Qual é a diferença entre viver e sobreviver diante do câncer – uma doença tão temida e avassaladora? Segundo Marcela Mascarenhas de Paula, oncologista e paliativista do Grupo Oncoclínicas Belo Horizonte, “ao ser diagnosticado com câncer, a primeira coisa que vem à mente do paciente é que um sofrimento insuportável o aguarda. Toma conta da imaginação, ocupa as lembranças e infiltra-se em todas as conversas e pensamentos”, comenta a especialista.
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'Meu marido era fumante, mas eu que tive câncer'O câncer raro que tem dor nas costas como principal sintomaPor que seleção natural não 'apagou' doenças como câncer de mamaMulheres com diabetes têm risco maior de infecções ginecológicasComo aborto passou de prática comum a estigmatizada e proibida ao longo da história“Infelizmente, muitos têm a vida praticamente apagada pela doença, já que lidam com o adoecimento de maneira diferente, amparados por suas vivências. Ter alguém que acolha esse sofrimento é uma das coisas que mais trazem paz nesse momento. Percebo que quando a pessoa sobrevive a essa doença, ela passa a dar mais valor à vida, pois já teve um contato direto com a possibilidade da morte e aceita que o futuro é imprevisível. Noto que os pacientes que passaram por experiências difíceis ficam mais leves, menos rancorosos e mais dispostos a serem felizes, passando a valorizar pequenas coisas.”
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Para a oncologista, não é uma questão de o paciente escolher viver: “Há certos tipos de câncer que darão à pessoa a oportunidade de viver e seguir em frente; mas outros, infelizmente, não. Sabemos que, independentemente do diagnóstico, todos os pacientes precisam de profissionais capazes de entender a dor de cada um, ajudando-os a transformar o sofrimento em algo que faça sentido”, comenta.
“Mesmo aqueles pacientes com um prognóstico mais reservado, podem escolher viver o tempo que lhes resta com mais qualidade de vida. Nunca, em hipótese alguma, devemos dizer que ’não há mais nada a ser feito’. Sempre digo que em determinados momentos pode não haver tratamentos disponíveis para a doença, mas há muito mais a fazer pela pessoa e por seus familiares”, acrescenta a especialista.
SAÚDE MENTAL Na experiência de Marcela, a saúde mental ajuda a lidar com um diagnóstico difícil, mas mesmo as pessoas mais frágeis emocionalmente, se contarem com o suporte e o acolhimento da equipe multiprofissional, certamente conseguem elaborar suas dificuldades e encarar a doença com menos sofrimento.
“No momento extremo da dor, vem a tristeza, o choro, o desespero e a raiva. Digo que todos esses sentimentos devem ser aceitos e experimentados, pois quando reconhecemos esse sofrimento, ele quase sempre se ameniza. E quando o negamos, ele pode se apoderar da nossa vida inteira.”
O lugar do medo
A médica afirma que, diante do câncer, o medo tem um lugar de destaque, e ele precisa ser ouvido e validado. “Da mesma forma que o medo pode nos paralisar, ele pode impulsionar a pessoa a buscar uma qualidade de vida melhor. Lidar com a finitude gera medo, mas pode também gerar potência. A doença dá medo, mas o sofrimento excessivo causa terror e nos impede de vislumbrar uma alternativa. É esse sofrimento que precisa ser cuidado para que o paciente possa ter a melhor qualidade de vida possível.”
A fé é um instrumento sempre em voga diante do diagnóstico. Marcela explica que lidar com a doença não é somente uma questão de crença: “Sobreviver é uma questão, principalmente, da medicina – que nos dá a possibilidade de sermos salvos. A fé nos qualifica para lutar, como se nos desse um arsenal para encararmos a luta, mas há diversas variantes nessa luta: médico, doença, medicamentos e também a fé”.
O câncer ainda carrega a marca do nome, muitas vezes evitado, além de ser recebido por muitos como sentença de morte: “Câncer é o nome dado a um conjunto de mais de 100 doenças que têm em comum o crescimento desordenado de células que invadem tecidos e órgãos. Podemos perceber que é uma doença extremamente heterogênea, com comportamentos variáveis. Vimos ao longo do tempo o advento de novos tratamentos e melhora do suporte clínico, gerando um aumento importante no tempo de vida e na qualidade de vida dos pacientes oncológicos”.
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Marcela ressalta que não é correto generalizar. Cada pessoa reage de uma maneira singular diante da doença. O importante é que ela seja acolhida. “O que sabemos é que precisamos fazer parte do instrumento que transforma sofrimento em alívio. No meu dia a dia, vejo que quando o paciente percebe que pode estar caminhando com uma doença que ameaça seriamente sua vida, há uma transformação importante na sua percepção de mundo. Nosso objetivo é estar presente ao lado do paciente, acolhendo sua dor (não somente a dor física) e trabalhando para que seu sofrimento seja amenizado.”
Cuidados paliativos promovem qualidade de vida dos pacientes e suas famílias
O cuidado paliativo, esclarece a especialista, é uma abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e seus familiares, que enfrentam doenças que ameacem a continuidade da vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento.
“Diferentemente do que muitos pensam, a medicina paliativa não vem quando ‘não existe mais nada a ser feito’. Trabalhamos em conjunto com a equipe assistente para promover uma melhor assistência aos pacientes e seus familiares. Estudos evidenciam que pacientes oncológicos em acompanhamento com equipes de cuidados paliativos têm melhor qualidade de vida e, por muitas vezes, podem viver por mais tempo”, diz.
“A base do cuidado paliativo é promover o alívio do sofrimento físico, mas o paciente é visto em todas as suas dimensões. O objetivo é que todos os procedimentos diagnósticos e terapêuticos propostos devem ter como finalidade a manutenção do conforto, dignidade, qualidade, significado e valor da vida, em todas as suas dimensões.”
DESAFIO A oncologista destaca que, felizmente, o acesso dos pacientes aos cuidados paliativos vem sendo cada vez mais frequente, tanto no Sistema Único de Saúde (SUS) quanto na rede privada. “O grande desafio é dedicar ainda mais qualidade de tempo e atendimento aos pacientes em cuidados paliativos. É necessário, também, garantir que ele, ao sair da consulta, esteja acolhido, sabendo que, caso tenha dor, que a dor dele vai melhorar; que a família dele saiba que, mesmo no momento mais difícil da vida deles, eles não estarão sozinhos; que esse sofrimento vai ser cuidado pela equipe.” “Portanto, acredito que o maior desafio para a rede pública e privada é atender a todas as demandas e conseguir oferecer um cuidado próximo a todos aqueles que necessitam.”
Em seu trabalho, Marcela Mascarenhas de Paula revela que busca responder a uma única pergunta: “O que eu posso fazer para aquela situação ser menos dolorosa e o menos difícil possível? O que tenho que aprender para estar lá, ao lado daquela pessoa e dos seus familiares, e fazer com que aquilo seja vivido de uma forma menos sofrida do que se eu não estivesse presente? Enquanto as pessoas não olharem para a morte com a honestidade de perguntar a ela o que há de mais importante sobre a vida, ninguém terá a chance de saber a resposta. A melhor coisa que posso fazer por alguém nesse momento é estar presente. Presente ao lado dessa família, diante dela, por ela e para ela.”