Foi-se o tempo em que os cientistas pensavam que pegar COVID era uma experiência que cada um de nós só teria uma vez na vida. Atualmente, se sabe que a reinfecção está se tornando cada vez mais comum e, em casos mais raros, pode até acontecer com uma janela de intervalo de poucos dias entre o primeiro e o segundo quadro.
Porém, a janela de imunidade pós-COVID mais aceita entre os especialistas nos dias de hoje varia entre três meses a cinco anos.
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E, embora a janela de imunidade possa variar entre poucas semanas a até alguns anos de pessoa para pessoa, as evidências científicas mais recentes permitem entender um pouco melhor como nossas células de defesa atuam, quanto tempo essa proteção costuma durar e quais são os fatores que facilitam o contato com o coronavírus seguidas vezes.
Contra-ataque coordenado
Mas, antes de mais nada, como funciona nosso sistema imunológico durante uma infecção viral?
Tudo começa quando um vírus invade o corpo e começa a usar nossas próprias células para criar novas cópias de si mesmo.
Uma hora ou outra, esse processo anormal chama a atenção das unidades de defesa, que iniciam um contra-ataque para conter a expansão do patógeno.
Esse trabalho envolve um verdadeiro batalhão de células, das quais é possível destacar duas entre as mais importantes: os linfócitos T e B.
Os linfócitos T têm a função de coordenar a resposta imune. Eles identificam as células infectadas e as matam.
Já os linfócitos B são os responsáveis por produzir os anticorpos específicos, uma espécie de "antídoto personalizado" que gruda e inativa os vírus.
"É como se o linfócito T disparasse um míssil que destrói a estrutura doente. Daí, os vírus que sobram são neutralizados pelos anticorpos dos linfócitos B", resume Antonio Condino Neto, professor sênior de imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP).
Se todo esse trabalho for bem sucedido, eventualmente a infecção é controlada e os vírus são completamente eliminados do organismo.
Isso, por sua vez, gera um tipo de aprendizado ao sistema imunológico. Por um tempo, as células de defesa em circulação sabem como agir caso o vírus em questão resolva tentar uma nova invasão.
Um mecanismo de proteção parecido acontece durante a vacinação — com a vantagem de as unidades imunes serem "treinadas" sem que o corpo padeça pela ação de um patógeno de verdade.
Mas daí vem uma questão importante: por quanto tempo essa imunidade se mantém?
A resposta para essa pergunta varia consideravelmente de acordo com o vírus e as características de cada um.
"De um lado, há doenças como sarampo ou rubéola, que geralmente só temos no máximo uma vez na vida e acabou", diz Condino Neto.
"Do outro, temos gripe, COVID e resfriados, que podemos pegar por diversas vezes", compara.
Mas o que diferencia um grupo do outro?
Um drible muito efetivo
Há diversos motivos que ajudam a entender por que em alguns casos a imunidade dura muitos anos (ou até para sempre) e, em outros, ela vai embora rapidinho.
Um dos principais fatores tem a ver com as próprias características do vírus e a interação que ele tem com nosso organismo.
Vamos começar com a parcela desses patógenos que é estável e permanece praticamente igual ao longo de décadas ou séculos.
Essa característica representa uma boa notícia para o sistema imune, que consegue reconhecer o agente infeccioso e resgata as instruções de como combatê-lo, graças à infecção prévia ou à vacinação.
Agora, imagine o cenário oposto, que acontece quando os vírus circulam com muita rapidez e são uma verdadeira metamorfose ambulante?
Esse é o caso do Sars-CoV-2, o coronavírus responsável pela pandemia atual: ele sofre mutações genéticas a todo o momento conforme é transmitido de pessoa para pessoa.
Se essas alterações trouxerem vantagens ao patógeno — como uma maior facilidade para infectar as células ou a capacidade de driblar a resposta imune, por exemplo — elas vão prosperar.
É assim que surgem as variantes de preocupação. Essas novas versões do vírus ganham terreno e estão por trás de reedições nas ondas de casos, hospitalizações e mortes.
