Durante cerca de uma década, Cris Poli visitou diferentes lares pelo Brasil para ajudar os pais na relação com os filhos. No programa "Supernanny", exibido pelo SBT, ela se tornou figura constante no imaginário de muitas famílias brasileiras.
Não era incomum ouvir uma mãe ou um pai dizer que chamaria a Supernanny se o filho não obedecesse.
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A versão brasileira do programa criado na televisão inglesa estava prevista para durar cerca de um ano no Brasil, mas devido ao sucesso chegou a 10 temporadas. Mesmo após o fim do material inédito, a atração foi reprisada algumas vezes e até hoje é assistida no YouTube - onde acumula milhões de visualizações.
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Mais de cinco anos após o fim do programa, a ânsia por uma "super-heroína" para enfrentar os problemas relacionados aos filhos pequenos continua a mesma. Cris ainda recebe inúmeros pedidos de ajuda e passou a dar consultorias particulares de modo virtual a famílias de todo o país.
Para ela, uma educadora argentina que nunca havia trabalhado na televisão, o programa foi uma mudança completa de vida. Cris deixou o serviço em uma escola cristã bilíngue em São Paulo para se arriscar diante das câmeras. A experiência é classificada por ela como positiva e de muito aprendizado.
A Supernanny acompanhou cerca de 150 famílias em diversos lugares do país. Eram duas semanas em cada casa, que incluíam dias de observação e outros de aplicação do método adotado no programa.
Nessas casas, Cris notou dificuldades semelhantes que considera que persistem até hoje em muitos lares. O principal problema, avalia a educadora, está nos pais.
"As famílias procuravam a Supernanny por conta das crianças, porém a primeira e maior mudança é nos pais, porque se os pais não mudam, a criança não muda", diz Cris à BBC News Brasil.
Os problemas nas famílias
A Supernanny chegava aos lares após a família se inscrever por meio do site da atração. Na época havia milhares de pedidos de ajuda de todo o Brasil.
"Quando eu chegava nas casas era tipo a tábua salva-vidas. As pessoas, principalmente as mães, se penduravam no meu pescoço, choravam e diziam: vem me ajudar, porque eu não sei mais o que fazer. Então tinha muita angústia e desespero", relembra Cris.
"Essas famílias assinavam um contrato dispostas a expor os problemas delas na televisão em rede nacional. O que não é fácil e dá uma ideia do grau de desespero muito grande em que essas pessoas estavam", comenta.
Para Cris, há vários problemas semelhantes nas famílias que visitou e em tantas outras. "Tinha e continua tendo (problemas parecidos): a falta de paciência dos pais com os filhos, problemas entre o casal que acaba refletindo na família - morando junto ou separado - e problemas relacionados a muito trabalho e pouco tempo ou quase nada para ficar com os filhos", diz Cris.
"Isso traz uma série de dificuldades. Naquela época já era problema e hoje está pior, porque os pais trabalham muito, sempre muito ocupados e não têm tempo para cuidar dos filhos. E a responsabilidade da educação dos filhos acaba terceirizada ou para a escola. Mas essa responsabilidade da educação dos filhos é dever dos pais, a escola é parceira e trabalha junto, tem a função de ensinar e não de educar", completa a educadora.
Outro ponto que ela ressalta é a falta de demonstração de afeto nas famílias. "Não duvidei nunca e nem duvido que esses pais amem os filhos. Mas esse amor precisa ser exteriorizado. A criança precisa saber e ouvir do papai e da mamãe: eu amo você", diz.
Por meio do método da Supernanny, Cris tentou ajudar a resolver os diversos conflitos familiares. Mas para solucionar qualquer situação, ressalta a educadora, era fundamental que os pais estivessem dispostos a participar ativamente da vida das crianças durante o maior período possível. Além disso, os responsáveis deveriam dar continuidade ao que aprenderam durante o programa.
As orientações da Supernanny
Assim como outros países que também compraram o formato, a versão brasileira do programa Supernanny, que passou a ser exibido em 2006 pelo SBT, seguiu um manual criado pelos ingleses. Ali estava o método que deveria ser adotado e a forma adequada para lidar com os pais e as crianças.
