre notou que Manuela Santarelli Raposo, atualmente com 14 anos, era diferente. Para ela e o marido, o vendedor Vanderley Ernane Raposo Filho, de 39, no início, foi um “susto”.

“Desde pequenininha, ela adorava tudo que era do universo feminino. Ela simplesmente ia para a aula de futebol e ficava imóvel, triste e não queria fazer nada. E quando ela entrou na puberdade, a Manu se tornou depressiva, triste e retraída. Ela não sorria. Ela começou a sofrer muito bullying, porque era muito feminina. Bateram muito nela. Até então, a minha desconfiança era que ela era homossexual. Porém, com a puberdade, ela começou a apresentar várias disforias, principalmente a respeito do genital.”

Conforme Priscila, Manuela sofria muito, chegando a querer arrancar o órgão genital. “Ela começou a se mutilar, se cortar e pensar muito em autoextermínio. Ela não sabia mais o que fazer, porque já tinha ido em três psicólogos e todos haviam dito que era coisa de criança. Mas como pode ser coisa de criança ela querer se matar? Aí, aos 12 anos, assistindo vídeos no YouTube ela se descobriu uma menina transexual. Ela se abriu para mim e fiquei muito assustada a princípio. Conversei com o pai dela, ele aceitou, não muito bem em razão das questões machistas e preconceituosas enraizadas.”

Ela conta que acolheu a filha como uma joia a ser lapidada. “Fizemos do nosso lar o porto seguro para ela e ensinei que ela tem que se amar e se respeitar acima de tudo. E, também, respeitar o próximo. Antes da pandemia, não tivemos acolhimento. Agora, muito menos. O ambulatório trans foi fechado. E ela precisa da hormonização, porque com as mudanças da puberdade, alguns gatilhos podem surgir. Tenho medo”, diz a mãe.

DISFORIA? 


Transgênero é um termo comum, mas disforia parece um termo de outro mundo? É quase a mesma coisa. Disforia de gênero vem da própria terminologia disforia, que significa ansiedade, depressão e irritabilidade em relação ao gênero, que é a identidade que cada um de nós percebemos em relação à questão do nosso sexo biológico. Ou seja, como eu percebo a minha identidade de gênero, explica Clécio Lucena.

“A gente sabe que isso hoje é muito mais amplo, tem-se uma diversidade de terminologias não apenas na questão binária. Não é só homem ou mulher, há uma diversidade. E a disforia de gênero é um processo não tão simples do ponto de vista de definição, existem critérios médicos, psicológicos e biológicos para definição do diagnóstico da disforia de gênero. Em linhas gerais, é quando há uma incongruência, ou seja, uma diferença entre a percepção do sexo biológico e a percepção de como se enxerga a identidade de gênero.”
 
(foto: Arquivo pessoal)
 

Essa é uma condição que já é estigmatizante e frustrante pela dificuldade de inserção e de toda abordagem traumática que é o caminhar e o processo que esses pacientes vão ter em sua readequação de gênero

Clécio Lucena, mastologista e professor do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da UFMG


Ou seja, quando há incongruência entre o gênero experimentado e o gênero designado de uma pessoa. Outro fator que se leva em consideração, segundo o especialista, é a duração dessa percepção, porque isso pode ser uma coisa transitória. Mas, nesses indivíduos com diagnóstico estabelecido de disforia de gênero, a duração dessa percepção tem que ser de pelo menos seis meses ou mais. Se um indivíduo teve uma percepção fugaz, uma situação muito pontual, que ele teve uma crise de identidade de gênero, isso não enquadra no diagnóstico de disforia de gênero.

Outro critério defendido é o forte desejo pelas características sexuais do outro gênero. O quarto critério é o forte desejo de pertencer ao outro gênero. O forte desejo de ser tratado como do outro gênero e a forte convicção de ter os sentimentos e reações típicas do gênero oposto aquele gênero biológico ou gênero de nascimento também são fatores considerados. “Essa definição em geral é feita por um acompanhamento psicológico para fazer esse tipo de definição de diagnóstico”, afirma.

Manuela Santarelli lembra bem de quando se descobriu. Ela não se enxergava no corpo que tinha, em seu corpo biológico. “Desde pequena, me identifico mais com o universo feminino. Quando me olhava no espelho, não enxergava quem eu realmente era, nunca me enxerguei como um menino, logo ver um menino no meu reflexo me fazia chorar, um gato no corpo de um cachorro. Com o tempo, fui enxergando quem realmente sou e queria ser.”


HORMONIZAÇÃO 


Após o diagnóstico, é feita a intervenção interdisciplinar, com apoio psicológico, endócrino e ginecológico/urológico ou qualquer especialidade que tem familiaridade com o manejo dos hormônios para fazer a instituição ou a reversão da questão hormonal do indivíduo. “Então, passa-se a ter o bloqueio do estímulo hormonal original. Se o indivíduo é biologicamente do gênero feminino, então ele tem ovários que vão produzir os hormônios femininos, e a gente tem que bloquear a estimulação hormonal e fazer uma estimulação com hormônios masculinos.”

“Há, então, duas situações. A gente antagoniza o hormônio feminino e faz a estimulação com o hormônio masculino. E o inverso também acontece. Ou seja, o indivíduo nasceu com gênero masculino e quer se tornar do gênero feminino, ele nasceu com testículo e tem uma forte produção do hormônio masculino, a gente vai usar drogas para bloquear a ação e fazer uma estimulação da chamada hormonização cruzada. Há também intervenções diversas, com a criação do cabelo, as próprias feições faciais, do pescoço, a questão do tórax corporal, tem o refinamento ou delineamento corporal do sexo que é almejado, ente outros.”

Por fim, há as cirurgias mais agressivas, conforme Clécio Leucena. São os procedimentos de mudanças de sexo, com a cirurgia de readequação, a de genital e as mamárias. Passada as fases cirúrgicas, pode-se fazer refinamentos estéticos para adequar a aparência desejada. Esses procedimentos só podem ser feitos a partir dos 16 anos. E, por isso, Manuela ainda segue na angústia. “Ainda não tenho idade e conto com o SUS. Me sinto acolhida e amada pela minha família, mas é muito difícil.”

* Estagiária sob a supervisão da editora Teresa Caram






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