Quem imaginou que seria possível realizar procedimentos de alta complexidade no cérebro com o paciente acordado? O que antes só poderia ser pensado em um futuro distante, hoje, graças aos avanços da medicina, tem se tornado cada vez mais comum, principalmente quando se trata de técnicas cirúrgicas.
No contexto da neurocirurgia, que inclui procedimentos que envolvem um nível de complexidade muito grande, qualquer alteração ou dificuldade pode significar um aumento no risco de gerar no paciente sequelas motoras, cognitivas, de sensibilidade ou de linguagem. É uma área médica que demanda cuidado e investimentos para desenvolver métodos com melhores resultados e uma margem de segurança mais ampla.
Neurocirurgião membro da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia (SBN) Felipe Mendes destaca, dentre essas evoluções, o uso do neuronavegador. Um sistema de localização que, segundo ele, funciona como um GPS, permitindo navegar dentro do cérebro e informar exatamente onde se encontram as alterações. "Isso faz com que o caminho que precisa ser percorrido para alcançar uma lesão seja mais preciso e reduz, consequentemente, o risco de sequelas."
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Outra inovação é a utilização de microscópios com luzes especiais associadas a corantes que, quando injetados na corrente sanguínea do paciente, possibilitam visualizar as áreas em que existe a presença de lesões tumorais, devido à sua coloração diferente da do restante do tecido em volta que está sadio. Dessa maneira, é possível retirar a lesão de forma mais precisa.
O especialista acrescenta que esses mesmos corantes funcionam também para auxiliar as cirurgias de aneurisma, após a clipagem. "Com eles é possível visualizar como o fluxo sanguíneo está passando dentro dos vasos, se houve alguma área com circulação reduzida ou não, garantindo que a cirurgia tenha mais sucesso e redução da chance de sequelas."
Cirurgia com paciente acordado
Algo que já consolidado para cirurgias de tumores nos últimos anos é a cirurgia com o paciente acordado no tempo principal. De acordo com o neurocirurgião, o procedimento é seguro por mostrar, em tempo real, se a manipulação que o médico está realizando dentro do cérebro não está causando nenhum risco de sequelas, principalmente na linguagem ou na parte motora do indivíduo submetido ao procedimento.
"Atualmente, nós conseguimos adaptar essa técnica às cirurgias de aneurismas, um procedimento complexo e delicado. São feitas em casos selecionados, no momento em que é feita a clipagem. Assim, é possível averiguar se o paciente continua bem, falando e se movimentando bem. Isso traz uma segurança muito grande."
Foi o que aconteceu com a dona de casa Anísia Ornelas Fernandes, de 70 anos. Mineira de Teófilo Otoni, ela foi a primeira paciente do interior do estado a realizar essa cirurgia, em Sete Lagoas, na Grande BH, onde reside.
"Descobri que estava com a doença através de um exame de ressonância magnética e estava sem nenhum sintoma. A decisão pelo procedimento foi em dezembro de 2021 e veio logo após o diagnóstico."
O médico neurologista explica que antes, com a técnica tradicional, a clipagem era feita e só era possível ver se o paciente desenvolveu alguma sequela quando o procedimento terminava e acabava a sedação. Era nesse momento que o especialista pedia para que o indivíduo movimentasse os braços, pernas ou falasse, para saber se houve ou não alguma alteração.
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"Com a técnica acordada, conseguimos fazer isso em tempo real, simultâneo. Com o surgimento de qualquer alteração, é possível modificar a estratégia, reposicionar o clipe ou pensar em outra alternativa para o tratamento, com o intuído de reduzir o risco de isquemia e posterior sequela neurológica."
Anísia teve uma cirurgia e pós-operatório satisfatórios. "Foram quatro dias de internação na UTI. Em seguida fui para o quarto e depois de 15 dias já estava realizando o retorno médico sem sequela alguma."
O primeiro procedimento com paciente acordado feito por Felipe Mendes, pelo neurocirurgião Bernardo Aramuni e equipe aconteceu em Belo Horizonte. Na ocasião, o paciente já apresentava como sequela um lado do corpo paralisado. "O aneurisma que íamos operar estava em um lado do cérebro que controlava a parte que ainda estava sadia e que conseguia movimentar. Para ele era muito importante que não houvesse nenhum risco, pois, caso ele desenvolvesse, ficaria sem o movimento das duas pernas e dos dois braços. Por isso propusemos que ela fosse com ele acordado." O procedimento foi bem sucedido, sem consequências negativas e evoluiu de forma satisfatória.
Anísia já aguarda o próximo mês para realizar novos exames para saber se existe a necessidade de uma outra cirurgia. "Eu tinha três aneurismas. Um foi bloqueado pelo próprio organismo, para o outro foi feito o procedimento e, provavelmente, em agosto, devo operar o terceiro."
Mas não é toda cirurgia de aneurisma que tem indicação para ser realizada com paciente acordado. Existem pessoas mais ansiosas ou tensas e que não gostam do ambiente de bloco cirúrgico. Permanecer acordado para elas, por menor que seja o período dentro de um ambiente assim, e realizando o procedimento cirúrgico, pode gerar angústia e tensão. "Para isso, nós fazemos sempre uma entrevista inicial, explicando como vão ser todos os passos e perguntamos se a pessoa se imagina conseguindo passar pela situação", pondera Felipe Mendes.
Outras localizações de aneurisma também não necessitam dessa técnica porque são regiões com menor risco de acometer porções do cérebro que controlam o movimento ou linguagem. "Mas, para aqueles aneurismas que estão próximos de região que controla a linguagem ou a movimentação de um lado ou outro do corpo, principalmente quando não há a técnica associada da monitorização, os pacientes se tornam ótimos candidatos à realização dessa técnica."
Para aneurismas cerebrais rotos, aqueles que se romperam de forma súbita, por ter um contexto de urgência, a intervenção com paciente acordado não é recomendada, pois o procedimento acaba sendo emergencial e o cérebro já está em processo de sofrimento e apresentando inchaço, o que faz com que a manipulação cirúrgica seja mais complicada.