Com o passar dos anos, diz Cris, foram feitas algumas alterações pontuais para trazer características mais próximas à realidade brasileira na condução do programa. No entanto, o conteúdo em geral permaneceu o mesmo da versão inglesa.
O "cantinho da disciplina", por exemplo, veio do formato original. Nesse método, que se tornou popular em lares brasileiros, os pais determinam quais regras os filhos devem seguir, como escovar os dentes após as refeições ou lavar as mãos antes de se alimentar.
"Essas regras são estabelecidas pelos pais e transmitidas para as crianças. Se ela cometer o mesmo erro três vezes, você chama e diz: olha, te avisei, você sabe a regrinha, então vai ficar um tempinho no cantinho da disciplina para pensar. Quanto tempo fica? Se ela tiver dois anos, fica dois minutos. Se tiver quatro anos, fica quatro minutos…", detalha a educadora.
"Se for além desse tempo (de um minuto para cada ano), a criança não tem condições de elaborar ou pensar aquilo que precisa ser ensinado. É um tempo pedagógico. Terminou esse tempo, vai lá e fala: entendeu por que está aqui? Não é preciso bater ou brigar, você vai conversar com a criança. E vai ser assim até ela entender esse processo de ensino", completa.
Durante o programa, a Supernanny cria uma rotina para a família, aponta algumas regras que podem ajudar no cotidiano e há também um quadro com avaliações, no qual a criança pode conquistar um ponto se for obediente (ao atingir determinado pontuação ela ganha uma recompensa) ou perder um ponto se não respeitar as regras da casa (isso pode gerar pequenas punições).
O método adotado no programa não é unanimidade e é apontado por alguns especialistas como uma forma autoritária de educar uma criança. Cris discorda dessas críticas e argumenta que o programa foi positivo para as famílias.
"É natural, você tem um ponto de vista e tem gente que concorda ou que discorda. Eu aceito, porque não tenho a verdade absoluta disso. A única coisa que posso trazer como base de que estou certa naquilo é o resultado. As 150 famílias com problemas diferentes e históricos diferentes aplicados os mesmos princípios deram certo", rebate Cris.
Ela diz que até hoje aplica um método semelhante em suas consultorias online.
'Me agrediu mesmo'
Ao defender as medidas adotadas na atração, Cris cita alguns casos de famílias que visitou durante o programa.
Em um episódio, ela acompanhou dois irmãos que moravam com a mãe e os avós maternos. "A mãe trabalhava muito e esses garotos eram muito violentos, tanto que entrei lá e o mais velho, de quatro anos na época, me rejeitou, jogou as coisas contra mim e me agrediu mesmo. Mas eu fui dando amor para eles, brincando, fazendo métodos e trabalhos com eles para expressar amor. Nisso, a criança mudou comigo. Isso prova a carência", diz.
"Os pais ficam estressados e, infelizmente, acabam descontando nas crianças, o que as torna violentas", comenta a educadora.
Em outro caso, Cris acompanhou uma família na qual a mãe tinha muita dificuldade para demonstrar afeto.
"Essa mãe tinha bastante disciplina e horário com os filhos, mas ela tinha muita dificuldade para se expressar emocionalmente por conta da primeira filha ter síndrome de Down e de muita exigência na vida dos outros dois filhos", comenta.
"Isso teve que ser transformado também dando amor e trabalhando com a mãe. Ela chorou muito e falou muito comigo. No fim, deu tudo certo", diz.
Em outra família, a irmã mais velha, na época com 18 anos, assumiu a responsabilidade sobre os dois mais novos após perderem os pais vítimas de câncer.
"Ela estava sozinha com os dois irmãos e era um problema porque ela não era mãe, tinha só 18 anos. Os irmãos não reconheciam a autoridade dela, então era um problema de violência, rebeldia e desobediência", relembra a educadora.
Em um dos programas, anos após a estreia, Cris revisitou algumas das primeiras famílias que acompanhou. Ela diz que algumas continuaram seguindo cerca de 80% de tudo o que a educadora ensinou no programa.