Ao longo dos últimos dois anos e meio, vimos esse fenômeno acontecer ao menos cinco vezes, com a chegada das variantes alfa, beta, gama, delta e ômicron.
Mais recentemente, o aparecimento de subvariantes derivadas da ômicron, como a BA.2 e a BA.5, acelerou e aprofundou ainda mais esse processo.
Em suma, todas essas linhagens carregam mudanças nos genes que apareciam no vírus "original", detectado pela primeira vez em janeiro de 2020 em Wuhan, na China.
Do ponto de vista das nossas defesas, esse fato representa uma péssima notícia. Isso porque a resposta imune obtida através de uma infecção prévia ou da vacinação se torna cada vez mais desatualizada.
Com o passar do tempo — e o surgimento de novas variantes com mutações genéticas mais diversas — o resultado do trabalho dos linfócitos B torna-se cada vez menos efetivo.
Isso porque os anticorpos que eles fabricam são montados especificamente para neutralizar o causador da primeira infecção — ou, de preferência, estão alinhados à formulação original da vacina, que carrega instruções para combater as versões mais antigas do vírus.
Ou seja: se uma variante que tenta invadir o corpo apresenta mudanças significativas na estrutura, os tais anticorpos não conseguem mais agir como se esperava.
O que está acontecendo agora?
Esse processo de aprimoramento viral parece estar longe de terminar: desde o final de 2021 e o início de 2022, várias subvariantes da ômicron foram detectadas.
Linhagens como a BA.2 e a BA.5 apresentam uma capacidade ainda maior de infectar nossas células e de escapar da imunidade prévia.
E isso, por sua vez, torna os quadros de reinfecção cada vez mais frequentes e com janelas curtas em relação ao primeiro episódio de COVID — afinal, há uma incompatibilidade entre o vírus que nosso sistema imune reconhece e as versões dele que estão circulando atualmente.
"O vírus dá um jeitinho de furar nossas defesas", observa Condino Neto.
Uma pesquisa feita pelo Instituto de Sorologia da Dinamarca, que não foi publicada em nenhum jornal especializado, se tornou uma das primeiras a chamar a atenção para o fato que uma reinfecção com a variante BA.2 poderia acontecer pouco tempo depois de a pessoa ter sido afetada pela BA.1 (a ômicron "original").
No artigo, os pesquisadores descrevem casos raros de pessoas que tiveram um segundo quadro de COVID pela BA.2 cerca de 20 dias depois de testarem positivo pela primeira vez com a BA.1.
Que fique claro: pelo que se sabe até o momento, casos como esses, em que a COVID se repete em poucos dias, são atípicos e a tendência é que a imunidade dure ao menos alguns meses.
Uma pesquisa feita nas universidades Yale e Temple, ambas nos Estados Unidos, e publicada em dezembro de 2021 no The Lancet estimou que, numa situação de endemia, a reinfecção pode ocorrer numa janela de tempo que varia de três meses a até cinco anos.
Vale destacar que o estudo foi feito antes do espalhamento da ômicron e suas subvariantes, que podem ter interferido nessa janela de imunidade.
"Além disso, em situações que a pessoa tem a mesma doença duas vezes em menos de 45 dias, precisamos avaliar se o vírus não ficou 'escondido' por um tempo e a infecção foi reativada depois", diferencia o imunologista Luiz Vicente Rizzo, diretor-superintendente de pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
"Temos evidências de que o coronavírus é capaz de se esconder no sistema nervoso central e nos testículos por um período, locais em que a ação do sistema imune é limitada", complementa.
Enquanto a ciência ainda tenta encaixar todas as peças desse quebra-cabeças, há um consenso maior de que o coronavírus está sempre se modificando de modo a passar despercebido pelo sistema imunológico.
