Jornal Estado de Minas

SAÚDE MENTAL

Esquizofrenia: um transtorno mental multifatorial e ainda incompreendido

Na sala 210 do Louvre, em Paris, um óleo sobre madeira com 58cmX33cm cativa o olhar de quem visita as obras sacras da Ala Richelieu do museu. Entre as grandiosas esculturas góticas, está a pequena pintura – a interpretação do holandês Bosch de um tema explorado por outros artistas e que causa a mesma sensação de estranhamento provocada pelas que vieram antes e depois dela.



A alegoria faz referência a um bizarro costume dos séculos 14 e 15, na Região da Renânia, que, segundo o filósofo Michael Foucault, pode ter sido real. Trata-se da Nau dos Loucos: um navio errante no qual se despachavam aqueles considerados estranhos, lunáticos, dementes, desequilibrados.

Incômodos, incompreendidos, imprestáveis aos olhos dos contemporâneos, a eles restava o desterro. De acordo com Foucault, eram entregues aos barqueiros, para que deles se livrassem. “Frequentemente, as cidades da Europa viam essas naus de loucos atracar em seus portos”, conta o filósofo, em “História da Loucura”.

Mais de 600 anos depois, não é exagero dizer que alguns pacientes psiquiátricos continuam à deriva. Vítimas da intolerância social, vistas como violentas e alienadas e, muitas vezes, sem acesso ao tratamento adequado, pessoas com esquizofrenia navegam em mares turbulentos e, em grande parte, desconhecidos.



Descrita formalmente no fim do século 19, ainda como dementia praecox, esta é uma das mais estudadas doenças mentais. E, ao mesmo tempo, uma das menos compreendidas.

Até a próxima terça-feira, uma série de reportagens dos Diários Associados narra os desafios enfrentados por pacientes, assim como os avanços da ciência no entendimento de um mal que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), afeta 24 milhões de pessoas, ou 0,32% da população do globo.

O quadro 'Nau dos loucos', do artista Hieronymus Bosch, retrata um bizarro costume dos séculos 14 e 15, na Região da Renânia: um navio errante no qual se despachavam pessoas consideradas estranhas, lunáticas (foto: Lelis/Estado de Minas)
Embora registros históricos sugiram casos de esquizofrenia milênios antes da era comum, o nome da doença, frequentemente confundida com males espirituais, só foi cunhado em 1911. Esquizo (divisão) e prhenia (mente) foi o termo sugerido pelo psiquiatra Eugen Bleuler para definir uma condição caracterizada, segundo ele, pela cisão entre pensamento, emoção e comportamento.

Geralmente manifestado por volta dos 15 anos (homens) e 25 (mulheres), o mal tem como principais marcas sintomas divididos em duas classes: positivos e negativos.

No primeiro caso, incluem-se os sinais mais popularmente associados à esquizofrenia: delírios, alucinações, pensamentos desorganizados e agitação corporal, embora nem todos os pacientes exibirão esses sintomas. Já os negativos, que chamam menos atenção, são justamente os que mais afetam a funcionalidade e se relacionam à fase crônica da doença.



Apatia, falta de interesse e de sociabilidade, redução das expressões de emoções e diminuição de prazer acabam fazendo com que o paciente abandone suas atividades, o que, por sua vez, contribui para afastá-lo ainda mais do convívio social.

Gatilhos para o desenvolvimento da esquizofrenia


Trata-se de um distúrbio complexo, que envolve diversos mecanismos. Além da hereditariedade, estima-se que fatores ambientais, como uso de substâncias psicoativas, infecções bacterianas e virais durante a gestação e complicações no parto funcionem como um gatilho para o desenvolvimento da doença, que também está associada a disfunções na produção de substâncias importantes para o cérebro, os neurotransmissores, e na própria estrutura do órgão.