"O que vi nesse retorno é que famílias que seguiram o princípio da necessidade de mudança continuaram aplicando o que levei. As famílias que não entenderam e voltaram atrás, tudo bem", afirma Cris.
"No programa, eu ficava duas semanas na casa daquela família, então era um momento e uma idade, mas três anos depois a criança já não tem a mesma idade, muita coisa mudou e não dá pra permanecer 100% com aquilo que foi pactuado", afirma. Ela ressalta que as medidas precisam ser revistas conforme a idade das crianças avança.
A 'Supernanny' e o cenário atual
Mesmo cinco anos após o fim da versão brasileira, Cris ainda recebe inúmeros pedidos do público para que o programa retorne.
A educadora, hoje com 76 anos, acredita que é pouco provável que a atração volte. "Acho que foi um ciclo que não tem como voltar", comenta.
Porém, ela frisa que se o programa retornasse, seria fundamental se adaptar à realidade atual do país, em razão da pandemia de covid-19 e do atual cenário de crise econômica.
"A pandemia machucou muito o relacionamento dos pais e dos filhos. Teve muita gente sem trabalho, muita gente que perdeu entes queridos, teve o conflito de estar todo mundo trancado em casa durante dois anos e tendo que conviver uns com os outros. Os pais trabalhando online, quando tinha trabalho. As crianças estudando online, quando tinha aula…", diz Cris.
"Tudo isso mudou a dinâmica das famílias, fora o próprio estresse da pandemia, pelo trabalho, pela saúde e pelo período, por não saber o que iria acontecer. Foi bem traumatizante. Não foram dois meses, foram dois anos para começarmos a sair aos poucos", acrescenta a educadora.
Além disso, ela pontua que o cenário atual também é impactado pela dura crise econômica brasileira: com índices de desemprego em alta, redução do poder de compra e muitas famílias com dificuldades até mesmo para conseguir os itens mais básicos da alimentação.
"Vejo muitas crianças precisando de atenção dos pais que estão muito preocupados em trabalhar, trazer dinheiro para casa, trazer comida e comprar coisas básicas. Não estou culpando os pais, mas estou explicando a situação", diz.
"Os pais trabalham muito e não há tempo para as crianças, que ficam com os avós ou na frente da televisão, do computador ou do celular", completa a educadora.
O aumento do tempo que as crianças passam diante das telas é outro ponto que ela destaca sobre as mudanças dos últimos anos. "Pros pais ficarem tranquilos, celular e computador se tornaram solução", pontua.
"Naquela época (do programa), a internet já era um problema, mas hoje cresceu muito com a disponibilidade dos celulares e das redes sociais. As crianças são colocadas na frente do celular ou da internet muito cedo, isso é prejudicial", declara.
Ela comenta que a recomendação de especialistas é que crianças de 0 a 2 anos não tenham nenhum contato com telas.
"O cérebro está em formação, os neurônios se multiplicando e a criança pequena é uma esponjinha e pega tudo o que você colocar pra ela. Essa criança precisa brincar, precisa de brinquedos interativos e estar com os pais", diz a educadora.
"A partir dos dois anos, com controle, pode ser meia hora por dia, isso até uns seis ou sete anos. Depois pode ir aumentando aos poucos, mas precisa ter controle dos pais. O problema é que quando está em frente à tela, a criança fica quieta, não chama, não pede, não bebe, não come, não faz nada e não atrapalha o dia dos pais (ou dos responsáveis). Então, tem que haver um controle, uma supervisão e um horário", afirma.
Como consequência da alta exposição às telas, ressalta Cris, há dificuldades para socializar, desobediência, a criança fica muito calada e pode apresentar problemas de comunicação.
Diante desse cenário econômico e social dos últimos anos, Cris avalia que o atual momento - em que as escolas retornaram ao presencial e a vida parece voltar aos poucos ao normal - deve ser um período de recomeço na relação entre pais e filhos.
"É um reaprendizado (para os pais) para voltar a montar os esquemas de acordo com a nova realidade. E os pais precisam entender que os filhos precisam deles", diz.
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