Um estudo divulgado em junho de 2022 pelo Imperial College de Londres, no Reino Unido, revelou que pessoas infectadas com a ômicron têm uma resposta imune mais fraca e com pouca capacidade de evitar novos quadros de COVID, mesmo entre aquelas que já tinham pegado COVID no passado e estavam vacinadas com três doses.
Os especialistas chegaram a classificar as subvariantes que estão em circulação como "furtivas", pela capacidade delas de agir às escondidas das células de defesa.
A investigação mostrou que essas novas versões virais não deixam uma "marca" nas células de defesa, de modo que elas não se lembram muito bem como combater o vírus dali em diante.
"Ser infectado com a ômicron não representa um reforço potente na imunidade contra reinfecções no futuro", explica a professora Rosemary Boyton, autora principal do trabalho em comunicado à imprensa.
Ótima notícia com prazo de validade?
Apesar de tantas mudanças nas relações entre o coronavírus e a nossa imunidade, ao menos uma coisa continua a funcionar relativamente bem na maioria das vezes: a proteção das vacinas contra complicações, hospitalizações e mortes relacionadas à COVID.
Esse resguardo acontece por meio da ativação da memória do sistema imunológico e a ação de células como os linfócitos T.
Em termos práticos, o coronavírus até consegue entrar no organismo e driblar os anticorpos num primeiro estágio.
Mas logo entra em cena o batalhão de células imunes comandadas pelos linfócitos T, que controlam a situação e impedem que o vírus ganhe terreno e cause sintomas mais graves.
"O vírus até entra e causa incômodo, mas, graças à memória imune, ele logo toma 'umas invertidas' e cai fora", conta Condino Neto.
É exatamente isso que testemunhamos ao longo dos últimos meses: ainda que a ômicron esteja por trás de recordes de casos de COVID, as hospitalizações e as mortes não subiram na mesma proporção.
E mesmo naquelas pessoas que estão testando positivo pela segunda ou até pela terceira vez, a tendência é que o quadro seja bem mais leve, marcado por sintomas que costumam lembrar um resfriado comum, como coriza, tosse e dor de garganta.
"Por isso, é muito importante que as pessoas estejam com o esquema vacinal em dia. Quem está com as doses atrasadas deve ir correndo tomar as suas", sugere Condino Neto.
Segundo o portal CoronavirusBra1, apenas 51% da população brasileira tomou a terceira dose de vacina, que é considerada primordial para ampliar a proteção contra as formas mais graves da COVID.
O pesquisador da USP reforça que o imunizante ajuda a "acordar" o sistema imune e "aumenta as chances de, se você pegar COVID de novo, ter uma forma mais branda da doença".
Rizzo acrescenta que, além de estar com a vacinação em dia, não podemos "baixar a guarda" com as outras medidas preventivas.
"O coronavírus não veio de outro planeta. É só a gente usar máscara e tomar alguns cuidados que ele não passa", esclarece.
"Não temos que esperar o governo dizer que precisamos nos cuidar. Cada um deveria pensar em sua própria responsabilidade nessa história."
O imunologista alerta que, dada a recente história de mutações e variantes, não está descartada a hipótese de que apareça uma versão agressiva do vírus, que consiga escapar completamente da proteção conferida pelos imunizantes disponíveis.
"Toda vez que alguém se infectar, entramos numa espécie de loteria. Será que dali vai sair um coronavírus cheio de mutações que escape das vacinas?", questiona.
De acordo com o painel de informações do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), a média móvel diária de novos casos de COVID-19 no Brasil supera os 57 mil.
"Nosso comportamento atual só está incentivando que esse cenário vire realidade", lamenta.
Boyton, do Imperial College, concorda com o ponto de vista do colega brasileiro. "A preocupação é que a ômicron pode potencialmente sofrer outras mutações e se tornar uma variante ainda mais patogênica, ou com capacidade de superar a proteção das vacinas."
"Nesse cenário, pessoas que pegaram essa variante anteriormente estariam menos protegidas contra a ômicron, a depender do perfil imunológico delas", conclui.
- O texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62098817
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