Neurocientista Stevens Rehen, pesquisador do Instituto D'Or e professor da UFRJ, estuda a esquizofrenia (foto: Instituto D'OR de Pesquisa e ensino/IDOR/Divulgação )
“A esquizofrenia tem origem multifatorial, com influências de genes e do ambiente. O transtorno está associado ao neurodesenvolvimento, com alterações acontecendo na formação do cérebro durante a gestação, muito antes de os sintomas clínicos aparecerem no início da vida adulta”, destaca o neurocientista Stevens Rehen, pesquisador do Instituto D'Or e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).





O amplo conjunto sintomático justifica-se pelo fato de a esquizofrenia ser uma doença que afeta o cérebro como um todo. Recentemente, um consórcio internacional de pesquisadores descobriu que mais de 280 regiões do genoma têm proteínas associadas à enfermidade mental (leia amanhã). Dois artigos sobre o assunto foram publicados, simultaneamente, na revista Nature.

“Esses genes estão expressos praticamente em todas as regiões cerebrais, diferentemente de outras doenças cerebrais, nas quais você tem a expressão em algumas ou em apenas uma região específica”, destaca a coautora da pesquisa Síntia Belangero, coordenadora da Área de Genética e Biorrepositório do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento (Inpd).

“Isso pode explicar parcialmente por que a esquizofrenia tem manifestação de sintomas diversos, tanto de cognição, que são os de memória, alucinações e delírios, quanto os negativos, como depressão e reclusão social”, destaca a cientista, que também é professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde coordena o Laboratório de Neurociência Integrativa.





Baixa Adesão aos remédios


A complexidade da doença é um dos obstáculos na busca de uma abordagem farmacológica mais eficaz do que a atual, à base de antipsicóticos, que vêm sendo prescritos há meio século e, muitas vezes, provocam efeitos colaterais que levam ao abandono do tratamento.

Uma revisão de 61 artigos científicos produzidos entre 2010 e 2018 realizada pela Faculdade de Medicina Estácio de Juazeiro do Norte, no Ceará, constatou que, entre as principais causas de não adesão aos remédios, estão os resultados adversos e a falta de acesso, citados por 80% dos pacientes. Além disso, mais de 60% afirmou que houve piora dos sintomas, diz o artigo, publicado na revista Educação, Ciência e Saúde.

Há algumas novas drogas consideradas promissoras no tubo de ensaio, baseadas no conhecimento atual das bases biológicas da doença. Algo que, segundo James Maksymetz, pesquisador de farmacologia da Universidade de Vanderbilt, nos Estados Unidos, não existia quando os medicamentos ainda em uso foram desenvolvidos.



Ele é um dos autores de um estudo publicado na revista Cell Reports no qual descreve um novo alvo, com potencial de tratar, simultaneamente, os sintomas positivos e negativos da doença.

A equipe do Centro Neurocientífico Warren de Descobertas de Drogas identificou um gene no sistema nervoso central, o mGlu1, capaz de consertar um problema presente no cérebro dos pacientes: uma disfunção que impede os neurônios de trabalharem normalmente.

Em testes de curta duração, os cientistas constataram que um composto desenvolvido pelo mesmo grupo anteriormente, chamado PAM, modulou a atividade neuronal e reverteu os sintomas positivos e negativos da esquizofrenia em humanos. Os antipsicóticos atuais só atuam contra os primeiros. Embora preliminar, os resultados são animadores, diz Maksymetz.

“Eu realmente acredito que entender como os circuitos neurais funcionam e como reverter a disfunção levará a uma revolução no tratamento de doenças relacionadas à neurociência”, diz.

Palavra de especialista


Leonardo Palmeira
psiquiatra e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Liberdade é terapêutica


"A visão que se tem da esquizofrenia ainda é centrada na hospitalização. Mas é preciso enxergar o paciente como um cidadão pleno, com todos seus direitos. Liberdade é terapêutica. Não existe tratamento sem liberdade. Por trás da doença, tem um ser humano, com suas potências e ambições. A medicação é uma parte do projeto terapêutico, mas não é tudo: a reabilitação é psicossocial, inclui assistência social, enfermagem, terapia, atividades artísticas não restritas ao ambiente de saúde, mas dentro da comunidade. Nós, como sociedade, precisamos combater os estigmas porque, quando integrado, o paciente passa a melhorar."