O último balanço sobre as mortes em decorrência da COVID-19 indica 1.315 óbitos. Um número bem menor do que os registrados quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou que entrávamos em uma pandemia - em março de 2020, em média, 12 mil pessoas perdiam a vida diariamente devido à infecção pelo novo coronavírus. Esse novo patamar da crise sanitária tem levado especialistas a avaliarem as lições e os novos desafios frente ao Sars-CoV-2.
Segundo a agência das Nações Unidas, o mundo "nunca esteve tão perto de acabar com a pandemia". Por isso, a necessidade de juntar esforços para "vencer" a empreitada. Também nesta quarta-feira (14/9), uma comissão de especialistas da renomada revista The Lancet divulgou uma avaliação extensa dos dois anos de crise sanitária. Para o grupo, "falhas generalizadas" de enfrentamento à COVID levaram a milhões de mortes evitáveis - os autores estimam um total de 17,7 milhões de óbitos, incluindo os não oficiais. A OMS registra 6,49 milhões.
"O impressionante número de vítimas humanas nos primeiros dois anos da pandemia de COVID-19 é uma profunda tragédia e um enorme fracasso social em vários níveis", avalia, em nota, Jeffrey Sachs, presidente da comissão e professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos.
O também presidente da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável enfatiza a necessidade de enfrentarmos "duras verdades" relacionadas à forma como lidamos com a pandemia. "Muitos governos falharam em aderir às normas básicas de racionalidade institucional e transparência; muitas pessoas protestaram contra precauções básicas de saúde pública, muitas vezes influenciadas por desinformação; e muitas nações falharam em promover a colaboração global para controlar a pandemia", lista.
Um dos fenômenos enfatizado pelo grupo é a desigualdade no enfrentamento à COVID-19, prejudicando consideravelmente os grupos mais vulneráveis. A atual situação da cobertura vacinal ilustra bem o cenário, segundo Maria Fernanda Espinosa, ex-presidente da Assembleia Geral da ONU e coautora da comissão. "Mais de um ano e meio desde que a primeira vacina foi administrada, a equidade global da vacina não foi alcançada. Nos países de alta renda, três em cada quatro pessoas foram totalmente vacinadas, mas nos países de baixa renda, apenas uma em cada sete", detalha.
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Também integrante do grupo, Salim S. Abdool Karim, da Universidade de Columbia, nos EUA, lembra que essas diferenças regionais dificultam os avanços rumo ao fim da crise sanitária. "Quanto mais rápido o mundo puder agir para vacinar todos e fornecer apoio social e econômico, melhores serão as perspectivas de sair da emergência pandêmica e alcançar uma recuperação econômica duradoura", diz.
Os especialistas defendem o compartilhamento de patentes e tecnologias como uma das medidas necessárias para se chegar a esse patamar. "Todos os países permanecem cada vez mais vulneráveis a novos surtos de COVID-19 e futuras pandemias se não compartilharmos patentes e tecnologia de vacinas com fabricantes de vacinas em países menos ricos e fortalecermos iniciativas multilaterais que visam aumentar a equidade global de vacinas", justifica Espinosa.
O relatório também constata que a maioria dos governos nacionais estava despreparada e deu uma resposta "muito lenta" à disseminação do vírus. Segundo a comissão, na Europa e nas Américas, sistemas de saúde pública desarticulados e resposta de políticas públicas de baixa qualidade resultaram em mortes cumulativas em torno de 4 mil mortes por 1 milhão, a mais alta de todas as regiões da OMS. Preparada pela experiência anterior com a epidemia de Sars de 2002, a região do Pacífico Ocidental, incluindo o Leste Asiático e a Oceania, adotou estratégias de supressão relativamente bem-sucedidas, resultando em mortes cumulativas por milhão em torno de 300.
Críticas à ONU
Os autores também avaliaram como a agência das Nações Unidas atuou no cenário pandêmico. Uma das críticas é de que houve atraso por parte da OMS para declarar a ocorrência de uma "emergência de saúde pública de interesse internacional" e para reconhecer a transmissão aérea do Sar-CoV-2. Essas falhas, avaliam os especialistas, concidiram com erros de governos nacionais em cooperar e coordenar protocolos de viagem, estratégias de teste, cadeias de suprimentos de commodities, relatórios de dados sistemas e outras políticas internacionais vitais para suprimir a pandemia.
Os especialistas recomendam a expansão do Conselho Científico da OMS para aplicar evidências científicas urgentes para prioridades de saúde global, incluindo futuras doenças infecciosas emergentes; e o estabelecimento de um Conselho de Saúde Global da agência com representação em todas as suas seis regiões. Também faz parte da lista de indicações para se preparar para futuras ameaças sanitárias o fortalecimento dos sistemas nacionais de saúde, com ações como melhora nos sistemas de vigilância e de monitoramento.
Um editorial publicado na mesma edição da The Lancet afirma que "como a comissão demonstra, reavaliar e fortalecer as instituições globais e o multilateralismo não apenas beneficiará a resposta à COVID-19 e futuras doenças infecciosas, mas também a qualquer crise que tenha ramificações globais". O texto enfatiza ainda que o trabalho desempenhado pelos especialistas "oferece outra oportunidade para insistir que os fracassos e as lições dos últimos três anos não são desperdiçados, mas são usados construtivamente para construir sistemas de saúde mais resilientes e sistemas políticos mais fortes que apoiem a saúde e o bem-estar das pessoas e do planeta durante o século 21."